No longínquo século 20, Candinha infernizava a vida de Roberto Carlos “papo firme” com seus mexericos. Essa personagem musical atormentava as escolhas de RC e falava “algo” de toda gente, da rua, do bairro, quem sabe do país. Mas ela era identificável. Essa moça faladeira, que cuidava mais da vida alheia do que da própria, parece agora tão inocente nesses tempos de fake news e pós-verdades. Tudo bem, tudo bem, Nietzsche já vaticinou que não existem verdades absolutas. Mas o que vivemos atualmente no campo da comunicação é medonho.
A nova ordem global chegou com muitos penduricalhos. Pós-verdade e fake news são termos carregados nessa onda. A rapidez pós-moderna plugou na abundância de fontes de informações e meios midiáticos, tanto tradicionais quanto digitais, e fez a festa. Com fartura de fake news, historietas produzidas, boatos e colisões de desinformação. A notícia sofre nessa sociedade em rede sobrecarregada de armadilhas.
Um bando de atores em formação mergulha na criação a partir dos seus isolamentos. A proposta do Experimento multimídia Um Jogo Dialético, do Curso de Interpretação para Teatro (CIT) – Santo Amaro, no Recife, busca “problematizar signos e gestus, inspirados numa herança brechtiana”. Como em muitos outros trabalhos forjados durante a pandemia do Covid-19, a tentativa é averiguar essas novas possibilidade da lida cênica via web, a aproximação distanciada entre criadores e assistentes até a noção de esgarçamento.
O experimento pode ser considerado em dois momentos. A primeira batalha ocorre num “palco tabuleiro arena”, com revezamento de personagens em volta ou sobre uma grande mesa. O segundo tempo desse jogo funciona como uma live coletiva em que essas figuras decidem sobre o destino do Homem.
Quando entram, um dos atores vai ao microfone e fala: “É uma casa modesta. Tem uma mesa. A mãe está sempre botando comida para o pai. A filha está à esquerda, o filho à direita. Não há nada nessa casa que possa identificar quem são as pessoas”.
Os intérpretes usam máscaras transparentes, que parecem focinheiras. Discutem assuntos banais. Aliás, falam ao mesmo tempo que não dá para entender. Aos poucos, ficamos sabendo que eles se referem a um Homem, que um deles (o Pai) deve prejudicar para garantir algum benefício financeiro.
Eles trocam de função e de persona. O diretor Eron Villar dispara os “motes” para o improviso do grupo. Ciberespaço, beijo grego, fake news, linchamento em praça pública são alguns deles.
Entre frases confusas, dança de cadeiras, interpretações instintivas, uma mistura de frescor e ingenuidade dos corpos atuantes, é possível traçar algumas narrativas. Eles falam de ciberespaço como se fosse um lugar no espeço sideral. Eles jogam com a noção de que alguém quer prejudicar o Homem que veio do espaço. No início, as fakes news devem ser espalhadas para manchar a reputação do forasteiro. Depois, o forasteiro deve ser linchado e eliminado.
O elenco usa frase de efeito para destacar algumas questões: “Falar de assassinato é mais bem aceito do que falar de cu”. Ou o discurso da cidadã Lari: “Juiz parece que agora faz parte da família real de Pernambuco. É Campos que se chama, né”.
A recorrência do jogo sobre fake news e de que uma pessoa comum estaria disposta a aceitar essa função de espalhador de notícias falsas por dinheiro aponta as faces do capitalismo. Mas não existem grandes elaborações no tratamento do tema.
Talvez isso forneça uma linha de percepção que posso aproximar do caos instalado no mundo com prevalência da manipulação de dados e da terra arrasada de discernimento. Os termos post-truth – pós-verdade – e fake news – notícias falsas se impõe no mecanismo propositalmente caótico da encenação. Meu pensamento faz associações rápidas sobre algoritmos como agentes da formação das bolhas sociais e monetização das notícias.
Sabemos que a epidemia de notícias falsas causou danos semelhantes a uma pandemia. Vivemos isso todo dia, proporcionado pelo desgoverno que pisa na informação, massacra a saúde e tripudia da vida humana.
Na peça, um Homem veio do ciberespaço. Quem ele é, o que pensa, quais seus propósitos, nada disso fica evidente na dramaturgia. Mas é preciso acabar com ele, criando as condições de linchamento virtual ou físico. Mesmo que o motivo sejam notícias vazias, falsas e sem embasamento.
O destino do Homem é definido na “calada da noite” com a participação de juízes com sentenças já definidas, advogados, ausência do “réu”, um ou outro questionamento sobre os procedimentos.
O experimento, realça sua natureza pedagógica, a oportunidade de vários atores jogarem, num trabalho que tem uma caprichada iluminação na primeira parte, uma simplicidade dramatúrgica e de atuação. Mas que não perde a oportunidade de instigar os jovens atores com reflexões sobre o ofício de intérprete – quando um e outro se destaca ao microfone para comentar sobre inquietações da arte ou das complexas situações causadas por fakes news durante a pandemia.
E esse frescor, esses improvisos, aquecem o jogo com o diretor Eron Villar que nos faz ouvir soltar suas gargalhadas nos desabafos e atitudes de seus atores, que um passo após outro já estão construindo o devir da cena contemporânea pernambucana.
*O espetáculo foi exibido online no dia 15/01/2021 (e ainda está on-line), dentro da programação do Janeiro de Grandes Espetáculos, na Mostra de escolas independentes de teatro, dança e circo.
Ficha técnica:
Experimento multimídia: Um jogo dialético, do Curso de Interpretação para Teatro (CIT) – Santo Amaro
Direção: Eron Villar
Elenco: Bruna Sales, Carolina Rolim, Cristiano Primo, Danilo Ribeiro, Fábio Alves, Gabriel Lisboa, Guaraci Rios, Hannah Lopes, Heidi Trindade, Jade Dardenne, João Pedro Pinheiro, Julia Moura, Karla Galdino, Karoline Spinelli, Larissa Pinheiro, Rafael Augusto, Rafael Dayon, Raphito Oliveira, Tanit Rodrigues, Yohani Hesed