Quatro crianças desafiam o público com explanações filosóficas sobre o amor, o futuro, questionamentos da existência na peça Materia prima. Essas palavras profundas vindas de bocas tão inexperientes clamam por outras chaves de interpretação. Subversão de lógica nesses discursos contaminados de histórias de vida vindas de seres imaturos.
Há rupturas das convenções teatrais. Muitas coisas escapam nessas falas impregnadas de nostalgia que não são deles, mas dos adultos da companhia espanhola La Tristura. O elenco mirim é atravessado pelo tempo, pelo devir e isso é projetado sobre a plateia. Instaura-se um clima de desconforto.
Intrigante. Teatro que provoca posições divergentes. Dissenso. “Eu odiei. Teatro tem que ter ator. E eles não interpretam. São apenas jovens”, dizia um. “Falta criatividade. O diretor poderia ter explorado de forma inventiva aqueles corpos jovens, verdes”, dizia outro. “Achei uma chatice”, comentava um terceiro. “Eu gostei. Da juventude e como ela é apresentada. Das músicas. A gente sai pensando”.
Isso ocorreu em outras praças, a plateia dividida. Em edições anteriores do FIT-BH, Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, Festival Internacional de Londrina (Filo).
O espetáculo Materia Prima teve duas apresentações no Janeiro de Grandes Espetáculos. O grupo La Tristura apresenta ainda El Sur de Europa – Dias de amor dificíles, neste sábado (31), em duas sessões, às 18h30 e às 21h30, no Teatro Luiz Mendonça.
Teatro contemporâneo – O grupo La Tristura coloca em cena quatro garotos (duas meninas e dois meninos), 13 anos em média, e lindos. A encenação encerra a chamada Trilogía de la Educación Sentimental e os pequenos atuadores entraram quando tinham entre 9 e 10 anos. Os criadores adultos defendem que a peça faz parte de um estudo sobre herança, educação e futuro.
Começa com o palco limpo. Apenas uma cama de casal do lado direito. Um garoto sem camisa entra e deita no chão de costa para a plateia. Divagações sobre o amor, a duração, intensidade, a vida e o tempo são elencados com a tradução projetada no meio da cena. Parece que há um abismo entre as palavras ditas e aquele jovem imberbe deitado ali. São reflexões adultas, de experiências vividas. Mas o texto também está carregado por inocência da fase infantil. É um tempo atravessado e carregado de significados e deslocamentos de épocas de vida.
Isso atinge em cheio a não convocada verossimilhança e a performance atinge outro patamar. Isso gera mal-estar nos estatutos de verdades e planos lineares. Depois dessas reflexões pesadas, outros três garotos entram em cena. O primeiro e carregado para a cama, onde todos deitam e mais elucubrações são disparadas.
Materia Prima não conta uma história. O La Tristura prima pela experimentação. Ginebra Ferreira, Gonzalo Herrero, Siro Ouro e Candela Recio se distanciam do realismo, flertam com a performance, e patinam em possibilidades interpretativas. Melhor não classificá-los como atores ou intérpretes no sentido mais convencional. São corpos em expansão.
Eles jogam bola, tomam banho de tinta, escorregam no palco. Brincam como crianças. Mas o discurso é que cria atritos, atira contra fórmulas prontas. Meninos discorrem sobre utopias, morte, culpa, sonhos, maldade. O contraste entre forma e conteúdo cria uma explosão. Mudanças de perspectiva.
Dos marcos de um dia – de amanhecer ao anoitecer – Materia Prima traça uma metáfora do ciclo da vida. E isso também faz lembrar Virgínia Wolff. “O que haverá depois de uma noite? Um dia. O que haverá depois de um amor? Outro amor”, diz uma das partes do texto.
Itsaso Arana, Pablo Fidalgo, Violeta Gil e Celso Giménez, os integrantes do La Tristura, assinam a direção. A iluminação é de Eduardo Vizuete. E a trilha original de Merran Laginestra.
E o texto é lindo, poético, namora bem com a música, que ressalta as emoções da dramaturgia. A trupe cria um mundo próprio.
FICHA TÉCNICA
Materia Prima, do grupo espanhol La Tristura
Texto: Itsaso Arana, Pablo Fidalgo, Violeta Gil e Celso Giménez
Elenco: Ginebra Ferreira, Gonzalo Herrero, Irene Paniagua Bolaños e Siro Ouro
Design de Luz e Coordenação Técnica: Eduardo Vizuete
Assistente Técnico: Ana Muñiz
Assistente de Direção: David Mallols
Música Original: Merran Laginestra
La Tristura: Celso Giménez, Itsaso Arana e Violeta Gil