As sete primeiras palavras pós-calvário de Gólgota
Por Pollyanna Diniz – Satisfeita, Yolanda?
Introdução
É de tirar o fôlego, embrulhar o estômago, aflorar os nossos instintos de manifestante em tempos de passeatas midiáticas, quando juntamos tudo no mesmo bolo – gritamos contra a corrupção, pedimos por melhorias nos transportes e aproveitamos para falar de saúde, educação, sem nos esquecer de emitir opiniões pelo Facebook e postar a foto com filtro no Instagram. Enquanto um protesto fechava o trânsito na Avenida Paulista e ativistas subiam ao palco por conta do cavalo utilizado na performance Eu não sou bonita, de Angélica Liddell, a companhia La Carnicería Teatro apresentava Gólgota Picnic no Sesc Vila Mariana, dentro da programação da MITsp.
Público caído
O lugar de espectador contemplativo é desestabilizado. Seja pelo cheiro dos 25 mil pães de hambúrguer que compõem a instalação cênica, pelas minhocas colocadas no sanduíche, pela tinta azul e vermelha aplicada como veneno nos corpos dos atores. Mas esse espaço não chega a ser deslocado. Mesmo com uma obra que desperta tanta polêmica, a opção de atingir só até determinado limite estabelece uma falsa ilusão de segurança, de barreiras não rompidas. Por que, afinal de contas, quem somos nós, os espectadores? Que lugar ocupamos no rosário de críticas desfiadas à sociedade de consumo?
Sobre McDonald’s e cadeiras de piquenique
Se todo teatro é eminentemente político, o trabalho de Rodrigo García não se estabelece, mas transita pelos limiares do panfletário, da construção calcada em clichês e superficialidades. Mas, ao mesmo tempo, numa linguagem virulenta, o acúmulo de signos constrói a potência do discurso cênico que se rebela contra o estabelecido da nossa sociedade capitalista. O lugar de quem critica também é exposto e ridicularizado: o que queremos é participar do piquenique e satisfazer os nossos próprios desejos.
Toma que o calvário é teu
As diversas referências às artes plásticas, Rubens, Giotto ou Antonello da Messina, nos fazem compor os nossos próprios quadros sacros e profanos a partir da fruição da performance dos atores, do texto, das imagens projetadas no palco, da música. A desconstrução do símbolo de Jesus é a nossa própria demolição como sociedade que deu errado. O calvário de Jesus agora é compartilhado com o público.
O pão espetacularizado
É da sociedade de espetáculo, termo criado e problematizado por Guy Debord, que fala sobre relações sociais mediadas por imagens, da produção e do consumo de mercadorias, que a encenação de Rodrigo García, argentino radicado na Espanha desde o fim da década de 1980, se alimenta para criar desdobramentos que transbordem o palco. O pão, alimento símbolo do corpo de Jesus para os cristãos, é dessacralizado, perde o seu valor e mostra a fragilidade do próprio corpo.
O corpo coberto por tintas e significados
As camadas de significações se sobrepõem no espetáculo assim como as roupas tiradas e colocadas durante toda a encenação pelos atores. O movimento de troca constante, que oscila entre a nudez e o completo preenchimento das tintas, é um reflexo do público e dos seus estados durante a montagem. O teatro de Rodrigo García não é espelho do real, mas nos faz dialogar dialeticamente com as questões políticas e sociais do nosso tempo.
A calmaria da redenção?
Uma última e rápida consideração sobre Gólgota Picnic diz respeito à mudança de estado no palco e na plateia que é proposta pela música de Joseph Haydn. Depois de tantos estímulos, da rapidez midiática, a música nos consola no primeiro momento. Refúgio pós-trauma do calvário performático da companhia espanhola. Mas, depois, é como se o tempo de respiro fosse longo demais para um público que voltará ao Gólgota assim que cruzar a porta do teatro.
Pão e tinta
Por Daniele Avila Small – Questão de Crítica
Gólgota Picnic, de Rodrigo García, oferece ao espectador um banquete, uma cornucópia de imagens e ideias, cuja abundância solapa qualquer possibilidade de síntese já nos primeiros vinte minutos de espetáculo. Tentar descrevê-lo ou resumi-lo em poucas palavras é correr um sério risco de chafurdar em platitudes, mas o esforço de tentar falar de algo de que não podemos dar conta é inevitável quando se pretende o exercício crítico.
Tomando o título como ponto de partida, podemos apontar duas questões centrais do discurso da peça. A propósito, valeria analisar, em um texto mais longo, os diferentes regimes da fala monológica, que transita tanto pelo discurso proferido à plateia quanto por momentos que remetem à confissão ou à narração. As duas questões centrais me parecem ser, por um lado, a narrativa bíblica com suas imagens de terror, sendo o episódio da crucificação no Gólgota a epítome disso, e, por outro, a relação doentia que a nossa sociedade tem com a comida. As duas ideologias, que são alvo das críticas explicitadas com refinado humor e perspicácia no texto falado, são aproximadas por sua força de propaganda, tendo o pão como imagem de encontro dos dois universos – o pão que é a base da fast food e um ícone da propaganda nas imagens de hambúrgueres; o pão multiplicado pelo milagre de Jesus Cristo. A cenografia dá a ver essa ideia de uma maneira surpreendentemente literal: o chão do palco é coberto por uma quantidade imensa de pães de hambúrguer, que desenham o chão do Gólgota como numa imagem pontilhista.
A arte também é alvo de questionamentos por suas contradições, pelo fato de a linguagem também ser usada na arte para embelezar o terror ou para entreter e nos distrair do que nos falta. Anish Kapoor, que é textualmente mencionado, é acusado de colorir a dor. Instituições como o Louvre e diversos museus da Europa também são trazidas à tona. “Devem ser queimadas”, diz o texto, em uma daquelas frases divertidamente cretinas que revoltam os que não têm humor. O espetáculo menciona artistas e obras do Renascimento assim como mestres primitivos flamengos, que representaram o calvário com sua crueldade sanguinolenta, ao mesmo tempo em que faz referências ao cinema de terror norte-americano, inserindo a dicotomia arte/entretenimento no seu banquete discursivo.
Como numa tentativa de sacudir a nossa já assimilada apatia diante das atrocidades que vemos todos os dias, Gólgota Picnic apresenta algumas imagens de grande impacto. Da exposição asquerosa do bolo alimentar na sua incômoda semelhança ao vômito até a belíssima imagem da atriz flutuando nas nuvens com o corpo revestido da imagem de Cristo, com seus cinco estigmas gritando vermelho sobre o fundo azul do céu e do mar. A sensualidade de peles e pigmentos também é de grande apelo visual e tátil. E o santo sudário de um corpo inteiro de tinta me fez pensar na relação de fé e devoção que podemos ter com as obras de arte.
A mudança da primeira para a segunda parte desconcerta o corpo. Depois de um bombardeio de referências, de imagens de forte apelo visual e de textos que ativam o pensamento e a reflexão a respeito de temas concretos, o corpo e a mente precisam se afinar para a lida com um regime de fruição absolutamente distinto. A peça de Haydn, nas mãos de Marino Formenti, incrustada naquele cenário desolado, ganha uma carga emotiva de tirar o fôlego. É como se o espetáculo nos convidasse a catar a aura da música no lodaçal de pão de hambúrguer da vida urbana contemporânea.