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Viagem ao abismo
Crítica da peça A Noiva e o Boa Noite Cinderela,
Festival d’Avignon

Carolina Bianchi encara performances de alto risco. Foto: Christophe Raynaud de Lage / Divulgação

Carolina confrontando Pippa Bacca (em vídeo), italiana assassinada durante uma performance, e sua ingênua ideia de bondade. Foto: Christophe Raynaud de Lage / Divulgação

A Noiva e o Boa Noite Cinderela, Capítulo 1 da Trilogia Cadela Força, é possivelmente o espetáculo mais ousado, espantoso, arriscado, no limite do (in)suportável, dessa temporada do Festival de Avignon. Nomes importantes da cena contemporânea mundial movimentam a programação, entre eles Julie Deliquet, Tim Crouch, Philippe Quesne, Chiara Bersani e Marco D’Agostin, Stefan Kaegi, Émilie Rousset, Julien Gosselin, Pauline Bayle, Susanne Kennedy, Milo Rau, Trajal Harrell, Gwenaël Morin, inclusive Tiago Rodrigues, para citar algumas das encenações que vi. Mas nada como a peça sem concessões de Carolina Bianchi & do coletivo Cara de Cavalo, que leva o público ao limite.

Carolina Bianchi apareceu nesse cenário como um tsunami a refletir sobre um dos crimes mais hediondos, o estupro, muitas vezes seguido do feminicídio. O espetáculo da encenadora, dramaturga e atriz brasileira, que atualmente mora em Amsterdã, estreou na programação principal de Avignon, com sessões de 6 a 10 de julho. Com esse trabalho, a artista e o coletivo expandem vertiginosamente os limites da sua arte e do seu teatro.

Blackyva em A noiva e o Boa Noite Cinderela. Foto: Christophe Raynaud de Lage / Divulgação

Ob skene. Os dados da 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no dia 20 de julho, atestam que o país registrou o maior número de casos de estupros da história em 2022: 205 ocorrências do crime por dia. Há que se considerar ainda a subnotificação, já que o levantamento considera casos em que as autoridades policiais foram informadas e muitas vítimas se calam, por medo, vergonha, porque não entendem a dimensão da violência que sofreram, e por muitos outros motivos.

Quase sempre os corpos das mulheres são encarados pelo capitalismo como mercadorias. Sabemos que o sistema do patriarcado está calcado na dominação e na violência contra as mulheres. As arbitrariedades para a manutenção do poder masculino e pela vigilância da sexualidade são feitas em muitas camadas, do controle do imaginário à ofensiva física. Todas, covardias. Algumas dissimuladas, outras ostensivas.

Então é genial quando Bianchi revira na cena essa questão que a ordem falocêntrica insiste em abafar como sendo apenas da esfera privada, particular, de exceção, quando na realidade se trata de um problema escandalosamente público.

E esse capítulo primeiro do tríptico Cadela Força atravessa camadas de temporalidades na perspectiva de instalar linguagens que vasculhem as possibilidades da arte entre o real e o encenado, sem escamotear o fantasmagórico e o misterioso.

No cenário dessa primeira parte, a da conferência, vemos uma mesa, cadeira, microfone, copos, garrafa d’água, alguma bebida alcoólica, uma caixa de remédios. Por baixo na mesa, um pequeno monte de areia preta sugere uma cova rasa. Por trás, uma parede falsa, que recebe a projeção dos vídeos.

Nesse ato, a artista pergunta quem conhece alguma mulher que lhe tenha segredado ter sido vítima de agressão sexual, o que foi dito e de que forma. Enfim, que lembranças ficaram. A atriz foi vítima de um estupro há dez anos. Na época, se calou entre suas memórias borradas, mas esses resíduos estão lá.

Ao levar ao palco o sofrimento encarnado – inscrito no corpo de Carolina e de outras mulheres artistas -, a narrativa explode para se instalar no bailado do elenco. O espetáculo reivindica uma humanidade saqueada. Ao ingerir 10 mg de “boa noite Cinderela”, Bianchi investe na “ressurreição de uma memória pessoal soterrada pela sua violência”, como registra o programa da peça.

Mas com esse gesto repetido a cada sessão, a artista não busca remissão (essa palavra tão católica) para os atos de violência sexual. Simplesmente porque não há como resolver o trauma, em toda sua complexidade, nem dentro, nem fora da peça. 

Seguindo o fluxo, o “Fuck Catharsis”, que está estampado na placa do carro na cena de A Noiva e o Boa Noite Cinderela, não é somente uma frase de efeito, mas uma lógica e uma chave para percorrer essa performance de alto risco.

Os recursos para articular esse enfrentamento no palco são criativos, com as tensões e atritos da construção de uma poética autoral. O material real, dela e de outras artistas convocadas, são processados como procedimentos teatrais e performativos que Bianchi utiliza, subverte, retorce, cria sua própria estética, utiliza em composição de seu teatro radical.

Boa noite – Trilogia Cadela Forca – Capitulo I – Foto: Christophe Raynaud/Divulgação

Arte e trauma. “O que acontece com as mulheres que sobrevivem ao estupro?”. Casos de agressões e feminicídios contemporâneos e que ocupam a história da arte são expostos. Vestida de branco, Carolina Bianchi lê trechos do Inferno, primeira parte da Divina Comédia de Dante Alighieri e cita o romance 2666, de Roberto Bolaño. Na sequência são projetadas pinturas de Botticelli, inspiradas nos contos do Decameron, de Giovanni Boccaccio. É A história de Nastagio degli Onesti, em que uma jovem se vê coagida a casar com esse homem que não ama para evitar ter o mesmo destino da mulher perseguida e morta, cujo coração é lançado aos cães pelo cavaleiro rejeitado, numa ação repetida todos os dias.

A ficção não é mais horripilante do que a realidade. A artista recorda que, no Brasil, o goleiro Bruno Fernandes foi condenado pelo homicídio da ex-namorada e mãe de seu filho, que ela teve o corpo esquartejado e atirado aos cachorros do futebolista.

Na sua explanação, Carolina diz não ser a protagonista desse espetáculo, mas sim outras mulheres artistas que foram vítimas de violência. E resgata a performance da artista italiana Pippa Bacca, A Noiva do título, assassinada em 2008, perto de Istambul. Intrigada com as escolhas, trajetória e pensamento de Bacca, a brasileira revela admiração e desprezo e fala de semelhanças e diferenças entre as duas. No seu movimento de atração-repulsão por Pippa, Carolina investe num karaokê feroz em italiano.

A artista explica ao público o que significa “Boa noite Cinderela”, nome conhecido no Brasil da substância utilizada pelos canalhas/agressores sexuais que drogam e estupram suas vítimas em estado alterado de consciência.

Carolina Bianchi avisa ao público que vai tomar a substância. E, enquanto espera a droga “bater”, ela discorre sobre o assunto. Quando o treco fizer efeito, ela já confusa irá se deitar na mesa, e o coletivo Cara de Cavalo assumirá a continuação do espetáculo. Se o treco não “bater”, ela avisa que irá ler as 500 páginas de sua dissertação de mestrado. Mas a droga funciona.

A substância leva em torno de meia hora para fazer efeito. Enquanto isso, a atriz volta a Pippa Bacca, que se chamava Giuseppina Pasqualino di Marineo, e foi morta aos 33 anos. Ela viajava apenas de carona, com a amiga Sylvia Moro, no projeto “Noivas em viagem”, com o intuito de promover a paz para vários povos e nações. Mas elas se desentenderam e Bacca seguiu seu caminho até ser estuprada e morta na Turquia. Ela tinha uma fé inabalável no humano e cruzou territórios de guerra, marcadamente vulneráveis para as mulheres. Carolina também rememora a atuação de Tania Bruguera na Bienal de Arte de Veneza e evoca as Santas Mártires da Igreja Católica. 

Assisti à peça A Noiva e o Boa Noite Cinderela duas vezes na curta temporada em Avignon. Na estreia e no segundo dia. A primeira sessão tinha uma predominância feminina na plateia. E uma pulsação de preocupação, identificação, manifestada na emoção ou algum mal-estar de alguma espectadora. A cena é forte, numa experiência compartilhada ao vivo e dessa energia acontecem coisas.

Na segunda sessão, havia uma leve supremacia masculina na plateia. Algo mudava, mesmo que eu não consiga precisar o quê, mas havia uma curiosidade, um quê de São Tomé, que levou um homem de meia idade a chegar perto da mesa com Carolina já desacordada para verificar os materiais expostos e tomar um pouco de água. Três ou quatro babacas ensaiaram aplaudir a atuação do cretino, que em seguida voltou ao seu lugar. Momento tenso fora do script.

Carolina Bianchi e o Coletivo Cara de Cavalo

Quando Bianchi fica inconsciente, o Coletivo Cara de Cavalo assume. É uma guinada radical. A parede falsa é desmontada e o amplo palco se revela. Os oito artistas estendem uma lona preta no chão. Um carro é descoberto. Com danças individuais e coletivas, os atores reorganizam o espaço, distribuem as mortalhas – com representações de corpos mortos – com um cadáver, um esqueleto, terra e flores, pó branco, e o colchão onde Carolina é deitada, em que passa a maior parte do tempo.

Domina uma atmosfera trash. Orgias simuladas em jogos de dois, três, quatro, em dinâmicas constantes. Várias pequenas cenas ocorrem ao mesmo tempo. Coreografias de danças, música alta, algumas vezes distorcida. Encontros que deixam dúvidas se são consensuais. O carro anda. O automóvel preto é lugar de encontros, é lugar de opressão.

Desacordada, Carolina já não fala, mas suas palavras, ou as frases que tomou emprestadas antes, estão estampadas nas telas. “Como eles podem dizer que sobreviver é vingança?” O capítulo dedicado às mulheres mortas de Ciudad Juarez, no México, do romance 2666, de Bolaño, também é utilizado como referência.

Será o sonho, ou pesadelo da artista desacordada, aqueles encontros fortuitos, regados a música alta, bebidas e outros entorpecentes, desejos e imposição de desejo? Na sequência das cenas, Carolina será deslocada para o bagageiro e em seguida para o capô.

Já no capô do carro com a placa “Fuck Catharsis”, Carolina Bianchi ainda em estado de semiconsciência passa por um exame vaginal filmado, feito pelas mulheres do elenco. Os movimentos internos são transmitidos ao vivo numa tela grande. Enquanto essa cena ocorre, ouvimos as palavras gravadas de Bianchi, que exaltam a amizade, sobretudo a amizade feminina, como uma grande proteção na vida.

Na última cena, a atriz está deitada em um colchão cercado de flores. A atriz vai acordar, atordoada. Numa placa atrás dela está escrito “SHE GOT LOVE”. Um dos atores do coletivo oferece um energético.

Depois dos aplausos, o público sai profundamente perturbado. Alguma zona pouco acessível foi acionada.

Fuck Catharsis está estampado na placa do carro. Foto: 

Artista fora do comum, Carolina obteve em Avignon uma visibilidade inesperada por ela e sua equipe de produção. Apresentações já se seguiram: Bélgica, Alemanha, Espanha e Suíça. O mesmo impacto. Além dos convites, os holofotes sobre o seu trabalho ganharam os principais jornais do mundo e, com isso, muitos outros horizontes de espaços, de público e de discussão. Mas ainda não há previsão de apresentações no Brasil. 

No artigo La vanguardia de las mujeres, assinado pelo poeta, crítico literário e teatral Andreu Gomila no principal jornal da Catalunha, ele avalia a força de um teatro conduzido por mulheres. O crítico cita as consagradas, a britânica Katie Mitchell e a espanhola Angélica Liddell, e destaca as novas correntes cênicas protagonizadas pelas mulheres, como a alemã Susanne Kennedy, a belga Sarah Vanhee, a brasileira Carolina Bianchi e a coreógrafa japonesa Midori Kurata. Sobre Bianchi, ele pontua: “A nova artista que mais se fala neste momento na Europa é a brasileira Carolina Bianchi, cujo primeiro capítulo da sua trilogia Cadela força : La núvia i el bona nit Ventafocs … que diz o que nunca foi dito sobre a violência contra a mulher”.

Novos rumos. A primeira crítica que saiu sobre o trabalho depois da estreia em Avignon, no Le Monde, situou: “Basta dizer que a atuação de Carolina Bianchi vai entrar para a história do Festival de Avignon e deixar uma impressão duradoura no público”.

O Satisfeita, Yolanda? conversou com Carolina Bianchi sobre a peça, a construção da sua linguagem, e a repercussão do espetáculo. Leia aqui!

Ficha técnica:

Com Larissa Ballarotti, Carolina Bianchi, Blackyva, José Artur Campos, Joana Ferraz, Fernanda Libman, Chico Lima, Rafael Limongelli e Marina Matheus
Texto, design, direção, dramaturgia: Carolina Bianchi
Tradução para legendas: Larissa Ballarotti, Luisa Dalgalarrondo, Joana Ferraz , Marina Matheus (Inglês), Thomas Resendes (Francês)
Dramaturgia e pesquisa: Carolina Mendonça  
Direção técnica, música originale som: Miguel Caldas 
Iluminação: Jo Rios  
Cenografia: Luisa Callegari 
Vídeo: Montserrat Fonseca Llach  
Figurinos: Carolina Bianchi, Luisa Callegari e Tomás Decina
Colaboração artística: Tomás Decina
Treinamento de corpo e voz: Pat Fudyda, Yantó
Construção de automóveis: Mathieu Audejean, Philippe Bercot, Miguel Caldas, Luisa Callegari, Pierre Dumas, Lionel Petit, Xavier Rhame, Jo Rios – Oficina de construção do Festival de Avignon Diálogo sobre teoria e drama: Silvia Bottiroli 
Colaboração artística: Editar Kaldor (DAS Teatro) 
Vídeo karaokê: Thany Sanches 
Assistente de produção e diretora de palco: AnaCris Medina 
Direção de produção e administração da turnê: Carla Estefan 
Distribuição internacional: Metro Gestão Cultural (Brasil) 

Produção

Produção: Metro Gestão Cultural (Brasil), Carolina Bianchi y Cara de Cavalo
Coprodução: Festival d’Avignon, KVS Bruxelas, Maillon Théâtre de Strasbourg European Scene, Frascati Producties (Amsterdam)  
Com o apoio da Fondation Ammodo, DAS Theatre Master Program, 3 Package Deal do AFK – Amsterdams Fonds voor de Kunst, NDSM, Over het IJ Festival, Theatre der Welt, Kaaitheater (Bruxelas) e de l’Onda – National Office for Artistic Diffusion.
Representações em parceria com a France Médias Monde 
Residences DAS Theatre (Amsterdam), Festival 21 Voltz/Central Elétrica (Porto), Pride Festival (Belgrado), Festival Proximamente/KVS (Bruxelas), Espaço Desterro (Rio de Janeiro), Greta Galpão (São Paulo), Frascati (Amsterdam), A FabricA do Festival d’Avignon 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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