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A imperdível Jacy

Quitéria e Henrique no espetáculo de Natal. Foto: Daniel Torres / Divulgação

Quitéria e Henrique no espetáculo de Natal. Foto: Daniel Torres / Divulgação

Jacy é daqueles espetáculos que a gente vê e revê e quer abraçar de novo, porque alimenta nossos afetos ao traçar, na tensão entre real e ficcional, a vida de uma mulher chamada Jacy Lisboa Lucena, que nasceu em 1920 no município de Ceará Mirim, cidade que se avizinha a Natal. A montagem nos ganha pela inteligência e bom-humor. Jacy, que tem uma pulsação que se renova a cada sessão com sacadas geniais e um tempo perfeito, faz curta temporada no Recife, desta sexta-feira a domingo (dias 25, 26 e 27 de agosto), no Teatro Hermilo Borba Filho.

Com direção de Henrique Fontes, a peça surgiu em 2010, depois que Fontes achou a frasqueira abandonada de uma mulher de 90 anos em uma avenida de Natal, no Rio Grande do Norte. A mala continha radiografias, agenda telefônica, maquiagens e outros pequenos objetos.

Nesse inventário afetivo, acompanhamos Jacy, que apaixonou-se por um capitão norte-americano durante a 2ª Guerra Mundial, envolveu-se em conflitos políticos na capital potiguar, atravessou a Ditadura Militar no Rio de Janeiro, e morreu solitária na primeira década dos anos 2000. Mas a encenação é muito mais que a trama. 

O espetáculo foi escrito pelos filósofos Pablo Capistrano e Iracema Macedo, em colaboração com a dupla que atua, Quitéria Kelly e Henrique Fontes. A dramaturgia tece os caminhos de Jacy em cruzamento com a história da capital do Rio Grande do Norte, com a exposição do nepotismo e do coronelismo nos poderes.

A árvore genealógica de uma cidade e dos políticos que ocupam os cargos de comando – suas alianças para se perpetuar no poder -, é traçada e atualizada com dados da realidade brasileira.

Outra atuação da dramaturgia cabe ao videomaker Pedro Fiúza, que usa recursos audiovisuais ao vivo para amplificar a narração dos atores e editar os conflitos, com cortes ou justaposições.

Na contramão dos valores da sociedade de consumo, a montagem valoriza os idosos e suas histórias. No nosso capitalismo selvagem, os velhos são descartados como se fossem lixo, como ocorreu com a frasqueira cheia de lembranças de Jacy.

Por sorte, caiu nas mãos do Grupo Carmin, que investe no teatro documental e cria um jogo entre o passado e a efemeridade do presente. A trupe potiguar fala de um tempo que vai chegar para todos nós, se tivermos sorte, o envelhecimento.

O grupo Carmin, que comemora 10 anos de existência, lança no sábado, 26/08, no próprio Teatro Hermilo, o livro Década Carmin, registro da trajetória a partir de quatro textos: Pobres de Marré (2007), Jacy (2013), Por Que Paris? (2015) e A Invenção do Nordeste (2017).

Fiúza, Quitéria e Henrique

Fiúza, Quitéria e Henrique

SERVIÇO
JACY – Grupo Carmin
Quando: Dias 25,26 e 27/08/17, Sex. e Sáb. às 20h e dom. Às 19h.
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho (Av. Cais do Apolo, S/N – Recife antigo).
Quanto: R$ 30,00 (inteira) e R$15,00 (meia) www.sympla.com.br/teatrocarmin

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Nomeando Jacy*

Jacy, espetáculo do Grupo Carmin, de Natal. Foto: Jennifer Glass

Jacy, espetáculo do Grupo Carmin, de Natal. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

O espetáculo do Grupo Carmin, de Natal, Rio Grande do Norte, se apresenta pela primeira vez em São Paulo na Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo da Cooperativa Paulista de Teatro. Combinação de projeto, obra do acaso e investigação (artística e quase policial), a gênese da criação da peça, escrita em colaboração com os filósofos Pablo Capistrano e Iracema Macedo, é compartilhada com os espectadores pela atriz Quitéria Kelly, pelo ator, diretor e dramaturgo Henrique Fontes, e pelo cineasta Pedro Fiuza, que com palavras e imagens nos relatam duas aventuras paralelas. Uma delas é a criação de uma peça que começou como uma pesquisa sobre a velhice e que foi atravessada por uma história que eles não puderam ignorar. A outra é essa história que eles não puderam ignorar, a vida de uma mulher chamada Jacy, que nasceu em Natal, se emancipou com a II Guerra Mundial, mudou-se para o Rio de Janeiro, foi amante de um militar americano que ministrava treinamentos suspeitos para os militares brasileiros durante a ditadura, e voltou para Natal para morrer no esquecimento. Até que um artista de teatro se deparou com uma imagem na rua.

A conexão entre as duas histórias é justamente essa imagem, uma imagem performativa (se é que se pode dizer algo assim), que fez uma interpelação, como um ato de fala de uma aparição. Andando por uma rua de Natal no ano de 2010, Henrique se deparou com papeis voando de um saco de lixo, entre móveis e objetos recém-descartados, entre eles uma frasqueira daquelas que mulheres de alta classe usavam nos anos 1960. Dentro dessa frasqueira, documentos, artigos de maquiagem, cartas, cartões e objetos pessoais de Jacy. Assim se deu o encontro casual de um homem com um objeto jogado no lixo, que se revela uma sintonia muito fina do acaso com a fortuna e resulta num encontro minuciosamente elaborado do teatro com a história.

A peça é sobre Jacy, mas também é sobre a velhice e sobre o teatro. E é sobre as imagens e a nossa capacidade de se deixar atravessar por elas a ponto de alterar as nossas rotas previamente programadas. O sentido da criação artística é o desvio e, em alguma medida, o da vida de Jacy também. O desvio aqui foi causado por uma interpelação do acaso, um chamado, como se a imagem tivesse dito “Henrique!” e ele entendeu que era com ele. Como vimos no palco do Centro Cultural São Paulo, Quitéria dedica o espetáculo a Jacy, chamando seu nome, como quem devolve a interpelação. Ela diz: “Jacy, onde você estiver, etc.”

Seria possível escrever sobre o espetáculo a partir de diversos pontos de vista. O trabalho é um prato cheio de questões atuais e relevantes sobre a cidade de Natal, a ideia de Nordeste, a história do Brasil, a presença das famílias de poder na política brasileira, os procedimentos de encenação teatral, as poéticas contemporâneas de dramaturgia de teatro documental e suas técnicas de atuação, bem como as implicações entre escrita ficcional e narrativa historiográfica. Mas escolho, tendo em vista o curto prazo e o pequeno espaço, apenas chamar a atenção para o gesto de nomear, interpelar, convocar. Nesse caso, convocar os mortos, convocar uma mulher, falecida, a contar a sua história. Desvelar a vida de Jacy, tirá-la do anonimato, pronunciar seu nome, é um gesto tão artístico quanto político, uma forma de assumir a responsabilidade sobre a memória de alguém, ressuscitar afetos, reescrever as histórias e a história de um lugar de fala nada oficial.

Peça traz história de personagem real, permeada pela ficção

Peça traz história de personagem real, permeada pela ficção

Ouvimos a história pessoal, tão real quanto fictícia, de Jacy, uma mulher independente, amante, escritora de cartas, que não seguia as regras do seu meio, e nos damos conta de que vivemos hoje no Brasil um momento de grandes revoluções nas mentes e ainda maiores retrocessos na política no que diz respeito ao entendimento do que é uma família. E temos que, em pleno 2015, defender com unhas e dentes os direitos da mulher sobre o seu próprio corpo. O lugar da mulher na sociedade brasileira está à flor da pele na história pessoal de Jacy, como relatada pela dramaturgia do espetáculo. A família, como instituição, também está em cheque na peça do Grupo Carmin. E a velhice, questão política e social da maior importância, pontua a história da mulher, da família e do país com delicadeza diligente.

E tem um Brasil ali. O fato de que o ponto de vista da peça é marcado pelas ruas e pela história
de Natal é justamente o que oferece aos espectadores um olhar específico, particular, criativo, um olhar autoral para essa massa informe de imagens e narrativas que é a ideia de um país. Esse olhar autoral é o que cria mundos e, em consequência, dá a ver o que cria.

Jacy é daquelas peças que fazem a gente ver que o teatro está no mundo e que o teatro é muito importante. Como Jacy, essa figura possivelmente encantadora que parecia não ser ninguém especial para quem estava à sua volta, o teatro tem passado despercebido nas narrativas e nas imagens sobre história, memória e identidade brasileiras. Descobrir Jacy é descobrir o teatro, a maravilha da criação real-ficcional a partir de uma imagem, de um acaso, de uma convocação que muda o percurso programado, (re)descobrir, mais uma vez, que o teatro tem muito a dizer e que os modos de dizer do teatro têm força de interpelação.

Ficha técnica
Textos: Pablo Capistrano e Iracema Macedo
Dramaturgia: Henrique Fontes e Pablo Capistrano
Direção: Henrique Fontes
Assistente de direção: Lenilton Teixeira
Consultoria: Marcio Abreu
Atores: Quitéria Kelly e Henrique Fontes
Videomaker: Pedro Fiúza
Designer de Luz: Ronaldo Costa
Direção artística e cenografia: Mathieu Duvignaud
Trilha sonora original: Luiz Gadelha e Simona Talma
Coordenação de produção: Quitéria Kelly
Assistente de produção e desenhista: Daniel Torres
Designer gráfico: Vitor Bezerra
Fotógrafo: Vlademir Alexandre

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*Crítica escrita por Daniele Avila Small – Questão de Crítica/DocumentaCena**
**A DocumentaCena – Plataforma de Crítica articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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