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O senhor do teatro

Paulo José. Fotos: Pollyanna Diniz

Quando penso no Paulo José, a minha primeira lembrança é o personagem Orestes, da novela de Manoel Carlos Por amor, de 1997. Era um alcoólatra que fazia a esposa e a filhinha de olhos azuis sofrerem muito. Ele me gerava momentos alternados de raiva e pena. Mas essa referência é bem recente para um ator de 74 anos que dedicou praticamente toda a vida ao teatro, cinema e televisão.

Ao encarar a pergunta sobre o personagem mais marcante, ele me diz que foi a “Xuxa da infância de muita gente”. Está se referindo ao seriado da década de 1970 Shazan, Xerife & Cia. Interpretava Shazan e fazia dupla com o ator Flávio Migliaccio.

Hoje, Paulo José continua esbanjando disposição para trabalhar e lucidez, mesmo lutando contra o Mal de Parkinson desde 1992. Está em cena na novela Morde e assopra, no filme Palhaço (que tem direção de Selton Mello e previsão para estrear em maio) e dirigindo, pela segunda vez, a peça Murro em ponta de faca. A primeira vez foi em 1978, quando o amigo e autor do texto, Augusto Boal, falecido em 2009, ainda estava no exílio, vítima da ditadura.

No Festival de Curitiba, ele abriu a sala de ensaios de Murro em ponta de faca ao público. Fui assistir e pedi para marcarmos uma conversa. No dia seguinte, mesmo com chuva, ele chegou ao teatro com duas horas de antecedência, como combinado. Falou sobre a peça, que tem no elenco só atores curitibanos (Gabriel Gorosito, Laura Haddad, Erica Migon, Sidy Correa, Abílio Ramos, Espedito Di Montebranco e Nena Inoue), sobre a carreira, sobre a doença. E me disse que está cada vez mais certo de que “Teatro é teimosia. As pessoas querem fazer. E fazem”.

Entrevista // Paulo José

Qual a diferença de dirigir Murro em ponta de faca em 1978 e em 2011?
Esta versão agora nos dá a possibilidade de mergulhar no personagem. Naquele momento, tudo tinha acontecido. Era muito mais ebulição do que razão. Hoje a peça intriga, provoca, dá vontade de conhecer mais da época. É saber o princípio, a origem desse mal. Na época, o sucesso dela, o encontro dela com o público, era natural por causa das circunstâncias, da luta pela anistia, da campanha Tortura nunca mais. Não precisava nenhuma teatralidade especial. Poderia ser quase uma leitura. Agora é mais profundo, estamos menos presos à superfície, ao aparente. E são muitas as referências a coisas que aconteceram naquela época, que não necessariamente as pessoas sabem hoje. Há uma referência clara, por exemplo, ao chileno Víctor Jara (professor, diretor de teatro, poeta, cantor, compositor, músico e ativista), que teve as mãos cortadas. É cheio de referências também ao Marighella (Carlos). Apesar de que, no Brasil, a ditadura foi menos dura do que na Argentina e no Chile. Os militares aqui tinham origem de classe média, classe média baixa. Em muitas situações, eles se encontravam tendo que reprimir a própria família. Diferente do exército argentino, que tinham inimigos de raízes. Aqui, os militares se viam às voltas com parentes presos, tendo que resolver “pepinos” familiares.

Paulo José dirige Murro em ponta de faca pela segunda vez

Como você enfrentou a ditadura. Mesmo não tendo sido exilado, teve essa sensação aqui mesmo?
Claro! Eu era do Teatro de Arena. E a peça que estava em cartaz na época do golpe era O filho cão. Era do Guarineiri (Gianfrancesco) e eu dirigia e atuava. A polícia foi lá para fechar o teatro. Mas nós escapamos todos. Guarnieiri e o Juca de Oliveira foram para Bolívia. Augusto Boal foi para uma fazenda. Fiquei na casa de Cacilda Becker, que morava numa cobertura, esquina com a Avenida Paulista. Fiquei lá um mês. Depois de 15 dias na Bolívia, o Guarnieri e o Juca decidiram voltar. Disseram que preferiam morrer. Depois disso, o Boal foi preso, torturado. Éramos privados da liberdade de ir e vir, de todos os bens, de qualquer conforto que o dinheiro pudesse dar, dos teus discos, filmes, instrumentos musicais. Esse sentimento não tem idade. E hoje as pessoas, noutra situação, também são desprovidas de tudo. Mas naquela época, essas pessoas iam para a Sérvia, para a Croácia. Ficavam sem dinheiro, precisavam da família no Brasil. Mas mandar dinheiro também não era fácil. Então, às vezes, era fome, necessidade mesmo. É uma indignação, uma vergonha, a gente ser tutelado por imbecis. Apresentar uma peça para a censura, para que eles dessem o parecer. Pessoas desqualificadas, ignorantes. Às vezes a gente colocava, por exemplo, um palavrão na peça, só para poder negociar. Porque eles iam implicar com aquilo e deixavam outras coisas passar. Os policiais entravam na tua casa. Os livros perigosos ficam no fundo falso do guarda-roupa. Lembro de perguntarem que eram Aristófanes.

O Boal chegou a ver a peça sendo encenada? Qual a importância dele para o nosso teatro?
O Boal escreveu no exílio. E quando voltou em 1983, acho (na realidade, 1986), a peça já tinha sido encenada. O Boal era devotado ao teatro. Enquanto nós éramos “adúlteros”, namorávamos o cinema, a tv, ele era fiel. Quem sustentou o Arena foi o Boal, por mais de dez anos. Nós íamos para o TBC, para o Oficina. Mas o Boal estava no Arena.

Falando nisso, atuar na televisão, cinema ou teatro é a mesma coisa?
São formas diferentes de trabalhar, mas não há dificuldade. Tenho preferência por cinema e teatro. A televisão é redundante, não é muito inovador. A comunicação é horizontal. Se todo mundo tem que entender, o foco é menor. No teatro, se uma pessoa entender, tudo bem. A programação da televisão também tende a ter um discurso homogêneo, desde a manhã ate a hora que acaba. E o meio se transforma na própria mensagem.

A música é importante? Neste trabalho, o senhor está “brincando” no teclado…
Sempre trabalho com música. Gosto muito, por exemplo, do trabalho do Galpão, porque é muito musical, porque todos tocam. Gosto muito do teclado, mas eu não toco mesmo, por causa do Parkinson. Até para escrever no computador é difícil. Quero digital uma tecla e vou para outra.

No teclado, no ensaio aberto da peça em Curitiba

Como foi a descoberta de que tinha a doença e lidar com isso?
Foi em 1992. Uma doença degenerativa, progressiva e irreversível. Foi o que me disse o médico. Ele estava lá, receitando o remédio e eu perguntei “por quanto tempo vou tomar?”. “Durante toda a vida”, ele me disse. E aí, olhando para ele, um homem quase careca, perdendo o cabelo, descobri que ele também tinha o Parkinson dele: o envelhecimento. Que é progressivo, irreversível, degenerativo. A diferença é que eu tinha a certeza que ele ia morrer e ele não. Como se fosse eterno. Você passa a ter limitações, mas você descobre outras coisas, a introspecção, a concentração. Passei a escrever bem. A minha acuidade musical aumentou. Os meus sentidos foram aguçados. Cada um tem o seu Parkinson. E eu tenho 74 anos, já estou fora da garantia. É só manutenção, não troca mais peça nenhuma.

Mas quais são os cuidados?
Remédios. E hoje faço aula de voz, ginástica, hidroginástica.

Você já fazia ginástica?
Não! Ginástica faz mal! (Risos) Queima! Nunca fiz. Fazia exercício, mas tinha que ser prático, com bola, ou andar a cavalo.

Tem medo da morte?
Não tenho medo. Mas você tem que se preparar bem. As pessoas morrem mal porque não se preparam. São surpreendidas. Estou procurando deixar um testemunho pessoal das coisas que fiz. Estou passando a limpos coisas que escrevi para publicar. Cadernos de direção, de cinema. Dei aula de cinema em Cuba, por exemplo. Na Globo, dei aula para diretores e atores.

Nas duas últimas peças em que você esteve envolvido, você trabalhou com as suas filhas (Um navio no espaço ou Ana Cristina César e Histórias de amor líquido). É diferente? E o seu trabalho de direção também tem sido diferente com o tempo?
Acho que não…Cada peça tem suas exigências, necessidades. Mas a diferença que é estou ficando calmo, sossegado, não fico sofrendo. Até porque percebi que é só uma peça de teatro, tem limites previamente estabelecidos. Então fico mais calmo, tranqüilo. O que me interessa no teatro são as relações humanas, é ajudar a desenvolver potencialidades nos outros. E as pessoas me ouvem, me respeitam. Então me aproveito disso. Eu “chupo” o sangue destes atores jovens, a energia deles para mim.

Vamos falar de televisão. Como é o próximo papel?
É nessa novela nova..Morde e assopra. Entro e fico até o fim da novela. Representa o amor na terceira idade. É o Plínio. Ele volta para a cidadezinha onde tinha deixado a namorada. Gosto de trabalhar como ator. Tenho contrato com a Globo desde 1969. Então tenho que fazer algo de vez em quando. Faço a novela..aí passo mais algum tempo fazendo teatro e cinema.

Falando em cinema…o que o senhor acha da produção pernambucana?
Ah…o Cláudio Assis, o Lírio Ferreira, já estão consagrados, sabem fazer. Cláudio Assis é um louco! Aspirinas e urubus é um filme muito bom. Tem baianos também muito bons no cinema. Meu próximo papel é no filme Palhaço, de Selton Mello, que deve ser lançado em maio. É um filme autoral, que o Selton escreveu, produziu. Temos uma safra muito boa.

E deixa eu perguntar…o que o senhor acha da ministra Ana de Hollanda?
A linhagem é boa…é filha de Sérgio Buarque, de uma família que tem respeito pela cultura. Mas está apenas começando…Mesmo o governo da Dilma ainda é muito cedo. Já percebemos que ela tem diferenças de Lula, mas ainda é cedo…

Uma pergunta clássica: algum papel que gostaria de fazer e ainda não teve oportunidade?
Tem personagens da literatura, personagens reais, que a gente gosta. Mas eu não estou sofrendo com isso. Tenho tanta coisa para fazer sempre!

E vai fazer teatro até quando?
Até morrer!

Não existe aposentadoria para o teatro?
Não existe! Até porque, no teatro, tem papel para todo mundo, independentemente da idade. Aos 90, ainda terão papeis que são ideais pra mim.

No papel de diretor

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Criatividade na medida

Os 39 degraus leva aos palcos o filme homônimo de Alfred Hitchcock

O espetáculo Os 39 degraus, com direção de Alexandre Reinecke, em cartaz no Rio de Janeiro, ocupa um local perigoso. Está num campo fronteiriço entre a montagem que diverte o público de maneira competente e aquela que carrega tanto nos elementos e truques, que começa empolgando, mas depois pode cansar o espectador. É como se fosse uma fórmula química mesmo e talvez cada apresentação tenha um resultado específico.

Em Curitiba, na primeira apresentação da peça no festival de teatro, por pouco a apresentação não descambou para o exagero. Nas tentativas de fuga para não ser preso injustamente pelo assassinato de Annabela Schmidt, uma agente secreta alemã, Richard Hannay pega um trem, mas é descoberto e perseguido (numa cena criativa e muito bem executada); passa por uma ponte; foge da casa de um casal pela janela; passa por um discurso político e até faz chover e trovoar com a ajuda da plateia.

Elenco interpreta mais de 30 personagens

O interessante é como uma só montagem consegue levar ao público o melodrama, a mímica, o teatro de sombras, os clowns e até o pastelão. O elenco – formado por Dan Stulbach, Danton Melo, Henrique Stroeter e Fabiana Gugli – tem uma sincronia perfeita, inclusive com a técnica, já que eles interpretam mais de 30 personagens. O único que faz um só personagem é Dan Stulbach (Richard Hannay); ele está em cena praticamente a peça inteira.

Os 39 degraus leva aos palcos o filme homônimo de Alfred Hitchcock, de 1935, que inspirou ainda duas refilmagens e uma montagem na Broadway. Na realidade, a versão brasileira é uma homenagem muito bem-humorada ao diretor, com menções a vários de seus filmes (tem até a brincadeira de tê-lo em cena). Um quebra-cabeças solucionado com criatividade, perspicácia e entrosamento, que diverte e empolga o público.

Peça está em cartaz no Rio de Janeiro. Fotos: Pollyanna Diniz

Os 39 degraus
Onde: Teatro do Leblon – Sala Marília Pêra (Rua Conde Bernardote, 26, Leblon, Rio de Janeiro)
Quando: quintas, sextas e sábados, às 21h; domingos às 20h; até 10 de julho
Quanto: R$ 78 e R$ 39 (meia)
Informações: (21) 2274-3536

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Dê lugar à memória

Homem piano - Uma instalação para a memória

O dia estava chuvoso, frio. Daqueles em que o cobertor é o melhor amigo. Mas o Festival de Curitiba já estava acabando e eu não tinha visto Homem piano – Uma instalação para a memória, que tinha sido indicada por alguns amigos jornalistas e produtores numa miscelânea de peças de qualidades bem variantes. Quem me deu o telefone da produtora foi até o Valmir Santos, já que a montagem era para poucas pessoas por sessão.

Saí de uma entrevista (que vcs ainda vão ler por aqui!) direto para a sede da CiaSenhas de Teatro, uma casa numa rua estreitinha, no Centro de Curitiba. As pessoas aguardavam na calçada. Márcia, a produtora, simpática, perguntou se era eu a Pollyanna. A garota ao lado, abraçada ao namorado, me contou que este ano não tinha aproveitado o festival. Que tinha ido ver poucas peças. “E porque escolheu essa?”, quis saber. “É de um amigo meu. Este ano tenho visto só as produções dos amigos”, explicou. Ela deve ter ficado orgulhosa do amigo.

A peça começa ali na rua mesmo. Quem não sabe o que está acontecendo, como a família que estacionou o carro para ir a algum lugar ali perto, estranha a movimentação. Somos convidados a entrar na casa e a resgatar nossas memórias, como faço ao escrever este post. Mas nem sempre memórias tão superficiais. O ator Luiz Bertazzo aguarda todos entrarem. E, noutras palavras, diz que tem muitas coisas que queremos esquecer. Tirar da memória. Na parede da escada, lápis e papeis pendurados. Pediu para que cada um escrevesse. Depois recolheu e picou todos com o movimento da hélice do liquidificador.

Subimos um ou dois andares, não lembro ao certo. Sei que não havia lugares para sentar, como normalmente. Estavam todos de pé, em silêncio e ebulição. O texto, de Sueli Araújo (que assina também a direção) nos fala basicamente de memória. De sentimentos. Do que queremos lembrar ou esquecer. De um homem que não tem memórias. Precisa da nossa ajuda. Noutra sala, pra terminar, podemos participar. Contar memórias em microfones. Sem que ninguém ouça. Só você mesmo. Pra ajudar, alguns papeis pediam lembranças relacionadas ao pai, a mãe, a um momento. Puxei de um deles uma memória antiga, mas que ainda dói. Fui ao microfone. Sai dali com vontade de chorar.

Criação é da curitibana CiaSenhas de Teatro

Um dos méritos do espetáculo é conseguir envolver o público. Seja pela ambientação do espaço cênico (como diz o programa), prioritariamente branca, pensada por Paulo Vinícius, ou pela interpretação de Bertazzo. Claro que isso é muito pessoal e depende de uma série de fatores. Mas o ambiente é sim propício à entrega. Há uma proximidade mesmo com a performance ou com a instalação das artes visuais. Mais do que uma peça, é um experimento. Não só para a companhia, que estreou o espetáculo em julho do ano passado, mas também para o público. Bom, pra conhecer mais um pouquinho da CiaSenhas de Teatro, em atuação desde 1999, vale dar uma olhadinha no site deles. Tem fotos lindas!

Fotos: Pollyanna Diniz

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Um cara de teatro

Algumas trocas de mensagens por celular e estava marcada a entrevista com o ator principal da montagem Os 39 degraus, sucesso de público em São Paulo, que fez quatro apresentações no Festival de Curitiba. Dan Stulbach chegou ao hotel, depois do almoço, por volta das 14h30, com um aspecto cansado. Já tinha apresentado por duas noites a montagem e, naquele dia, tinha ido fazer uma palestra para alunos às 9h30. Fomos ao bar do hotel, ele pediu um café, e confessou que precisava dormir.

Mas esse era só o início da conversa. Quando fala em teatro, os olhos azuis brilham ainda mais. Só vi o mesmo acontecer quando ele virou empolgado para o ver o gol que o Real Madri tinha feito num time qualquer. Estrategicamente, antes do início da entrevista, já sabendo do seu amor pelo futebol, tinha colocado-o numa cadeira de costas para a televisão. Besteira. Independentemente da partida, Dan Stulbach é um ator compromissado, apaixonado pela técnica teatral, pelo desafio. Gosta de falar de arte e também de televisão, cultura, política. Depois de uma hora e meia de conversa, parecia que o cansaço não existia mais. “Poderia ficar aqui a tarde inteira conversando. Mas tenho espetáculo à noite”.

Dan Stulbach

A peça Os 39 degraus possui mais de 30 personagens, interpretados por quatro artistas. E você é o único que faz um só personagem e está em cena quase o tempo todo. Como foi essa preparação?
Comecei a malhar, a correr. Sempre fui um cara saudável, sempre fiz esporte, nunca tive problemas com isso. Mas a peça quis treinar mais. Mas não era só a questão física. Demorei a pegar o ritmo da encenação, correr, falar, isso muda o ritmo da respiração.

Porque você aceitou o convite para fazer Os 39 degraus? Já tinha feito comédia?
Fiz uma comédia no teatro há muito tempo. Foi Guerreiras do amor, em 1995, do Domingos de Oliveira. Quis fazer Os 39 degraus porque é uma homenagem ao teatro, à imaginação. Celebra o lugar do faz de conta, da brincadeira. É isso o que me interessa. Além disso, a peça trabalhava com várias linguagens. Drama, romance, comédia. Isso me encanta. E o jogo de você enganar a plateia, de todo mundo se arrumar, sair de casa, para isso.

Os 39 Degraus. Fotos: Pollyanna Diniz

Na peça, em determinado momento, há uma brincadeira com o personagem que te deixou conhecido para o grande público, o Marcos, de Mulheres Apaixonadas. Ter ficado “marcado” por esse personagem te incomoda de alguma forma?
De forma nenhuma. Eu acho ótimo. Discutimos isso antes de levar para a peça. Mas foi um personagem que mudou mesmo a minha trajetória, pelo menos para o grande público. E mudou uma realidade. Conseguimos transformar as coisas. Hoje, o homem que bate em mulher vai para a cadeia. E você faz televisão porque quer ficar mesmo mais conhecido. Não dá pra ficar irritado porque as pessoas vem falar com você, querem um autógrafo, tirar foto. Então você foi pra televisão por quê?

Você já trabalha com teatro desde a década de 1980. Mas realmente se tornou conhecido depois da televisão. O trabalho em televisão trouxe alguma mudança para o seu trabalho no teatro?
Na televisão, busquei trabalhos que fossem um desafio artístico para mim. Trago a televisão para o meu trabalho. Ao contrário do que as pessoas pensam, a televisão exige muita disciplina. É um trabalho exaustivo. Mas o que estamos fazendo é mais ou menos a mesma coisa. Tive a oportunidade de criar na televisão, propor coisas, amadureci. Até porque eu comecei a ter que falar mais sobre o meu trabalho, dar entrevistas. Entender melhor o que eu faço. Mas eu queria dizer que temos que tomar cuidado. Para que o ator que faça televisão não seja execrado por fazer TV, que ele não seja considerado menor; ou o contrário também. Acho que o teatro fica maior com as diferenças, juntando as pessoas. Não vejo esse preconceito comigo, mas ele existe. Até dos meios de comunicação. Sou o “global” Dan Stulbach. E esse título é um mérito ou demérito? Lembro que tinha começado há duas semanas a fazer a novela Mulheres apaixonadas e fui apresentar Novas Diretrizes. Aí me chamaram de global no jornal…O que é um demérito é ser reduzido, taxado.

E qual o papel do teatro?
O lugar do teatro no mundo é o lugar da imaginação, da provocação. Quanto mais o mundo fica digital, violento, e tudo isso, o teatro ganha mais espaço. Porque é o lugar de lembrar o que é ser humano. O teatro te surpreende, te emociona. Essa é a função da arte e do teatro. É um lugar de artistas que não se conformam, que querem o risco. Gosto do teatro como linguagem. Porque quando você lê, você usa a imaginação, como seria aquele personagem, como se portaria, como seria a voz. E o teatro é o próximo passo.

Mas você faz teatro em São Paulo, que tem a lei de fomento ao teatro há dez anos, onde estão os artistas mais conhecidos. E os outros lugares?
É um espaço de resistência. Essa realidade paulista passa por São Paulo também por que, é verdade, lá estão atores conhecidos. Então no momento da empresa escolher um espetáculo para apoiar, ela quer visibilidade. Essa decisão fica nas mãos dos gerentes de marketing. Mas tem outras possibilidades, empresas que apóiam trabalhos continuados. O que eu acho é que há espaço para todo mundo e para o teatro de qualidade.

Podemos dizer que estão surgindo algumas tendências no teatro brasileiro, como os musicais. Como você vê isso?
Os musicais estão se consolidando, assim como o movimento dos stand ups. As pessoas querem ver. Mas o meu teatro, como já disse, é o da imaginação. Não aquele em que a pessoa é o que é. E o público tem se desacostumado com imaginação. Ele quer mais realidade, mesmo que seja a brincadeira com a realidade, a ironia. Muita gente tem raiva dos stand ups. Eu não tenho. Tem espaço pra todos. Mas pode ser só uma fase. O teatro já passou por muitas..pela fase da imagem, da fumaça, quando toda cena tinha que ter fumaça! Eu gosto da palavra, do diálogo, da discussão. Gosto do cinema argentino, por exemplo, que é muito calcado nisso. Gosto de tentar formular coisas. Foi o teatro que me deu isso.

Você se interessa por política? O que acha do nosso Ministério da Cultura?
É o Ministério mais discutido atualmente…Há ministérios, como o dos Esportes, que deveriam ser tão julgados quanto, que são muito incompetentes. O dinheiro para a Cultura é ínfimo. E isso acaba limitando as ações. Mas acho que a ministra ainda não teve tempo. Ela está sendo muito julgada antes do tempo. Falo do ministério dos Esportes porque acho que ele é mais próximo da saúde, um dos nossos grandes problemas. Não é para ter atletas campeões, ganhadores de medalha. Não só para isso. Para o país, era melhor ter 200 pessoas correndo do que um atleta profissional, campeão. Fora isso, me preocupa a intervenção na Vale, a infra-estrutura para o nosso país crescer na medida em que a economia está crescendo, mais portos, mais estradas.

O que você acha, por exemplo, do Vale-Cultura?
Não conheço bem o projeto. Mas acho a ideia muito boa. Só é preciso ter cuidado para não virar uma meia-entrada, que quem paga é o artista e o próprio público. No mínimo, acho que poderia ser opcional, facultativa.

Você continua no programa de rádio (Fim do Expediente, na CBN)?
Sim. O Paulo Autran disse que eu não deveria fazer. Que o artista não pode ser conhecido. Que ele não pode se dissolver nas suas opiniões. E eu concordo com ele. Mas lá eu falo da vida. Não falo de mim. Elas vão continuar não me conhecendo. E essa é a melhor resposta para aqueles veículos ou pessoas que querem que você seja uma celebridade. Coordeno também a programação do Teatro Eva Herz, da Livraria Cultura, há três anos e meio. Eles até vão abrir salas em outros lugares.

No Recife?
No Recife ainda não estou sabendo. Mas Recife é uma cidade que me interessa muito. Estive lá com a peça Novas Diretrizes, com o Tony Ramos, num teatro lindo (o Santa Isabel). É uma cidade que se interessa por cultura, que recebe as coisas de fora, mas que produz. É muito bacana.

Você sempre cita o Paulo Autran. É uma referência?
Gosto de celebrar a existência do Paulo. Meus pais sempre me levavam ao teatro e uma vez, quando decidi que queria ser ator, fui falar com ele, no camarim. Saber como era ser ator, ver o que ele me diria. Anos depois, ele entrou no meu camarim e me perguntou se eu era aquele rapaz que tinha ido falar com ele. Tenho um carinho muito grande por ele. Ele sempre estava ligando, dando dicas. Depois tive a oportunidade de fazer um espetáculo com ele, o Senhor Green. Aprendi com ele o respeito ao teatro. Ele vivia só para isso, abriu mão da televisão, até falava mal da TV. Tinha uma técnica…

E o que você diria para um ator que viesse te procurar hoje, como você fez com o Paulo Autran?
Que não perca a sua diferença. Que não tente fazer do jeito que o outro faz. Que aprenda a respiração, a técnica. Mas que não entre na “pastelaria’.

Peça tem mais de 30 personagens e só quatro atores

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As sensações da Armazém

Armazém apresenta Antes da coisa toda começar. Fotos: Pollyanna Diniz

As canções do Cazuza não fazem parte da trilha sonora de Antes da coisa toda começar, nova peça da Armazém Companhia de Teatro, grupo do Rio de Janeiro. Mas depois da apresentação da montagem no Festival de Curitiba, foi a música Vida louca vida (de Lobão/Bernardo Vilhena, mas mais conhecida na voz de Cazuza) que pareceu ecoar nas paredes daquele galpão onde foi montada a estrutura para o espetáculo, e bem depois – quando todos já tinham ido embora. Sim, porque essa montagem definitivamente não é algo do qual nos “libertamos” facilmente. “Vida louca vida / Vida breve / Já que eu não posso te levar / Quero que você me leve”.

Você já se pensou imortal como o Cazuza? Já achou que poderia tudo o que quisesse? Já passou pela dor? Pela inveja? Pela frustração de não ter o que você mais quer? A peça é sobre tudo isso. E embora o teatro seja mesmo uma arte de sensações, é difícil que um grupo consiga fazer com que a plateia chegue ao menos perto de sentir o que aquele outro, lá no palco, está vivenciando, seja com um bom texto, com o trabalho de interpretação, com uma música. E esse é o mérito dessa companhia que já tem 22 anos de trajetória. A última vez em que o grupo esteve no Recife foi para apresentar a peça A inveja dos anjos, no Teatro de Santa Isabel, ano passado.

Dramaturgia é de Paulo de Moraes e Maurício Arruda Mendonça

 

Thales Coutinho interpreta ator"mentado"

Neste novo projeto, que vinha sendo idealizado desde o início do ano passado e já fez temporada no Rio de Janeiro e em São Paulo, o grupo vem com um diferencial percebido logo no início da apresentação. A música do espetáculo, dirigida por Ricco Vianna, que também está em cena, parece ser parte muito mais visceral da montagem. Alguns dos atores (o elenco é composto por Patrícia Selonk, Thales Coutinho, Rosana Stavis, Ricardo Martins, Marcelo Guerra, Simone Vianna, Camila Nhary e Ricco Vianna) cantam e também compõem uma banda, que faz a música do espetáculo ao vivo.

Rico Vianna, também em cena, é o diretor musical

O diretor Paulo de Moraes já havia contado em entrevista coletiva que essa mudança vinha a partir da influência do grupo Galpão, de Minas Gerais, que tem uma musicalidade muito forte. “Os atores fizeram intercâmbio com o Galpão e voltaram dizendo que queriam tomar conta da música, mas eu tinha que achar algo que se encaixasse ao meu trabalho”. A banda fica nas laterais do palco, mas no alto, como que em plataformas. Alguns atores, em alguns momentos, também sobem em estruturas montadas na parede, como que para delimitar o risco que corremos ao viver. A montagem também usa de projeções, que dão a impressão de videoclipes e ajudam no ar onírico da peça.

Na peça, o fantasma de um ator que interpretou Hamlet (ele traz consigo sempre um crânio) encontra três personagens – Zoé, uma garota apaixonada pelo irmão; Téo, um ator; e Léa, uma cantora doente. E a partir deles, das situações vivenciadas por eles pouco antes da suas mortes, esse fantasma revive as suas próprias emoções. O texto escrito em parceria por Paulo de Moraes e Maurício Arruda Mendonça tem poesia, força, ironia, humor, drama. E o trabalho dos atores, inclusive alguns bem jovens, consegue segurar essa dramaturgia. Patrícia Selonk interpretando a jovem louca pelo irmão, e Rosana Stavis, que está substituindo Simone Mazzer, e faz a cantora, têm atuações vibrantes e, ao mesmo tempo, tocantes.

Rosana Stavis canta muito no espetáculo!

É na figura do ator Téo (Thales Coutinho) que a companhia discute mais o próprio ato de fazer teatro. Afinal, como disse Paulo de Moraes, “foi no palco que a maioria de nós se sentiu imortal”, assim como o ator “mentado” da história. E há sempre a necessidade que o colega de profissão de Téo insistia: a de contar uma história. A Armazém Companhia de Teatro sabe bem disso.

Zoé é apaixonada pelo irmão

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