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“A liberdade era vivida na imediatez daqueles tempos”

Puro lixo. Foto: Rodrigo Monteiro

Puro lixo – o espetáculo mais vibrante da cidade celebra o Vivencial. Foto: Rodrigo Monteiro

Puro Lixo – O Espetáculo Mais Vibrante da Cidade, a derradeira parte do projeto Transgressão em Três Atos,  estreou no fim de semana no Teatro Hermilo Borba Filho, onde fica em cartaz aos sábados e domingos até 4 de setembro. O projeto Transgressão foi iniciado em 2008 e rendeu as encenações Os fuzis da Senhora Carrar, de Bertolt Brecht (2010), com direção de João Denys, em homenagem ao Teatro Hermilo Borba Filho (THBF); e Auto do salão do automóvel, de Osman Lins (2012), com direção de Kleber Lourenço, que celebrou o Teatro Popular do Nordeste (TPN). O programa leva a assinatura dos jornalistas e professores Alexandre Figueirôa, Claudio Bezerra e Stella Maris (também produtora e atriz).

Desta vez a ode é ao Grupo Vivencial – que entre precariedades e purpurinas dava seu grito de liberdade em plena ditadura militar. De cara o dramaturgo Luís Reis e o diretor Antonio Cadengue chegaram ao consenso de que a encenação não iria tentar reproduzir a experiência do Vivencial.  “Os tempos são outros, então o que queremos é pensar o Vivencial hoje, refletindo também sobre o papel do teatro”, destaca o encenador.

A base para a dramaturgia foi o artigo Vivencial Diversiones apresenta: Frangos falando para o mundo, de João Silvério Trevisan, publicado no jornal Lampião da Esquina, em novembro de 1979, quando a trupe inaugurou sua sede nos limites entre Recife e Olinda, o Vivencial Diversiones.

No elenco de Puro lixo estão os atores Eduardo Filho, Gilson Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira e Stella Maris Saldanha.

Puro lixo. Foto: Rodrigo Monteiro

Gilson Paz, em primeiro plano, e Stella Maris Saldanha em Puro lixo. Foto: Rodrigo Monteiro

A estrutura da peça mostra uma noite num cabaré, onde são apresentados experimentos cênicos, flashes das memórias dos artistas nos bastidores, e a defesa de posicionamentos, como o de dar pinta como recurso do fazer político. Cadengue diz que a montagem expõe feridas da nossa sociedade e que toca em questões fortes da teoria queer, de gênero, de raça.

“A conjunção de todas as cenas resulta em algo muito sofisticado (você pode perceber que uma fala dita por um personagem em off no início da peça, vai reverberar em carnadura noutra cena mais adiante)”, pontua Cadengue.

Com a palavra, o encenador.

Entrevista // ANTONIO EDSON CADENGUE

Foto: Yeda Bezerra de Melo

Foto: Yeda Bezerra de Melo

O grupo Vivencial é apontado como um oásis de liberdade naquele tempo de ditadura. Que diabo de liberdade era essa?

Tenho a vaga lembrança que a liberdade não era “uma calça suja e desbotada”, mas algo por vir, algo que se conquistava no exato momento em que se realizava, algo vivido na imediatez daqueles tempos. Talvez a isto se chame oásis. Mas isso não era simples: viviam-se amores e perdições, vivia-se com felicidade a incerteza, porque não interessava, a mim parece hoje, o futuro, mas o presente.

Como é a peça Puro lixo? São quadros justapostos? Revelando os bastidores? As luzes da ribalta?

A dramaturgia de Luís Reis, a partir da reportagem de João Silvério Trevisan, agrupou outras cenas que trouxeram aos dias de hoje algo inusitado, mesmo quando parecem serem meras paródias: a conjunção de todas as cenas resulta em algo muito sofisticado (você pode perceber que uma fala dita por um personagem em off no início da peça, vai reverberar em carnadura noutra cena mais adiante). A peça não revela os bastidores: ela é a revelação da associação íntima entre a cena e a plateia.

Tive ontem (sábado), na estreia, a sensação de que já havia, antes de fazer a peça, um diálogo muito animado com Karl Valentin e Frank Wedekind. Uma sensação esquisita, mas pulsante: cheguei a pensar que Brecht estava assistindo ao Puro Lixo, completamente entusiasmado ou entediado. É que Valentin e Wedekind foram admirados por Brecht e ele poderia estar considerando uma heresia eu ter-me utilizado de procedimentos epicizantes como aqueles que estão presentes em O Despertar da Primavera.

Ou no caso do cômico Karl Valentin, de quem recebeu influências determinantes para a elaboração de muitas de suas obras, onde a ironia e o grotesco estão em sintonia e se abrem a uma educação dos sentidos, uma leitura crítica, sem didatismos. Melhor: tendo-se uma atitude racional e crítica perante o mundo, para não dizer que não falei de flores. Não tive como esquecer os cabarés alemães do pré-guerra, que produziu, dentre outras obras no cinema, Anjo Azul, fantasmal na montagem (escute a bela trilha de Eli-Eri Moura…) e… Quanto à ribalta, neste caso, perdeu seu chão, há tempo: preferi que ela se espalhasse pelos ares, por isso Luciana Raposo nos deu a luz que foi possível em tão precárias condições.

Equipe de Puro lixo: Samuel,Paulo,Stella Eduardo, Marinho e Gil: Manoel, Antonio e Igor. Foto Yeda Bezerra de Melo

Equipe de Puro lixo: Samuel,Paulo,Stella, Eduardo, Marinho, Gil; Manoel, Antonio e Igor. Foto: Yeda Bezerra de Melo

Como funcionam esses personagens anjos?

Como digo no programa da peça, são anjos que têm luz própria por serem anjos erráticos, cambiantes: “Por vezes, os atores Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira e Stella Maris Saldanha são eles mesmos; outras vezes, desfazem a si próprios: esse é o movimento desta peça em fragmentos. Os intérpretes têm consigo a incompletude de seus personagens. Há um fluxo de vozes que se cruzam no palco, como se um coro fizesse uma narração em que reverbera um esgarçado diálogo, um comentário fingido, uma citação identificável e, ao mesmo tempo, tudo atravessado. Neste ato de criação, neste jogo, há um prazer infindo. Poder-se-ia dizer que, nesse aspecto, nesse ponto, paira sobre o trabalho dos que compõem o elenco, uma espécie de gozo, pelo desdobramento de tantos seres alheios a cada um deles. Gozo pela vivência dos atos de criação, gozo coletivo, não solitário. Gozo por tomar figuras que devem ser tomadas como suas, mesmo que por pequenos átimos.” Nada a acrescentar ao que foi dito e trabalhando em cena. Arduamente.

A precariedade do Vivencial serviu de trampolim para criar uma estética de desbunde, da irreverência e da transgressão? Como isso chega ao espetáculo Puro lixo?

Chegamos a uma configuração estética por meio da transcendência (se isso é possível) ao desbunde, já tendo ele se firmado na cultura brasileira e especialmente no Recife. O desbunde e a irreverência estão enraizados em nós, como o Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, mas agora sob novas dimensões. Sob nova dentição.

Foi noticiado que o ator Gilson Paz protagoniza um manifesto contra o racismo no espetáculo? Como é isso? Há outros manifestos?

É tudo verdade e mentira. Como no teatro. É o momento mais evidentemente político do espetáculo, uma fratura na representação.

Você afirmou que “Os personagens e situações evocados são narrados, comentados, representados, sobretudo tratados com jocosidade e, ao mesmo tempo, pertinência, no que concerne à sexualidade e à realidade brasileira”. Gostaria de saber como entra essa jocosidade. Esse procedimento, que desperta ambiguidade, pode ser considerado tipo veneno, mensagem subliminar com endereço certo?

Não há perversidade alguma no que fazemos, mas celebração ao teatro de ontem, de hoje e de sempre. E, em se tratando de teatro, lá se espraiam a jocosidade, a seriedade, a sexualidade… E tudo isso no contexto em que vivemos: o Brasil.

“Não adianta fazer ou assistir teatro sem considerarmos as características do tempo em que vivemos. O teatro é o reflexo das realidades de uma época e não um fenômeno isolado cujas dificuldades sejam exclusivamente suas, mas de todo um processo criativo em crise.” O que dizer sobre isso?

Este era um texto-chave que o Grupo de Teatro Vivencial usou e abusou em várias de suas montagens. É o texto de uma época que ainda ressoa hoje, com certeza. Mas penso que todo processo criativo está em permanente crise, senão torna-se impossível viver sem estar em crítica permanente. Crise-Crítica. De raiz.

Sabemos que o Vivencial não nasceu unanimidade. Foram muitos embates e tensões enfrentadas pelo grupo, inclusive com a rivalidade de outros coletivos “mais sérios” da época. O tempo, como sempre, trata de canonizar pessoas, grupos etc. Como apontou João Silvério Trevisan, o Vivencial foi uma das experiências mais fascinantes e originais na transfiguração do lixo em beleza. Mas “Um dia o Vivencial acabou. Sua ambiguidade se esgotara, sua originalidade também. Não sei até que ponto o sucesso foi responsável por seu fim. Arrisco a dizer que o Vivencial não conseguiu sobreviver porque se aproximou demais dos centros de poder e, com isso, abandonou a difícil arte da corda bamba que a marginalidade lhe permitia. Secou. Ao absorver sua proposta, a sociedade cooptou o grupo e transformou-o num modismo rapidamente exaurido. Assim confiscou-lhe o passaporte para a poesia”.

Poderia comentar… os apontamentos de Trevisan?! O poder acaba com a irreverência e a poesia?

O próprio João Silvério Trevisan, responde de maneira enviesada (porque não trata agora do Vivencial), a questão maior que você levanta: se é possível hoje haver transgressão, em meio à sociedade do espetáculo. Copio o texto de Trevisan publicado no e-book do SESC Pernambuco (2016): “Nas circunstâncias atuais da sociedade espetacular e de cultura narcísica ser transgressivo (ou maldito) pode se reduzir a uma grife para conquistar mídia e mercado. Criou-se uma fórmula narcisista para aparecer graças à condição transgressiva. Hoje existem muitos artistas autointitulados marginais que cultivam a “maldição” como instrumento de marketing e, em consequência, de poder. Lembro de um personagem como o cantor Mano Brown, do grupo musical Racionais MCs. Ostenta há anos um discurso político cheio de chavões de rebeldia, bota pose de machão marrento em fotos de coluna social e chega a frequentar eventos burgueses para celebrar… a periferia. Chegou-se ao nível do mais autêntico radical chic (na expressão americana) ou revolucionário de algibeira. Em outras palavras, um maldito para alto consumo.”

Mas o que mais chama atenção no texto de Trevisan são algumas de suas considerações finais (infelizmente não pudemos publicá-lo no programa, por razões de ordem econômica): “Cabe aqui a pergunta: o conceito de transgressão perdeu o sentido e se esvaiu? Se transformado em fórmula para consumo, sim, sua força se esvaiu. Mas se levada até a última instância, a transgressão continua incomodando. Afinal, transgredir é próprio da criação, da poesia, da invenção que está na base de toda arte. Trata-se, tão somente, de subverter a subversão. A desmistificação do conceito de transgressão leva necessariamente à subversão do próprio conceito mistificado – e tem potencial para renovar a transgressão. O componente “maldito” permanece apesar e contra as aparências e obviedades, desde que mantenha sua transgressividade viva. Ao invés de consumir o rótulo de “maldito” como uma grife, é preciso lembrar que a transgressão não se confunde com um musical cheio de glamour, tal como faz crer a cooptação dentro da sociedade do espetáculo. Simplesmente não há glamour na vida que se põe à margem. O quotidiano na realidade de quem a sociedade coloca o rótulo de maldito acarreta, quase necessariamente, incompreensão, injustiça e dor, na medida mesma das punições impostas a quem diverge das regras impostas.” Tenho dito.

No que concerne à cena, muitos procedimentos adotados pelo Vivencial e que eram considerados sujeira ou falta de rigor formal, são adotados na produção da cena contemporânea. Poderia comentar?!

Muito do que hoje se considera “arte” pode ser qualquer coisa. Ali, havia uma necessidade estética e ideológica que permitia um rigor formal da sujeira. Hoje, não sei.

Qual a sua ligação com o Vivencial, além da montagem de Viúva, porém Honesta, de 1977, e do relacionamento com Beto Diniz?

Uma ligação próxima e, ao mesmo tempo distante com Guilherme Coelho e com todos os que eu pude conviver à época de Sobrados e Mocambos. Especialmente quando o grupo morava em Santa Teresa, em Olinda, e eu praticamente me mudei para lá. Mas havia, sobretudo, um encantamento por tudo que estava longe de meu horizonte de expectativas: aquela cena era tudo que eu admirava, mas jamais a faria como reprodução, por ter outra formação estética (no entanto, homenageei o Vivencial em um espetáculo que fiz na Universidade Federal da Paraíba, em junho de 1980: Soy loco por ti latrina e no programa escrevi algo assim: sem a estética do Vivencial, este espetáculo não teria sido viável). Amava a “sujeira” dos espetáculos do grupo, sua “precariedade”, mas era um encantamento para mim mesmo, deleite pessoal sem que reverberasse na minha cena.

Stella Maris Saldanha. Foto:

Stella Maris Saldanha. Foto: Rodrigo Monteiro

SERVIÇO
Puro Lixo – O Espetáculo Mais Vibrante da Cidade
Quando: de 13 de agosto até 4 de setembro, sempre aos sábados às 18h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho (Cais do Apolo, s/n, Bairro do Recife)
Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia-entrada)
Classificação: 16 anos
Informações: (81) 3355-3320

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Auto do salão do automóvel

Cena da montagem pernambucana Auto do salão do automóvel. Fotos: Divulgação

A montagem de Auto do salão do automóvel integra o projeto Transgressão em 3 atos, produzido pela atriz e jornalista Stella Maris Saldanha em parceria com Alexandre Figueirôa e Cláudio Bezerra. A ideia do projeto é ótima e foca em três grupos teatrais de Pernambuco e suas encenações. São eles o Teatro Popular do Nordeste (TPN), o Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e o Grupo Vivencial (Vivencial Diversiones era o nome da casa de espetáculos, em Olinda, e não o nome da trupe). A primeira peça montada foi Os fuzis da senhora Carrar, de Bertolt Brecht, que foi levada em 2010, como homenagem ao THBF.

A primeira encenação do Auto foi feita pelo TPN, em 1970. A direção seria de Hermilo Borba Filho, mas ele ficou doente e o médico o proibiu de fazer grandes esforços; então a tarefa foi repassada para o jovem diretor José Pimentel. Osman assistiu ao ensaio geral da peça e não gostou do resultado. Isso está registrado em cartas trocadas entre Osman e Hermilo, documentos que a produção teve acesso.

É uma ousadia montar Osman Lins, pela dificuldade que o texto impõe. E a produção merece admiração por isso.

Peça de Osman Lins foi encenada em 1970 pelo TPN

O cenário é o que mais se destaca. Formado por peças de veículos, carcaças de carros, o cenário está distribuído nos vários cantos do palco e isso já determina a encenação. Os atores também ocupam seus lugares em cinco pontos distintos e a partir disso fazem suas movimentações ora no centro ou em outro lugar do palco.

O elenco é formado pelos atores Alexandre Guimarães, Evandro Lira, Roger Bravo, Stella Maris e Zé Ramos, que fazem vários personagens, entre guardas de trånsito, motoristas e outros. A direção é assinada por Kleber Lourenço.  A montagem fez cortes no texto e deu agilidade a alguns fragmentos, com a utilização do diálogo. Mas esse ajuste não se opera a contento no todo da peça. Então é irregular a interferência na dramaturgia osmaniana.

O sempre bom José Ramos dá seu recado, mas permanence numa zona de conforto de tudo que já conquistou como ator. Lógico que é bom vê-lo no palco, pela força e vitalidade de intérprete. Mas poderia ir além. Roger Bravo cresce nos vários papeis que interpreta, levando em consideração o seu trabalho em Os fuzis da Senhora Carrar. A sempre linda em cena Stella Maris continua bela com sua postura cênica. Mas não há muitas variações entre os personagens que interpreta. Um pouco menos daquela postura professoral, assumida principalmente na voz, daria flexibilidade nas várias figuras que ela defende no palco. O quadro Cruzamentos me pareceu com indicações errôneas para que a atriz empreendesse o grande voo da encenação.

Roger Bravo e José Ramos estão no elenco

O texto de Lins é difícil de se instalar no palco. E mais de 40 anos após sua escritura pegar o caminho do trânsito caótico e da mobilidade urbana parece um reducionismo. Também não consigo perceber a força da mão da direção. O elenco como um todo não arrisca, pega o beco mais fácil, inclusive com alguns vícios. Não vejo transgressão na encenação. E chego à conclusão que esse Auto do Salão do automóvel não alcançou a grandeza de Osman Lins.

Stella Maris Saldanha

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Para não perder o encanto – e o público

Avaliação pública do Festival Recife do Teatro Nacional 2011. Foto: Val Lima

Na sua festa de debutante, ano que vem, quando completa 15 edições, o Festival Recife do Teatro Nacional precisa se reinventar. Atualizar a sua função e importância não só para o público em geral, mas também para os artistas que ajudou a formar na cidade. Mesmo que os números não denunciem, já que os espectadores nos teatros até aumentaram do ano passado para cá – de 4.794 para 5.089 pessoas – o fato é que, quem acompanhou os 12 dias de festival, sentiu os teatros esvaziados em muitas apresentações.

Talvez seja um reflexo, como foi levantado pelo próprio secretário de Cultura do Recife Renato L, presente na avaliação, da proposta curatorial defendida pelo jornalista e pesquisador de teatro Valmir Santos: apostar no teatro de grupo, de pesquisa, e na apresentação de peças dos seus repertórios, deixando de lado grupos mais conhecidos na cidade, que estariam sempre se revezando na programação de anos anteriores. Proposta ousada e que se mostrou importante tanto para o público quanto para os artistas que acompanharam as sessões.

A Companhia Hiato, por exemplo, de São Paulo, nunca tinha vindo ao Nordeste e teve a oportunidade de apresentar os seus três espetáculos: Cachorro morto, Escuro (que abriu a programação do festival) e a comovente O jardim. “A proposta era povoar os palcos com criadores que nunca tinha passado pela cidade. Núcleos que necessariamente não têm muita estrada, mas experiências interessantes. Jovens criadores que dialogam com a tradição, com espetáculos que não são fruto do mero ímpeto juvenil”, disse Valmir Santos. A Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba, também trouxe três peças: Oxigênio, Vida e Descartes com lentes. O instigante e difícil dramaturgo e diretor Francisco Carlos, do Amazonas, trouxe duas peças da sua tetralogia Jaguar cibernético.

Paulo Vieira, professor, ator e diretor da Paraíba, foi convidado para acompanhar o festival e realizar uma avaliação crítica. Vieira lembrou do tempo em que “era um jovem ator de pouco mais de vinte anos, quando vim com um grupo de amigos com os quais eu trabalhava, exclusivamente para assistir aos espetáculos que varavam a noite do Vivencial. Era a linguagem de um teatro que gostaríamos de ter por perto, de ver mais vezes e se não exatamente fazer igual, ao menos com ele reabastecer as emoções que o teatro proporcionava”. O grupo Vivencial, que teve sua história contada através de uma série publicada no Diario de Pernambuco semana passada, foi o homenageado do festival.

Mas o avaliador fez críticas, como a escolha do espetáculo Escuro, que não era “alegre, esfuziante”, como a noite de homenagem ao Vivencial pediria e denunciou as más condições da escola municipal Antônio Farias, no bairro de San Martin, que recebeu uma apresentação da montagem O encontro de Shakespeare com a cultura popular: Romeu e Julieta, do Ceará. “A degradação do ambiente me provocou a sensação de estar em uma antessala de penitenciária”.

Para o coordenador do festival, Vavá Schön-Paulino, ainda há algumas questões que em 14 anos de mostra ainda não conseguiram ser solucionadas, como uma bilheteria informatizada, um espaço de convivência do festival e um local para a central de produção. A divulgação do festival, um calo da sua organização, também recebeu críticas. A programação foi divulgada apenas com uma semana de antecedência, o site só ficou pronto quando o festival já estava acontecendo e o programa completo da mostra estava disponível já no fim do festival. Apesar disso, o clima foi amistoso e, apesar de não haver ainda uma definição sobre se Valmir Santos será o curador do ano que vem, o festival deve de alguma forma homenagear o centenário de nascimento do pernambucano mais importante da história do teatro nacional: Nelson Rodrigues.

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Universo particular

O jardim é o espetáculo mais recente da companhia Hiato, de São Paulo. Fotos: Otávio Dantas

O que esta geração de vinte e poucos anos tem a dizer através da arte? Se não precisamos mais caminhar contra uma ditadura, enfrentar a censura como bêbados ou equilibristas? Quem se arrisca na resposta é Leonardo Moreira, 29 anos, dramaturgo e diretor da Companhia Hiato, de São Paulo. “Partimos do particular para assumir uma postura política. Temos uma atitude política que não é mais partidária, que não propõe uma transformação política radical. Até porque não acredito nessa história de que uma obra de arte possa transformar alguém. Acredito que essa obra possa ser um impulso, a partir de um caminho emocional, já que o que fazemos é teatro”.

Leonardo é um dos representantes de uma geração de artistas que coloca uma lupa no particular para enxergar o todo; mas que não necessariamente está interessada em re-inventar a roda. “Só é possível criar novas formas a partir das outras já existentes. Para mim, o nosso papel é sermos honestos com as nossas transformações”.

A companhia da qual o encenador faz parte, criada em 2007, está na cidade para participar do Festival Recife do Teatro Nacional, que começa hoje e segue até o dia 28 com espetáculos nos teatros Luiz Mendonça, Santa Isabel, Hermilo Borba Filho, Apolo, Barreto Júnior e Marco Camarotti. O foco desta edição, que tem como tema Desafio convivencial (uma alusão ao grupo Vivencial, homenageado pelo evento), é o teatro de grupo. São sete companhias nacionais e quatro locais, somando 16 espetáculos.

Se a Hiato nunca esteve nem no Nordeste, agora o público recifense terá a oportunidade de conferir os três espetáculos do seu repertório: Cachorro morto, Escuro e O jardim. A abertura do festival será com Escuro, às 21h, no Teatro Luiz Mendonça, no Parque Dona Lindu, em Boa Viagem (a entrada hoje será gratuita). Antes disso, o coordenador do festival Vavá Schön-Paulino pretende realizar um encontro histórico: reunir no palco os fundadores e integrantes do grupo Vivencial, inclusive Guilherme Coelho, que mora em Brasília e virá especialmente para o festival.

Escuro é o segundo espetáculo da Cia Hiato. Foi quando o grupo decidiu “oficializar” a companhia. O primeiro, Cachorro morto, foi realizado “sem maiores pretensões. Nós já fazíamos alguns trabalhos juntos e depois de um processo de sete meses, tivemos não só sucesso nas temporadas, mas encontramos afinidade nos temas e nos modos de trabalho”, explica Moreira. Em Escuro, o grupo parte do tema deficiência para explorar coisas que vão muito além. “Queríamos falar de como cada perspectiva é única. O próprio nome Hiato vem dessa constatação. Qual a lacuna entre o que estou dizendo, o que você está entendendo, o que o público que vai ler essa matéria irá captar?”, questiona.

Escuro abre programação do Festival Recife do Teatro Nacional 2011

O mote é um menino míope que vai participar de um torneio de natação para deficientes e outros personagens, num total de 10 protagonistas, se agregam ao espetáculo, que teve uma influência dos roteiros cinematográficos. Escuro ganhou o Prêmio Shell de Teatro de melhor autor, cenário e figurino; e o Prêmio de Melhor Espetáculo de 2010 pela Cooperativa Paulista de Teatro. “Queremos investigar quais os formatos e que histórias nos servem hoje? Não estamos mais na década de 1990, no videoclipe. Que narrativa eu crio quando entro no facebook, vou para outra e outra página? Estamos pensando em como essas narrativas se estabelecem e nas formas de recepção do público”. Certamente quem for ao teatro ainda terá outras perspectivas – quem sabe ajude a diminuir os hiatos?

O repertório da Hiato

Escuro
Um menino míope com a capacidade de ouvir segredos passa a tarde mergulhando na piscina do clube. Uma senhora recebe a costureira para aulas de natação, mas sem a piscina, elas usam tigelas de água. Um homem perde a fala enquanto ensaia o discurso em aquários vazios. Uma professora prepara a aluna para um torneio de deficientes. O espetáculo de 2009 abre espaços de irrealidade em um dia, nos anos 1950, de quatro núcleos de personagens.

Cachorro morto
Thiago sabe de cor todos os países do mundo e suas capitais, assim como os números primos até 7.507. Luciana gosta do estado de Massachussets, mas não entende nada de relações humanas. Maria Amélia adora listas, padrões e verdades absolutas. Aline odeia amarelo e marrom e, acima de tudo, odeia ser tocada por alguém. Todos esses atores mergulham na ficção para emprestar seus corpos e emoções a outra vida e, ao confundir realidade e ficção, contam a história de um portador da Síndrome de Asperger. O espetáculo estreou em 2007.

Primeiro espetáculo do grupo partiu do autismo para refletir normalidades

O Jardim (dias 22 e 23, às 21h, no Teatro Luiz Mendonça)
A partir das biografias dos atores, o grupo criou uma ficção, tendo como mote o mal de Alzheimer. A plateia pode assistir ao espetáculo de diferentes maneiras cronológicas, de acordo com o local onde sentar: a cena pode se passar em 1938, 1979 ou 2011. O cenário de caixas é construído e reconstruído em cena, de modo a criar mundos imaginários e transformar momentos já vistos em lacunas. O espetáculo, que estreou este ano, fala da memória a partir de vários primas, desde aquela que queremos perder até a que fazemos de tudo para recuperar.

Programação da semana

Escuro / Companhia Hiato (SP)
Hoje e amanhã, às 21h, no Teatro Luiz Mendonça. Informações: (81) 3355-9821

Oxigênio / Companhia Brasileira de Teatro (PR)
Quinta e sexta, às 21h, no Teatro Hermilo Borba Filho. Informações: (81) 3355-3318

Áfricas / Bando de Teatro Olodum (BA)
Sexta, às 19h; e sábado, às 16h30, no Teatro de Santa Isabel. Informações: (81) 3355-3323

Madleia + ou – doida / Companhia do Chiste (PE)
Sábado e domingo, às 21h, no Teatro Hermilo Borba Filho. Informações: (81) 3355-3318

Cachorro morto / Companhia Hiato (SP)
Domingo e segunda-feira, às 19h, no Teatro Apolo. Informações: (81) 3355-3318

Ingressos: R$ 5 (com exceção da abertura do festival hoje, que é gratuita. Os ingressos podem retirados na bilheteria a partir das 18h)

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