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Nós, os curiosos

Por Daniele Avila Small – Revista Questão de Crítica
(www.questaodecritica.com.br)

Recusa. Fotos: Fernanda Pessoa

Espetáculo Recusa, da da Cia Teatro Balagan. Fotos: Fernanda Pessoa

Inspirados pela notícia da condição de sobrevivência precária e ameaça de extinção dos dois últimos membros dos piripkuras, os artistas criadores da Cia Teatro Balagan atentaram para a recusa deles para com a cultura do homem branco, da civilização como a conhecemos. A partir daí, criaram uma dramaturgia que também foi motivada pela recusa de fórmulas e noções já estabelecidas para a feitura de uma peça de teatro. O fruto é um trabalho de fôlego, uma cornucópia recheada de mundos – para a crítica, um prato cheio, mas que precisa ser devorado com o tempo.

O trabalho do grupo nos permite ver a recusa como resistência mas também como um gesto fundador. A recusa é um grande “não” que se abre para um “sim” maior ainda. A negação pode ser o começo de um reconhecimento, da afirmação de uma identidade, da inauguração de algo impensado. Como foi discutido na mesa-redonda realizada pela Mostra no dia da apresentação do espetáculo, a identidade pode ser um lugar dinâmico de invenção e de resistência ao mesmo tempo. Estamos sempre tentando preservar tradições e criar novas formas. O próprio fazer teatral é um trabalho de resistência (às adversidades econômicas e políticas, à dureza das cidades, à inércia da vida urbana, etc.) que demanda reinvenção (das estéticas, dos hábitos, dos modos de produção, etc.). A recusa não é um fim, mas um começo, não é simples negação, mas um gesto fecundo. Recusa é uma palavra-corte que fere mas abre.

Em relato publicado no programa da peça, os criadores nos contam que, na sua experiência de conversa com os índios Paiter Suruí, os velhos do clã escolheram algumas palavras do seu vocabulário como possíveis traduções de termos do teatro. O significado da expressão escolhida por eles para “público” seria “os curiosos”. A meu ver, isso faz sentido na relação que a peça estabelece com o público. A dramaturgia de Luís Alberto de Abreu engendra uma trama que joga com a curiosidade do espectador, com o seu interesse, numa negociação de sentidos incessante, que a encenação de Maria Thaís mantém num estado de suspensão, oferecendo iscas e pistas ardilosas, que nos fazem seguir mais adiante

Os atores investem no jogo, que forma uma espécie de campo de força

Os atores investem no jogo, que forma uma espécie de campo de força


O trabalho dos atores Antonio Salvador e Eduardo Okamoto parece ser construído a partir de estados, mais que de situações ou discursos. Nos seus corpos, vemos um preparo vigoroso, que resulta em uma presença e uma disponibilidade para o jogo que forma uma espécie de campo de força, que colabora para sustentar a atenção e a curiosidade do espectador. A fisicalidade das atuações – em especial o desempenho vocal que produz uma sonoridade muito concreta – tem o potencial de despertar o espectador pelo corpo, como numa vibração entre instrumentos de corda. O trabalho de direção musical de Marlui Miranda mereceria um texto à parte. Mas vale apontar que não se trata da exibição de um virtuosismo. A demanda por um desempenho corporal expressivo é afinada com a pesquisa estética e temática do projeto.

A cultura indígena – ameríndia – apresentada pelo espetáculo está sempre sob o signo do duplo. As narrativas se alternam, mas há sempre uma relação entre duas figuras que se complementam. Além dos personagens que conseguimos distinguir, também percebemos desdobramentos da ideia de duplo, como na polarização entre o sol e a lua, o corpo e a alma, o índio e o fazendeiro, o homem e a mulher. O teatro só existe quando há dois: a cena e a plateia, o artista e o público. Sem uma das partes, deixa de ser teatro. Se as duas partes estiverem em oposição, não acontece. Se um quer se impor ao outro, algo morre. Como pud e pudlaré, são inseparáveis. E nós, os curiosos, precisamos devolver o canto, jogar o jogo, e manter a atenção mútua.

Do ponto de vista da crítica, para um trabalho como esse, seria preciso devolver um esforço à altura, que este breve exercício não permite. Mas fica aqui um apontamento, uma anotação de primeiras impressões, só pra sinalizar que – mesmo que falte espaço, mesmo que muitas vezes também falte fôlego – estamos interessados, estamos prestando atenção.

* Esse texto faz parte da ação do DocumentaCena – Plataforma de Crítica formada por Daniele Avila Small (Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais), Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?), Luciana Eastwood Romagnolli (Horizonte da Cena), Maria Eugênia de Menezes (Teatrojornal – Leituras de Cena), Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?), Soaraya Belusi (Horizonte da Cena) e Valmir Santos (Teatrojornal – Leituras de Cena), que acompanha a IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo

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Acúmulo e esvaziamento

Por Daniele Avila Small – Revista Questão de Crítica
(www.questaodecritica.com.br)

Dois amores e um bicho na Mostra Latino-americana de tearo de grupo

Dois amores e um bicho na Mostra Latino-americana de tearo de grupo


Uma característica que me chama a atenção no texto do dramaturgo venezuelano Gustavo Ott é a complexidade das imagens que sugere. Trata-se de uma peça que tem algo a dizer e esse algo está na articulação do que os personagens dizem, não no conteúdo literal das suas falas. É nesse ponto que o texto pode ser considerado difícil de encenar. A demanda de recursos técnicos e de habilidades para a criação de uma poética para a sua encenação não é a mesma demanda da encenação de um texto dramático comum. A estrutura da dramaturgia proporciona um acúmulo de camadas de narrativas e de pontos de vista que demandam um posicionamento por parte da criação do espetáculo. Uma espécie de posicionamento poético – uma ideia que mereceria um aprofundamento que não cabe neste texto, mas que podemos guardar para outra ocasião.

A encenação de Daniel Olivetto proporciona diversas formas de distração ao longo do espetáculo: a música constante – em tantos momentos mais audível que a voz dos atores, especialmente no caso de Jô Fornari -, a movimentação inquieta, os comentários feitos pelos gestos e expressões nos rostos dos atores a cada fala. O excesso de apelos à visão e à audição atravancam um pouco o apelo ao entendimento intelectual, à escuta profunda dos questionamentos da peça, que não são poucos.

De modo geral, o tratamento dado às questões assume um tom propositadamente frívolo, que talvez provoque um embaçamento da seriedade dos temas abordados. É possível apontar como exemplo dessa abordagem o conflito da mãe (interpretada por Sandra Knoll) para com o pai (Marcelo F. de Souza), que é posto em cena como uma mera briga de casal. No entanto, acredito que há ali uma confrontação de princípios: a partir de determinado momento, a mulher passa a ver no marido uma imagem que estava submersa, escondida pelos afazeres da vida cotidiana e pela responsabilidade de criar uma filha. A passagem da filha para a vida adulta provoca uma abertura no olhar da mãe – e a virada na narrativa.

A construção da imagem do homem é o calcanhar de Aquiles da encenação. Foto: Daniel Olivetto

A construção da imagem do homem é o calcanhar de Aquiles da encenação. Foto: Daniel Olivetto

E me parece ser exatamente na elaboração da imagem do homem, do pai, que o texto apresenta sua maior complexidade e a encenação, o seu calcanhar de Aquiles. A montagem da Cia Experimentus apresenta um homem que se comporta como uma criança, enquanto o ponto nevrálgico da peça é que os atos deste homem são os atos de um homem, adulto, responsável: um pai de família, como dizem. Apresentar a figura do pai como um bobo, como um homem infantilizado e inconsequente, é uma forma de “resolver” o problema sem de fato enfrentá-lo. O apelo ao histrionismo e a tentativa de fazer humor reiteradas vezes ao longo da peça são formas de varrer o problema para debaixo do tapete.

A opção da direção, que faz com que o ator “defenda” o personagem, querendo que ele seja querido, engraçado, provocou um curto-circuito na minha percepção. Me pareceu que o discurso do personagem ficou colado com o discurso da peça, quando o discurso da peça, a meu ver, seria um comentário – e um comentário duro – sobre o discurso e o comportamento do personagem. Por exemplo, quando o pai chama o cachorro de “viado”, o ator o faz como se isso fosse uma piada. E o que o texto de Gustavo Ott me parece dizer é que isso não só não é uma piada, como é uma forma de violência. Isso mata. Mata por contaminação, como um mal que se espalha de tal modo que seus meandros são difíceis de detectar. Mas as consequências são bastante visíveis. E devastadoras, como Ott nos mostra com a exterminação dos animais do zoológico.

O que a montagem da Cia Experimentus me faz questionar, com relação à feitura de uma peça de teatro, é o quanto o pensamento sobre o que se diz, o pensamento sobre a ética dos conteúdos, precisa encontrar recursos técnicos coerentes com sua proposta. Não basta à encenação providenciar um emolduramento confortável, bonito e divertido para apresentar determinados personagens e situações. É preciso, no caso do enfrentamento de um material como o texto de Ott, encontrar uma poética específica para uma enunciação crítica, uma poética que comenta, que descola. Sob o risco de se afirmar o que se quer criticar.

Para concluir, vale apontar a ótima escolha do texto pelo grupo de Itajaí, tendo em vista a rara colaboração entre autores e grupos do Brasil com os países vizinhos da América Latina, e que conta com o mérito da tradução fluida e coloquial de Marialda Gonçalves Pereira.

* Esse texto faz parte da ação do DocumentaCena – Plataforma de Crítica formada por Daniele Avila Small (Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais), Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?), Luciana Eastwood Romagnolli (Horizonte da Cena), Maria Eugênia de Menezes (Teatrojornal – Leituras de Cena), Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?), Soaraya Belusi (Horizonte da Cena) e Valmir Santos (Teatrojornal – Leituras de Cena), que acompanha a IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo

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Dois amores carece de intensidade

Montagem da Cia. Experimentus Teatrais, de Itajaí, Santa Catarina de Dois amores  e um  bicho

Montagem da Cia. Experimentus Teatrais, de Itajaí, SC, de Dois amores e um bicho


É louvável, no texto Dos amores y un bicho, do venezuelano Gustavo Ott, a capacidade do autor de sobrepor elementos em camadas do que constitui o humano, com suas zonas tenebrosas que assustam quando expostas. Mas sua encenação exige, como em Beckett, que esse teatro seja o espaço da essencialidade da linguagem. A montagem da Cia. Experimentus Teatrais, de Itajaí, Santa Catarina, não conseguiu extrair as sutilezas da situação e as personalidades fissuradas dos personagens envolvidos em Dois amores e um bicho, apresentada na IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo, em São Paulo.

A peça tematiza a intolerância. A partir de uma crítica do dramaturgo ao preconceito homossexual, um dos mais arraigados da humanidade, da submissão da mulher e o desmoronamento do pai como herói.

Com direção de Daniel Olivetto, Pablo (Marcelo F. de Souza) interpreta o pai, que 15 anos antes espancou o cachorro Cabral até a morte, quando descobriu que ele tinha relações homossexuais com outro cão. Por isso ele foi preso, ficou 40 dias na cadeia e saiu após pagar uma fiança de 5 mil dólares. O assunto nunca mais voltou à tona na casa.

Até aquele dia em que ele e a mulher (Sandra Knoll) vão ao zoológico visitar a filha, já médica veterinária (Jô Fornari), e ficam sabendo que um orangotango está numa jaula separada porque molestou outros animais. O passado volta para prestação de contas com o presente.

O autor nos diz que é   urgente respeitar verdadeiramente as diferenças

O autor nos diz que é urgente respeitar verdadeiramente as diferenças

O protagonista tem um ódio mortal aos homossexuais.

Bem, o problema me parece que esse sentimento do personagem contaminou toda a encenação, e o que deveria ser um posicionamento em defesa da liberdade fica amarrado ao preconceito.

Era preciso ressaltar o que Ott nos diz com inteligência e sagacidade. É urgente respeitar verdadeiramente as diferenças (e como isso é difícil). Nessa metáfora da relação de poder do homem sobre o homem, um dia o subjugado por dizer “chega!”, como ocorre na peça com a figura da mãe. Casada há 30 anos com a aquele homem, chega um momento em que ela fala que quer ter um filho “com outro homem”, usando da ironia e o humor negro que valorizariam os diálogos em todo o espetáculo.

Pablo exige do ator uma grande intensidade dramática. Ele é o articulador de um universo que aparentemente está em paz. Mas no sótão da memória estão guardados acontecimentos ocorridos 15 anos e uma pergunta desencadeia o desmoronamento de uma estrutura que já estava apodrecida por dentro. O personagem é figura cênica ameaçadora, mas que tem suas fragilidades. A questão é que o intérprete salienta o lado infantilizado do personagem e com isso diminui a complexidade do papel. Seu Pablo é indeciso, com um risinho irritante a cada vez que se sente questionado. Faltou o caleidoscópio de emoções. Faltou a tensão da agressão física e psicológica.

* Esse texto faz parte da ação do DocumentaCena – Plataforma de Crítica formada por Daniele Avila Small (Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais), Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?), Luciana Eastwood Romagnolli (Horizonte da Cena), Maria Eugênia de Menezes (Teatrojornal – Leituras de Cena), Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?), Soaraya Belusi (Horizonte da Cena) e Valmir Santos (Teatrojornal – Leituras de Cena), que acompanha a IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo

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