Você está lendo o jornal enquanto toma café da manhã. Na mesa, xícaras, pratos, talheres. Ou então está na mesa do escritório e lá repousam papeis, lápis, canetas, computador. Tente atiçar a sua criatividade: será que esses objetos podem ter outros usos, que não aqueles habituais? Já pensou que essa xícara pode ser um senhor muito velhinho; o prato um navio; o talher uma árvore falante? No Festival Internacional de Teatro de Objetos (Fito), tudo é possível. Depois de passar por lugares como Belo Horizonte e Manaus, o evento deve aportar no Recife, entre março e abril.
A ideia de criar o festival foi da publicitária Lina Rosa Vieira, diretora e curadora de iniciativas como o Cine Sesi Cultural e o Festival Sesi Bonecos do Brasil e do Mundo. “O espetáculo que me despertou para o teatro de objetos foi o de um grupo que fazia O avarento, de Molière, utilizando torneiras. Aquilo era criativo, inusitado. Depois fui vendo outros e percebendo que essa era uma linguagem específica”.
O Sesi apoiou a ideia, ainda que essa arte ofereça múltiplas possibilidades, inclusive a de criticar a produção de objetos em larga escala. “Mas o Sesi sabe que indústria cultural também é indústria. E a cultura faz parte da responsabilidade social deles”, explica. Lina lembra, por exemplo, de uma ocasião em que o espetáculo Histórias de meia-sola, apresentado com sapatos, do grupo Fernán Cardama, da Argentina, foi exibido numa fábrica de calçados. A montagem traz Aquiles Petruchelli, dono da loja A felicidade dos seus pés. E esse sapateiro mostra que cada sapato tem a sua história. “Lembro dos trabalhadores dizendo que nunca mais iriam olhar para os sapatos da mesma forma”, diz.
Aqui no Recife, o Fito deve ser realizado no Marco Zero, se estendendo provavelmente até um dos Armazéns do porto. Se a proposta e a própria poética do Sesi Bonecos favorecem eventos em praças, ruas, com muitas pessoas, como foi aqui em 2008, o Fito exige uma intimidade maior. É uma experiência de teatro: são quatro salas, com capacidade para 200 pessoas cada, com quatro ou cinco sessões por dia, num total de 20 espetáculos em três dias.
“Para muitas pessoas, é um despertar. Elas não sabem do que se trata e ficam encantadas”, diz a diretora. Talvez até por conta desse ineditismo, uma das ações importantes é a FitoMostra. O grupo XPTO, de São Paulo, faz pequenas performances e depois conversa com os espectadores.
Se 90% da curadoria do festival é feita de espetáculos internacionais, duas companhias de destaque no cenário brasileiro são a XPTO e a Cia. Gente Falante, do Rio Grande do Sul. Ao Recife, a Gente Falante deve trazer Louça Cinderella, que conta a história da Gata Borralheira só com objetos de chá; e Corsários inversos, que usa barracas, fechaduras, binóculos e câmeras. ´É uma questão de radicalizar o olhar sobre as coisas`, comenta Lina Rosa.
Criatividade em ebulição
A imagem de uma bailarina numa caixinha de música. Que rodopia tão bonito, ao som de uma música envolvente, encantando quem tem aquele objeto nas mãos, mas está presa a uma engrenagem determinada. Lina Rosa Vieira usou essa metáfora durante a entrevista que concedeu ao Diario para falar de como enxergava o teatro de marionetes, preso principalmente ao tamanho dos bonecos. Mas essa imagem da bailarina também poderia servir para a própria Lina, quando completou dez anos de carreira. Diretora de criação de uma agência, tinha vários prêmios e sempre buscou aliar a propaganda à informação inteligente. Só que ela podia muito mais: e o que era uma agência de publicidade, agregou também a cultura.
A proximidade com a área já existia. Desde sempre, desde que aprendeu a ler. Mas sabia que, com a publicidade e o empreendedorismo, poderia democratizar e socializar a cultura. Foi o Sesi, instituição que era atendida pela equipe criativa de Lina, que apostou num projeto simples, mas carregado de individualidade e importância: levar o cinema até lugares que não possuíam salas de exibição. ´Não é a experiência de ver um filme em casa, com alguém chamando, o pause. Cinema não é isso`.
E, como ela costuma dizer, o Sertão sempre foi musa inspiradora da sétima arte, mas os sertanejos não tinham acesso àquela arte. ´As salas dos anos 1960, 1970, foram fechadas nos interiores. Juntar pessoas só em comício ou procissão`. E Lina trouxe o cinema, que possibilita um olhar crítico aos outros dois – tanto a política quanto a religião.
O preciosismo da publicitária sempre rendeu bons frutos. Não eram sessões de cinema comuns. ´Se você tem cuidado com 30 segundos de comercial, vai ter cuidado ao criar uma coisa maior. Tem desde o tapete vermelho, a área completamente isolada, a pipoca`. Depois da primeira edição, o Sesi apostou ainda mais na ideia e hoje as sessões já rodou o país.
Depois das telas grandes, o teatro de bonecos. Lina conseguiu algo impensável para a marionete: reunir multidões em praças, espetáculos reproduzidos em telões,1 milhão e 800 mil espectadores Brasil afora. O Sesi Bonecos do Brasil e do Mundo antigiu os mais diversos públicos. ´Em Macapá, por exemplo, eu queria fazer uma apresentação numa comunidade indígena, mas acabei descobrindo que lá não tinha indígena, mas quilombolas, que falam francês, porque estão muito perto da Guiana Francesa`, exemplifica.
O Teatro de Objetos deu sequência ao Teatro de Bonecos e o próximo projeto, para 2012, é um ‘nanofestival’. ´Quero trabalhar com sensações, dimensões`, observa. ´Fazer as coisas sem criatividade pode até ser mais fácil, mas não mais prazeroso. Busco os desafios e esta edição do Fito em Recife nos dá um frio na barriga. Queremos que seja ainda mais especial!`. (Matéria minha publicada no Diario de Pernambuco na última sexta-feira, 11 de fevereiro)