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Sobre encontros inusitados

Igor Lopes e Ana Flávia em Avesso. Foto: Pollyanna Diniz

“Um mundo que pode ser explicado, mesmo que com fundamentos inadequados, é um mundo familiar. Num universo, porém, que é repentinamente despojado das ilusões e da luz da razão, o homem sente-se um estranho”. A citação de Albert Camus diz respeito ao Teatro do Absurdo, referência para os atores da montagem Avesso, apresentada durante a VI Mostra Capiba de Teatro, no Sesc Casa Amarela.

Os atores Ana Flávia e Igor Lopes se apropriaram de dois textos contemporâneos que não se deixam enclausurar pela falsa tentativa de apreender a realidade. Mas são revestidos de muitos esquemas de lógica – em Eu não sou cachorro, Fernando Bonassi faz exatamente o que o título diz: explica porque não é um cachorro – e quantas vezes durante a montagem nos pegamos pensando…mas será que não somos mesmo? E Três Esgares Cômicos (e um discurso mal-humorado), de Luís Alberto de Abreu, fala do encontro de uma mulher com um cu. Isso mesmo que você leu. Ela acredita piamente que encontrou um cu no meio da rua, na esquina, sei lá. E a única certeza que ela tem é que não é o dela mesmo.

Os dois textos são levados juntos à cena – e isso enriquece a montagem, que talvez não tivesse o mesmo ritmo e força se a direção, que é do próprio Igor Lopes, tivesse optado por fazer dois quadros separados. No momento de construir a cena, eles vão tecendo pontos em comum e, ao mesmo tempo, quebram o peso de cada texto – que poderia se perder se fosse dito sem interrupções, sem pausas para que a plateia ‘respire um ar’.

Tanto Ana Flávia (com um barrigão enorme disfarçado pela saia!) quanto Igor Lopes estão muito bem em cena. Fruto provavelmente do tempo a que se dedicam a esse projeto – há alguns anos eles fazem experimentos e há poucos meses decidiram que era hora de admitir que a montagem deveria ser encenada por completo, fazer temporada, crescer a partir do encontro com o público.

São dois papeis difíceis porque poderiam resvalar na caricatura, se perder na risada que o público dá quando se questiona: ‘mas ela está dizendo isso mesmo?’ ou simplesmente escuta a palavra cu. Igor e Ana defendem os papeis com uma seriedade que às vezes até constrange.

Embora a direção pareça não querer fazer referência a nenhuma época específica (mas fica claro que os textos são contemporâneos), o figurino lembra o início do século 20 – mas com uma pitada de humor: a cueca de Igor Lopes. Talvez Ana Flávia pudesse ter um elemento assim também. No cenário, um vaso sanitário e muitas folhas. Soluções simples e eficazes. É um teatro de ator e de palavra. O resto está ali só para compor mesmo.

Há uma proposta interessante para a trilha sonora, mas que não se concretiza. O multiartista Ricardo Brazileiro colocou microfones para captar o som do palco e da plateia. Talvez noutros espaços, até funcione. Mas no teatro não. Na institucionalidade do teatro ‘o absurdo’ está no palco, mas a plateia continua lá, no lugar dela.

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Teatro do Absurdo no Capiba

Avesso encerra curta temporada no Capiba. Foto: Ludimilla Carvalho/divulgação

“(…) eu não sou cachorro e conquisto o que quer que seja com meus próprios méritos. Ainda que seja um lugar no maldito paraíso dos homens. Aliás, com licença: eu mereço. Aliás, como qualquer tolo, ou homicida, ou escritor, ou ator, ou madame de recados que pega putos no meio das pernas frias. Se eu fosse um cachorro, eu abanaria meu rabo para algum sacana me jogar um pedaço de carne engordurada no chão. Eu poderia saltar para pegá-la da ponta de seus dedos, se fosse o caso… Nós apreciamos manifestações de generosidade semelhantes. Claro que eu teria medo de ter a mão auto-abocanhada por mim mesmo. A fome cega qualquer um e faz do cachorro esse animal servil que é.” (Eu não sou cachorro, Fernando Bonassi)

O texto de Bonassi, o texto Três Esgares Cômicos (e um discurso mal-humorado), de Luís Alberto de Abreu, e um mergulho no teatro do Absurdo. São esses alguns dos elementos do espetáculo Avesso, que fez duas sessões fim de semana passado no Teatro Capiba (Sesc Casa Amarela) e encerra a curta temporada sexta (26) e sábado (27), com apresentações às 20h. No palco, mais um encontro entre os atores Ana Flávia e Igor Lopes, que fizeram Artes Cênicas na UFPE juntos, entre 2002 e 2006. Os dois têm trabalhos com educação, produções culturais e passaram por alguns grupos. A realização do espetáculo é do grupo de artistas independentes Educandário Cicuta Sem Estricnina.

A direção é de Igor, que passou três anos em São Paulo; foi lá que dirigiu, em 2009, a peça Estilhaço, da Cia do Estilhaço; e assinou também a assistência de direção de Memórias do subsolo, de Mika Lins.

Em Avesso, a trilha sonora é feita por Ricardo Brazileiro, um artista multidímida que tem um trabalho muito instigante; e que é casado com Ana. No espetáculo, ele recombina sons a partir de aúdios capturados de microfones espalhados no palco e na plateia.

Ficha técnica Avesso

Texto: Fernando Bonassi e Luis Alberto de Abreu
Direção: Igor Lopes
Elenco: Ana Flávia e Igor Lopes
Trilha Sonora: Ricardo Brazileiro
Iluminação: André Moretti
Operação: Adriana Madasil
Realização: Coletivo Cicuta sem Estricnina

Serviço:
Avesso
Quando: sexta (26) e sábado (27), às 20h
Onde: Teatro Capiba (Sesc Casa Amarela)
Quanto: R$ 10 e R$ 5 (meia-entrada)
Duração: 60 min
Classificação Etária: 16 anos

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