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Contra as garras do autoritarismo

Foto: Victor Haim

Nem mesmo todo o oceano, da Cia OmondÉ. Foto: Victor Haim

O espetáculo Nem mesmo todo o oceano transborda de vida, contraditória e humana na ambição pelo poder (mesmo os pequenos e podres poderes). Exubera de lucidez, com doses generosas de ironia sobre a História e seus patéticos e cruéis personagens. E extravasa de amor pelo Brasil, desejoso de um país mais justo.

Adaptada do romance homônimo do escritor mineiro Alcione Araújo e com uma direção provocadora, potente e precisa de Inez Vianna a montagem utiliza uma lente de aumento. Metonímia. Da parte – o personagem Ele -, para o todo – os descaminhos, os atentados contra os direitos humanos, a inversão de valores, a tirania. E com isso revela minúcias sórdidas.

A encenação reflete e nos faz pensar (nós espectadores neste momento de turbulência no Brasil) sobre o período da ditadura militar – o país do futuro enlameado nos porões do autoritarismo.

Nem mesmo todo o oceano, da Cia OmondÉ, cumpre temporada na Caixa Cultural Recife, até 9 de abril, com sessões de quinta-feira a sábado, às 20h. E é imperdível.

Seis intérpretes se multiplicam entre os diversos papeis, inclusive o protagonista Ele. Os atores Leonardo Brício, Iano Salomão, Jefferson Schroeder, Junior Dantas, Luis Antonio Fortes e Zé Wendell se revezam num jogo frenético. A dinâmica proposta pela encenadora e executada pelo elenco esfumaça as fronteiras entre personagens, como a apontar a essência daquelas qualidades e defeitos em todos nós. Cabendo a cada um eleger o que deve estar no comando.

O palco vazio de cenários valoriza a presença do ator. A diretora põe o ator em primeiro plano, o jogo e as interpretações. A ditadura brasileira é narrada a partir da trajetória de um médico ambicioso e alienado. Ele vem de uma infância humilde no Interior de Minas Gerais e vai estudar no Rio de Janeiro. Seus colegas de faculdade são perseguidos e presos e o mineiro prefere não entender o que está acontecendo, porque acredita que o problema não é com ele. Sua única preocupação é com o seu próprio umbigo, ascensão profissional, inserção social, em satisfazer seu ego.

Ele pouco se importa com sua família que ficou no interior de Minas. Quando passa a ganhar dinheiro, utiliza apenas para seus gastos. Acha suficiente o orgulho que deu aos seus ao galgar uma carreira de médico. Sua estrutura moral é frágil. Deslumbrado com as aparências e alimentando um recalque, ele não vai deixar passar a oportunidade de se vingar. Do mundo que o exclui e ao qual ele tenta se agarrar.

Quando ocupa o cargo de médico legista do DOI-Codi (órgão de repressão do Exército) Ele passa a testemunhar as torturas e abalizar se o supliciado tem ou não condições de ser submetido a mais violência. Os personagens são fictícios,  mas tão baseados na História que chocam até a Comissão da Verdade.

Nem mesmo todo o oceano

Encenação exibe portões da ditadura militar. Foto: Carlos Cabera

Há algo de Mephisto, longa-metragem do realizador húngaro István Szabó, nessa criatura de Alcione Araújo.  O filme é inspirado no romance Doktor Faustus do escritor Klaus Mann, filho do consagrado Thomas Mann.

O protagonista Hendrik Höfgen (papel defendido por Klaus Maria Brandauer) é um ator alemão ambicioso, que abandona antigos valores e amigos para se tornar – sem escrúpulos – o maior ator do Terceiro Reich. Sua atuação como Mefistófeles na peça Fausto, de Goethe, o tornou um símbolo cultural do regime nazista. Para isso ele trava um pacto com o “diabo”.

O filme de 1981 foi premiado com o Oscar de Filme em Língua Estrangeira, Roteiro e Prêmio da Crítica em Cannes. É baseado na vida real do ator Gustav Gruendgens, mas ganha escala maior por interrogar sobre o papel de um artista na sociedade.

Na Alemanha dos anos 1930, Hendrik Höfgen não se preocupa com política; o que importava era sua carreira, seu entendimento sobre o bolchevismo. Mas quando os nazistas ocupam o poder, ele não titubeia em fazer peças de propaganda do regime.

Hoefgen se entrega à ideologia do mal. E no final do filme expõe o seu dilema: “O que querem de mim? Eu sou só um ator”.

Ritmo frenético na troca de papeis

Ritmo frenético na troca de papeis

Até que ponto é possível um cidadão comum não se envolver com as questões de seu tempo? palpita a montagem. O protagonista de Nem mesmo todo o oceano também não tem afeição por política. Sob a capa da alienação, Ele diz que só se interessa por sua própria vida. Por seu umbigo. Por suas conquistas.

Mas nos regimes totalitários qualquer um pode ser triturado. Inclusive aqueles que sacrificaram crenças políticas, religiosas e outras em nome de uma suposta sobrevivência físicia e social. O protagonista irá descobrir, tarde demais, que é apenas uma pecinha numa grande engrenagem e sua eliminação não fará a mínima diferença.

Há cenas que fazem referências a fatos reais, como a invasão ao prédio da União Nacional dos Estudantes, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade e o show Opinião. E a encenadora dosa bem o tom crítico da montagem, ao fazer um contraponto com o farsesco de algumas cenas, que exibem o ridículo das ações e do pensamento da plutocracia.

Personagens debocham de comportamentos da elite da época

Personagens debocham de comportamentos da elite da época. Foto: Carlos Cabera

Quando o público entra no teatro o elenco já está no palco, jogando com uma bola. A bola sai, mas o jogo continua nos deslocamentos dos atores em blocos, em parte ou isolados. A iluminação revela essas conduções, seus círculos e os claro/escuro de uma história sem final feliz.

Cada um do elenco tem algum momento de destaque. E nesse caso acima dos relevos, o mais importante é o conjunto da atuação, que também funciona com uma corrida de revezamento, ninguém pode deixar o bastão cair, sob o risco de comprometer toda a operação.

Nem mesmo todo o oceano estreou em 2013, quando começou uma onda de protestos nas ruas. Falar de 1964 em 2016 é de importância vital, nesse diálogo entre arte e vida, arte e politica. O espetáculo pulsa nervoso, frenético, urgente como o Brasil desses tempos.

FICHA TÉCNICA
Autor: Alcione Araújo
Adaptação e Direção: Inez Viana
Consultoria Dramatúrgica: Pedro Kosovski
Elenco: Cia OmondÉ – Leonardo Bricio, Iano Salomão, Jefferson Schroeder, Junior Dantas, Luis Antonio Fortes e Zé Wendell
Figurino: Flávio Souza
Direção Musical: Marcelo Alonso Neves
Iluminação: Renato Machado
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Programação Visual: Dulce Lobo
Assistentes de Direção: Carolina Pismel, Debora Lamm e Juliane Bodini
Produção Executiva: Jéssica Santiago e Rafael Faustini
Direção de Produção: Claudia Marques
Projeto da Cia OmondÉ
Patrocínio CAIXA

SERVIÇO:
Nem mesmo todo o oceano
Onde: CAIXA Cultural Recife (Avenida Alfredo Lisboa, 505, Bairro do Recife, Recife/PE)
Quando: 31/03 a 02/04 e de 07 a 09/04/2016, de Quinta a sábado, às 20h.
Ingressos: R$ 10 e R$ 5 (meia)
Vendas: a partir das 10h do dia 30 (para as apresentações de 31/03 a 2/04) e do dia 06 (para as apresentações de 07 a 09/04)

Informações: (81) 3425-1915 / 3425-1900
Classificação Indicativa: 16 anos
Duração: 80 minutos

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