O trajeto entre as estações Brás e Jardim Romano dura algo em torno de 40 minutos. Antes mesmo de começar o caminho, se você entrou no trem assim que ele abriu as portas, a espera é um pouco maior: até quem parece enfadado depois de um dia de trabalho, desenvolve certa solidariedade por aquele que desce as escadas correndo apressado para não perder o transporte. Ah, até porque os papeis sempre podem se inverter no dia seguinte. Em tudo na vida.
Fechadas as portas, enquanto o trem avança em direção ao extremo leste de São Paulo, temos tempo suficiente para nos perdemos em nós mesmos. Os olhos vagueiam pela janela e dentro do próprio trem, no encontro visual com personagens anônimos. Quanto mais longe do Centro, mais as pessoas se entregam à exaustão, dormem; mais as paisagens e a arquitetura mudam. As verticalizações da “cidade-progresso” dão espaço a outros arranjos habitacionais, geralmente bem mais coloridos e diversos.
Nesse percurso, ouvindo uma gravação no mp3 (sim, o som alto, que se instaura para a coletividade, é proibido no trem) que incluiu o barulho do rio, textos poéticos, reflexões e depoimentos, começa o espetáculo A cidade dos rios invisíveis, do grupo Estopô Balaio (De)Criação, Memória e Narrativa. Foram três sessões dentro da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, todas marcadas pela chuva que caiu na capital nesses últimos dias.
Os criadores do grupo chegaram ao Jardim Romano no ano de 2011, pouco depois que as águas haviam baixado. Durante quatro meses, o rio que passa por trás da comunidade entrou mais uma vez nas casas que ficam na parte mais baixa do bairro. Da mesma forma que, muitas vezes sem pedir licença, tomamos o espaço da natureza, vez ou outra, recebemos um sinal. Talvez não seja nem uma resposta desaforada, mas é assim mesmo que geralmente encaramos. O rio que invadiu e alagou as casas deixou marcas em diversos âmbitos na comunidade.
Enquanto as crianças diziam que tinham visto peixes “pularem” no meio da enchente, jovens e adultos carregavam outras memórias e experiências normalmente bem menos lúdicas. Desde então, tendo a comunidade como parte efetiva do grupo, o Estopô Balaio já fez outros dois trabalhos a partir das vivências no Jardim Romano. O terceiro é justamente A cidade dos rios invisíveis, que usou como uma das referências o livro As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino.
O movimento de travessia em direção ao encontro está no cerne do projeto. Na itinerância do Brás ao Jardim Romano, no caminho pelas ruas e becos até o rio. No encontro entre os atores “profissionais” e atores “moradores”, entre esses e o espectador. No encontro entre a poesia e os relatos da vida cotidiana. Os atores vão conduzindo a itinerância: que, dependendo da chuva, tem até 13 momentos, a maioria deles marcados por personagens do próprio bairro. Na Rua Miguel de Quadros Marinho, por exemplo, ouvimos a entrevista de Dona Jacira, nordestina, que fala sobre a condição da mulher. Na Rua Cochonilha, o público se depara com invenções, para ver a vida de outra forma. No Beco da Rata, mais poesia. Crianças da comunidade acompanham o percurso inteiro empolgados (até que algum pai ou mãe chama) e também participam da encenação.
Se as relações, inclusive na arte, podem ser mais rápidas e fortuitas, não foi o que aconteceu entre o Estopô Balaio e o Jardim Romano. Isso é muito claro para quem acompanha a apresentação e faz a diferença completamente nesse projeto, que diz muito mais sobre respeito e empoderamento do que só sobre arte e teatro em si. Foi no bairro, por exemplo, que o grupo instalou sua sede, numa demonstração efetiva de que o olhar estrangeiro queria ser tomado, fundido, pelo olhar local.
Esse talvez seja o principal mérito desse trabalho. Ao mesmo tempo em que os atores “profissionais” realmente acumulam experiências de vida e não só simulacros e memórias, os atores “moradores” atravessam o caminho em direção à própria voz. Estão todos no mesmo barco, na mesma rua de paralelepípedo, no mesmo beco enlameado que tem as paredes cobertas de poesia. Todos se influenciam, se misturam, se deixam afetar.
É um espetáculo também que desperta a noção de pertencimento, discute a cidade que queremos, a vida que desejamos levar, os sonhos pelos quais lutamos. Se durante muito tempo na comunidade, era o rio quem vinha ao encontro dos moradores, impondo como eles mesmo dizem, os tempos da água, da lama e do pó, agora somos nós que vamos ao rio, num movimento não só de autocompreensão, mas de tentativa de diálogo com o mundo no qual estamos inseridos.
Ficha Técnica
Ideia original, roteiro e direção: João Júnior
Dramaturgia: Estopô Balaio
Atores: Ana Carolina Marinho, Juão Nin, Johnny Salaberg e Renato Caetano
Atores-moradores: Adrielle Rezende, Bruno Cavalcante, Bruno Fuziwara, Keli Andrade e Paulo Oliveira
Participação: Emerson Alcade
Trilha Sonora: Marko Concá
Sonoplastia: Carol Guimaris e Doutor Aeiuton
Poesias: Debora Fiúza “Rata”, Emerson Alcade e Jacira Flores
Canções: Diane Oliveira, Dustin Mc e Matheus Farias, Juão Nin, Marko Concá
Figurino: João Júnior
Artes Visuais: Paula Mendes, Renato Caetano e Clayton Lima
Dança de Rua: Kel Look, Popper Diniz, Jeans, Bia Ferreira, Big Baby e Mell Reis
Produção: Wemerson Nunes, Clayton Lima e Ana Maria Marinho
Comunicação: Ramilla Souza
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***A cobertura crítica da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo é uma ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, que articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).