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Dança das origens
Crítica do espetáculo À un endroit du début

Germaine Acogny em À un endroit du début. Foto: Thomas Dorn / Divulgação

Germaine dança para seu pai, sua avó paterna e suas heranças africanas. Foto: Thomas Dorn / Divulgação

A performance multimídia À un endroit du début (Em Algum Lugar no Início), de Germaine Acogny, se move junto à biografia dessa dançarina e coreógrafa africana de carreira singular. Nesse solo, seus movimentos envolvem uma vida;  atravessam várias gerações; e ainda, abarcam memórias de colonialismo, origens e antepassados, tradição, identidades múltiplas, questionamentos contemporâneos.

As palavras de seu pai, um funcionário colonial; as vivências da sua avó, sacerdotisa vudu do Dahomey  (um reino africano que existiu entre 1600 e 1904, foi derrotado pelos franceses e o país foi anexado ao império colonial francês), abrem caminhos no tempo. Por gestuais e falas dessa artista de 76 anos, de vitalidade invejável, À un endroit du début exibe-se como um espetáculo desconcertante, de incrível força, visceral e emocionante.

Germaine Acogny entra em cena, senta-se no palco e lê um trecho do diário Narrativas de Aloopho. “Terminando de escrever sua biografia, meu pai diz”:

Permitam-me formular um desejo: que os homens, todos os homens, independentemente das suas origens e concepções religiosas ou filosóficas, se conheçam complementares uns dos outros e estabeleçam o diálogo indispensável. Veremos que os preconceitos cairão uns após os outros e que a terra será propriedade de todos. Viena, 10 de Agosto de 1979, Togoun Servais Acogny.

Em seguida, a artista apaga uma vela e olha para a foto projetada do pai, que parece lhe sorrir.

Togoun Servais Acogny foi administrador das colônias no Senegal dos anos 1950 e exerceu a função de diplomata em Viena. No livro paterno – não publicado – ele fala de coisas que o afetaram na época. A mãe de Togoun, Aloopho, uma sacerdotisa Yoruba, deu à luz aos 60 anos. Germaine conclama essas duas figuras para traçar sua história pessoal e familiar, provocando intepretações sobre o papel da mulher na África.

A dançarina lê em voz alta, canta, escreve palavras no ar, se desloca no espaço, honra seus antepassados convocando os rituais da avó, reclama memórias de infância submersas em enigmas.

Toi, Aloopho, ma mère, aujourd’hui tu n’est plus, ton souvenir s’efface, tu es Dieu toi même… tu as eu foi en tes Dieux et cela a suffit pour m’enggendrer. Si je remarque des erreus sur la route que tu m’as tracée, je sais au moins qu’elle ne t’a point conduit, toi, à une vie dépravée. Togoun Servais Acogny.

Tu, Aloopho, minha mãe, hoje já não és mais, a tua memória está a desvanecer-se, tu és Deus tu mesma… tiveste fé nos teus Deuses e isso foi o suficiente para me atormentar. Se eu reparo nos erros do caminho que me traçaste, pelo menos sei que ele não te conduziu, a ti, a uma vida corrompida. Togoun Servais Acogny.

A um lugar do início denuncia a negação feita pelo pai da artista aos costumes cerimoniais ancestrais senegaleses – defendidos por sua avó -, influenciado pelo colonialismo e pela conversão ao catolicismo. Ela exprime uma sociedade em guerra de valores em movimentos fortes, que passam inevitavelmente pela fúria contra os brancos e pontos de inadequação com sua própria comunidade. 

No coração dessa cena, uma dançarina feminista denuncia a violência contra as mulheres e acusa a poligamia, defendida por seu pai “convertido”. Celebra a herança abjurada, com seus cantos e danças mágicos. Ela vai ao seu lugar de início. E questiona o apagamento da memória comunitária, de uma identidade fraturada.

Moi, Togoun Sevais Acogny, j’avais 9 ans quand on m’a inculqué l’idée que les Dieux de ma mère, Aloopho, étaient des démons. “Le fétiche de Python” , me disait-on, s’est transformé en homme et a fait manger la fruit défendu à Eve . Tout cela a fini par provoquer en moi la haine des fetiches de ma mère. 

Eu, Togoun Sevais Acogny, tinha nove anos quando fui ensinado que os deuses da minha mãe, Aloopho, eram demônios. “Le fétiche de Python” , diziam-me, transformou-se em homem e fez Eva comer o fruto proibido. Tudo isso acabou por me fazer odiar os amuletos da minha mãe.

Facas projetadas refletem o corte das tradições. A artista se move angustiada entre as escolhas de seu pai e as ações de sua avó. Germaine traduz outros conflitos íntimos com sua dança. Foto Thomas Dorn

Germaine Acogny gosta de se apresentar como “uma mulher negra, nascida em Bénin, etnia yoruba, crescida no Senegal, divorciada com dois filhos, recasada com um alemão”. Desde a montagem do solo autobiográfico À un endroit du début, em 2015, ela prefere chamar-se “Germaine Marie Pentecôte Salimata Acogny”. Ela nasceu no dia de Pentecostes em 1944, e foi batizada duas vezes, na religião católica e mulçumana. 

O questionamento feminista de Germaine é espiralado nesse espetáculo em que a mulher sofre, se revolta, exalta, desconstrói paradigmas culturais, reconstrói atos contemporâneos, mas não larga as essências da tradição impregnadas nas suas células ancestrais e familiares. Sua dança está carregada dessa porosidade. Entre mutações e influências do tempo, em movimentos coloniais, religiosos, sociais.

as ideias de seu pai, que expõe os inconvenientes da monogamia e do casamento na igreja

A encenação do franco-alemão Mikael Serre cruza a dança, a narração, o teatro e a projeção de fotografias e de filmes (captações documentais e criações de Sébastien Dupouey). Mikael Serre já disse que “Germaine encarna o que quase todos nos tornamos, humanos em trânsito, exilados, convertidos e reconvertidos”.

O vocabulário gestual da bailarina está carregado das figuras tradicionais da dança africana e do contemporâneo, inspirados ainda nos bamboleios do trabalho de campo ou de casa. Um solo, com o palco vazio, repleto de uma população. Da família de Acogny, da herança africana, do multiculturalismo. Passa por diversos estados emocionais, da contemplação, transe, cólera, oração. Uma cortina de fios, na qual  são projetados  testemunhos e imagens do pai de Germaine, serve de provocação cognitiva de orgulhoso e rebeldia.

A música composta por Fabrice Bouillon alimenta a mudanças de pulsação coreográfica. São potentes os movimentos de seus braços e quadris fortes, sublinhando nos seus passos as forças ancestrais. Ela manipula com vigor a parte inferior do seu vestido longo criando outras formas. 

Filmagens de ações culturais no Senegal.

As influências de Germaine são complexas, dos estudos da dança em centros importantes da Europa às heranças artísticas e identitárias. Em 1960 ela se mudou de Dakar, Senegal, para a França em busca de dança moderna e treinamento de balé. Entre 1977 e 1982, Germaine dirigiu a Mudra Afrique, em Dakar, uma escola de dança idealizada por Maurice Béjart (1927-2007) e pelo primeiro presidente senegalês (1960 a 1980), Leopold Senghor (1906 – 2001) – poeta que cunhou, junto com o poeta antilhano Aimé Césaire (1913 – 2008), o termo “negritude”. Em 1998, Germaine cofundou a l’École des Sables (Centro internacional de danças tradicionais e contemporâneas africanas), em Toubab Dialaw, Senegal, com seu marido Helmut Vogt.

Essa autobiografia dançada forte e impactante, no entanto, não se oferece fácil na escolha plural de linguagens: memória; ficção; posicionamentos existenciais, poéticos e políticos, nessa profusão de imagens e textos, narrativas e reportagens sobre o Senegal, coreografia e questionamento social.

Depois de passar por diversos estados e tempos no palco, Germaine Acogny aparece com uma fantasia de gris gris (amuleto feito por um feiticeiro para dar sorte e conjurar os maus feitiços), uma sinalização de que é preciso preservar a memória. Mas também se despe da alegoria, lembrando que a tradição não deve engessar seus passos.

As suas últimas palavras, dirigidas ao seu pai, “Perdoo-te”, são de grande poder. Ela que se autoproclama “réincarnation” de sua avó Aloopho diz: 

Papa,
Je suis ta mère.
je te baptise.
je te pardonne

O espetáculo teve transmissão em vídeo gravado e exibido no contexto do Festival Janeiro de Grandes Espetáculos, do Recife. Não me pareceu a melhor filmagem do espetáculo. A produção do festival também não considerou que seria necessário legendar a montagem, o que causou prejuízo na recepção. À un endroit du début é um espetáculo de dança, teatro, vídeo, e mais, falado em francês, repleto de referências autobiográficas, de uma artista muito importante da dança mas, possivelmente, não tão conhecida do público deste JGE. Realmente uma falha.

Confira a programação do Janeiro de Grandes Espetáculos.

Bem, para quem se interessar pelo trabalho de Germaine Acogny existe uma filmagem disponível, recente, de dezembro último, feita pelo Théâtre de la Ville de Paris, em francês, uma gravação de qualidade, com contraplanos, zoons, closes, que corta menos as projeções dos textos. O ponto negativo da gravação é a permanência do logo da TV e do programa em letras grandes. O do teatro também está lá, mas é discreto e não incomoda.

Sim, a filmagem inicia com a apresentação do diretor do Théâtre de la Ville, Emmanuel Demarcy Mota, uma fala do cofundador da l’École des Sables e companheiro de Germaine, Helmut Vogt, e do diretor da peça, Mikael Serre. Além de uma pequena reportagem com Germaine Acogny. O espetáculo em si começa aos 12 minutos e 39 segundos da gravação.

 

Sombras e fantasmas

Ficha técnica:

À un endroit du début (Num lugar do início), com Germaine Acogny
Coreografia e interpretação: Germaine Acogny.
Direção: Mikael Serre.
Assistente coreógrafo: Patrick Acogny.
Cenografia: Maciej Fiszer.
Figurino: Johanna Diakhate-Rittmeyer.
Música composta e interpretada: Fabrice Bouillon «Laforest».
Vídeo: Sébastien Dupouey.
Luzes: Sebastian Michaud

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