A atmosfera é de opressão. Ar denso, sufocante por tudo que o público vai ver ali. Um lugar pequeno demais para caber 25. Mas eles estão lá, se espremendo, definhando, sendo apagados naquele cubículo. De tão juntos perdem a individualidade. Prisão. Prisioneiros que exigem dos seus observadores um posicionamento político e social. Que talvez não venha.
O espetáculo Sistema 25 entra na sua quarta temporada. As duas primeiras sessões foram no Teatro Marco Camarotti. A terceira, e essa também, no Espaço Experimental (na Rua Tomazina). Cada apresentação para 25 espectadores. Todas lotadas.
Sistema 25 não é um espetáculo realista. Trata de prisões e agrupa 25 homens. Na primeira camada estão os detentos, criaturas que em condições indignas perderam a humanidade. Mas há de todo tipo, como nas cadeias aviltantes pelo país afora. Lá são criadas regras, hábitos, rituais, e uma luta medonha pelo poder. Ou para poder sobreviver.
Há muitas outras camadas, de afeto, de proteção, de medo, de lealdade, de cumplicidade. Mas vale tudo. Também a enganação. As partituras de ação foram construídas pelos atores-dramaturgos-narradores, sob a batuta do encenador José Manoel Sobrinho. Todo o processo começou há mais de um ano. E continua. Nesse procedimento contínuo de criação esses presos se digladiam e confessam suas culpas, histórias de toda ordem.
A montagem foi erguida movida pela paixão dos atores e a militância do diretor José Manoel. Sistema 25, apesar da complexidade da cena, do número de artistas e técnicos envolvidos, não tem patrocínio. É um teatro de resistência puro sangue. “Faço porque acredito na forma da arte para a minha vida e de vários outros”, confessa José Manoel. Confira abaixo entrevista do diretor e um pequeno depoimento de um dos atores.
SERVIÇO
Sistema 25
Quando: 31 de julho, 1º e 2 de agosto, às 20h (ESGOTADO)
Onde: Teatro Experimental
Entrevista: José Manoel Sobrinho
Você sempre teve interesse de falar dos excluídos. Você desenvolveu há décadas atrás um trabalho nos presídios. Essa atuação nas prisões influenciou Sistema 25?
Durante muitos anos, como integrante da Federação do Teatro de Pernambuco, Feteape, coordenei os Projetos Coringa e Alvará de Expressão, no Sistema Penitenciário de Pernambuco realizando ações artísticas para e com pessoas em situação de prisão física. Em 8 presídios do estado. Era um projeto complexo e importante, pois eles assistiam, discutiam, faziam cursos, ensaiavam, montavam espetáculos e apresentavam nos presídios e nos teatros de Pernambuco. Uma experiência excepcional e uma equipe aguerrida de artistas e profissionais da extinta Secretaria de Justiça de Pernambuco.
Influenciou-me muito e influencia sempre, em todos os aspectos, principalmente para me fazer compreender melhor a situação do preso, uma visão mais humana, não condescendente, mas humana. Vivi experiências radicais no presídio, lidei com os extremos, com o poético, com o estético, mas com o furor produzido na prisão.
Mas a principal influência é que me faz afirmar que há muita humanidade e muita desumanidade convivendo no mesmo território. Lidei com extremos, doeu, foi difícil, mas vi a arte mudando a vida das pessoas, se não para mudar a condição, mas para fazer refletir sobre os pactos de convivência. Em quase 10 anos nunca houve uma situação de traição, há um pacto de forte convivência. Muito jogo de dominação.
Por que voltar aos presos?
Porque é de uma atualidade atroz. O sistema prisional brasileiro é algo assustador, construtor e promotor de criminosos. Uma fábrica de delinquências, sem controle, tudo misturado e ali convivem todas as pessoas. É brutal e desumano, nivela-se tudo e todos por baixo. Uma convivência brutal, porque as pessoas não são iguais e não há maldade em todos. Tem gente ali por pura fatalidade, por infortúnio, mas passa por todas as agruras.
Me interessa pensar no ser humano. Não falo de redenção, nem de perdão, falo de humanidade e de brutalidades.
Muita gente está lá sem sequer ser julgado. Presídios são fábricas de criminosos em potencial, lugares sem lei. Nada daquilo resolve a criminalidade, não baixa nada, só aumenta.
É lá, no presídio, que o crime se organiza e o poder público brasileiro não consegue resolver, não basta somente a força e a coerção. É um sistema muito caro para o país e que só dá prejuízo e não garante redução da violência.
A redução da maioridade penal, por exemplo, é manipulação para dizer que está fazendo algo para diminuir a criminalidade. É um blefe patrocinado por outros sistemas criminosos que atuam fora dos presídios. Outros grupos sociais com interesses diversos, para tirar o foco da atenção.
A peça é forte, potente é ali convivem várias cenas e ações que se completam e se chocam. Como foi o processo de construção de cada quadro?
Tem sido um processo longo, a partir de um monte do conto de Plínio Marcos. “São 25 homens presos num cubículo imundo onde só caberiam 8, 25 homens para morrer…”. Desse mote a dinâmica do espetáculo aconteceu.
Convidei 25 atores, 6 compositores, 1 iluminadora, 1 diretor musical, 1 assistente de produção e construímos juntos um processo que chamei de Jogos de Aproximação. Cada ator conduziria uma parte do jogo criativo, dominador e dominado, cada um foi líder por algum tempo. Diversos temas foram tratados e nos jogos elaborados na sala de ensaio a dinâmica foi sendo construída. Do que trabalhamos em salas, aproximadamente 60% está no espetáculo, os outros 40% foram descartados, estão no nosso corpo, nas memórias, são as memórias do coletivo.
De que forma Inútil Canto e Inútil Pranto pelos Anjos Caídos, de Plínio Marcos, entra no espetáculo?
Na peça aparece apenas o mote acima referido. E claro todo o discurso subjetivo de Plínio Marcos. Ele foi sempre a nossa inspiração, o Plínio, mais que sua obra, as suas atitudes. Um homem de profunda humanidade, crente nas possibilidades da arte.
Uma dramaturgia polissílaba,
ecos de atores-dramaturgos.
A primeira orientação para mim mesmo: não replicar Plínio Marcos. Ele funcionaria como uma espécie de alterego, uma inspiração, nenhum compromisso com o real cromatismo proposto por sua dramaturgia. A criação de novos códigos, senão novos, ao menos códigos que refletissem o universo do grupo. O espetáculo de algum modo deveria estar pautado nas inspirações e no trabalho dos atores e técnicos mergulhados nesta experiência. A segunda orientação fora para expurgar qualquer certeza, jogar fora qualquer verdade absoluta, nenhuma certeza. Terceira diretriz, pensar o lugar do público, como lidar com ele. Este mais que um desafio, uma inquieta busca de alternativas. A quarta pontuação estava voltada para o tema central, nada de afirmações do tipo, “marginal”, nem vítima, nem vilão. Cada um tem sua prisão, cada um tem sua visão sobre a prisão, cada um tem um “olhar sobre”, uma visão de fora. O olhar do outro sobre o preso. Outra meta, não deveria existir personagens, somente ação. Mas ação de quem? Dos presos comuns, outra vez a afirmação-negação: na nossa cabeça todos estão mortos, empalhados, porque a perda de poder é igual a perda de forças. Aliás, medição de força é uma questão dramatúrgica.
A escrita dramatúrgica necessita dizer, de algum modo, o que une, na solidão de cada um. Apontar para um jogo que mostre uma cadeia de relações. O espetáculo necessita parecer que é uma história não escrita, com muitas imprevisibilidades, do contrário estará esgotado em seu nascedouro. Este é um espetáculo de muitas vozes, uma palheta de cores em decomposição, “pequenas peças dentro de uma peça”. Quando afirmamos que o espectador pode sair temporariamente, dormir, voltar, é porque a dramaturgia apresenta um recorte com muitas individualidades. São curtas cenas que juntas constituem uma grande cena, múltipla e prenhe de antagonismos, mas você pode perder pedaços que não sofrerá disfunções comunicativas.
Os atores-dramaturgos-narradores são responsáveis por cada cena articulada, partindo do corpo e do tema construíram textos cênicos, partituras de ação. Foram tocados pelo furor de Plínio Marcos e construíram a dramaturgia os artistas Beto Nery, Breno Fittipaldi, Bruno Britto, Edinaldo Ribeiro, Eddie Monteiro, Emanuel David D’Lucard, Geraldo Cosmo, José Manoel Sobrinho, Marcílio Moraes, Neemias Dinarte, Normando Roberto Santos, Robson Queiróz, Samuel Bennaton e Will Cruz. Há, ainda, fragmentos de Plínio Marcos e autores anônimos, pois transcrevemos uma conversa ao telefone entre dois presidiários no jogo malicioso da venda de produtos falsos, um golpe atual e contumaz. O exercício de dramaturgia transformou-se em uma experiência na zona do risco. Um grande risco porque a maioria dos atores-autores são remanescentes de uma tradição teatral, inclusive o encenador. Qual o lugar do espectador é o principal desafio e estamos longe de obter respostas. Há muitas controversas.
A Temporada de Processo, segunda etapa do jogo, nos fez perceber a nossa vulnerabilidade e somente tem acentuado as nossas dúvidas e incertezas. Nenhum caminho nos parece definitivo. O lugar do espectador parece ser o imponderável, ainda muito manipulado. Nosso espetáculo ainda manipula o que assiste e essa relação de dominação em princípio não é de nosso interesse. Falta-nos convicção, crença, técnica e tranquilidade para abrir mão das formas e ensejar a instabilidade que tanto buscamos. O espetáculo é incompleto, inconcluso, cheio de vulnerabilidades. Literalmente, muitas micro cenas ainda não foram inseridas, assim como várias músicas. Mas que fique claro, isto é do processo. Faz parte de uma estratégia. Remete ao sentido de treino. Não é um ato negligente.
É sempre muito tenso montar um espetáculo e uma das metas era aprender a conjugar outro verbo, processar. E em segundo tempo, tolerar. Uma jornada de quase um ano, mas somente na semana de estreia estava todo o elenco presente. Os treinos foram realizados por blocos, em pedaços, por cenas, para depois reunir o coro de homens em frenética algazarra. Um séquito masculino com véus e tudo. Energia masculina ao extremo, no entanto malhada de alma feminina. Paradoxos. Um controle de frequência demonstrava os riscos do empreendimento, uma zona de areia movediça por onde a experiência transitava. Mas isso é assunto para outra reflexão.
Que mudanças você empreende a cada nova temporada?
Tenho me aventurado, nada é definitivo, tenho modificado textos, trocado atores, mudado a dinâmica da trilha sonora (ora ao vivo, ora gravada), mudo o lugar do público (pequenas alterações, mas que desestabilizam os atores). Mas não tenho sido competente para radicalizar mais. É difícil, venho de um teatro burguês. Queria ser mais radical, me desestabilizar, aos atores e técnicos e ao público, mas sou medroso, não evolui muito.
Trabalhar com um elenco tão grande, sem patrocino nem lugar fixo para as apresentações não é uma insanidade?!
É uma insanidade sim, mas necessária para mim neste momento. Ano que vem completo 40 anos de teatro e não podia, nem queria me perder nos meus objetivos. Sou militante, a militância me chama. Faço porque acredito na forma da arte para a minha vida e de vários outros. O tempo tem sido generoso comigo porque me mostra, a cada hora passada que Arte pulsa e é necessária. Ingênuo? Utópico? Pode ser, não tenho medo, não devo muitas satisfações, nem tenho nada a provar. Quero fazer e faço. Para isso também serve o tempo, a passagem do tempo.
Não sei se quero um lugar fixo, aliás, sei, não quero. Pretendo realizar no mínimo 200 apresentações e ocupar uns 50 espaços do Recife e RMR. O difícil é a iluminação, essencial para a cena, mas cara. Luciana Raposo elaborou um projeto bem arrojado e não acho justo ela utilizar os seus equipamentos sem ser paga, eles se desgastam, precisam de reposição e a produção não tem verba. Isso é o que mais me preocupa.
Estreamos em abril e já fizemos 20 apresentações, no Teatro Marco Camarotti e no Espaço Experimental. Quero fazer no Teatro Hermilo Borba Filho, no Teatro Arraial, no Teatro Apolo, no Capiba, no Barreto Júnior, na Fiandeiros, no Poste, nos antigos Teatros do Forte (Cinco Pontas) e Clênio Wanderley (Casa da Cultura), quero fazer em Camaragibe, no Cabo de Santo Agostinho, em Jaboatão dos Guararapes, em Olinda, em Arcoverde e Garanhuns. Não sei como, mas eu vou fazer.
As Motivações para a proposta
Sem muita regularidade tenho dirigido espetáculos em Recife, os últimos sempre com o aporte do Funcultura, Fundo Estadual de Cultura, do Governo de Pernambuco, Secretaria Estadual de Cultura, Fundarpe, o que tem sido vital para podermos criar os espetáculos e manter curta temporada, de no máximo 12 apresentações. Cumpridas as etapas de criação e de breve temporada tem sido comum entrarem os espetáculos em uma sombria zona de apatia e de degredo, porque as oportunidades são poucas e com o tempo rareiam levando todo o esforço coletivo para o esquecimento. O Funcultura, assim, torna-se com exceções, evidentemente, o aporte para que se faça um espetáculo e por aí para. Os produtores não conseguem sair desta armadilha, ficam reféns de uns poucos projetos ou festivais, quando muito uma viagem aqui, outra acolá. E instaura-se uma crise porque não há sobrevida para o espetáculo e encenadores, artistas e técnicos veem-se, rotineiramente diante de um morto-vivo, o resultado de meses de trabalho fica congelando, definhando, amarelando. Não rara é a frustração, como também o surgimento de litígios entre artistas e produtores. Aqueles, na maioria das vezes rotulam estes de inoperantes, ineficientes e sem proposição para a manutenção do espetáculo. Alguns produtores mais ousados rompem essa lógica, mas são poucos. Esta realidade me perseguiu em quatro das seis montagens que dirigi nos últimos tempos. Duas sobreviveram um pouco mais porque havia o suporte de um grupo, dando alguma sustentabilidade, mas mesmo assim sem muita consistência.
Os debates e os embates levam a diversas questões, algumas pedagógicas, mas a maioria são polêmicas, afinal por que e para que se faz teatro hoje em Pernambuco? E para quem? Existe fidelização de público? Há mercado? Há a profissão de ator e encenador quando não existem as garantias mínimas de trabalho continuado? É correto depender unicamente dos recursos do Funcultura? E a iniciativa privada tem papel ativo no conjunto das práticas teatrais, atualmente? São questões que permanecem sem respostas dos coletivos. As políticas públicas de cultura são eficazes o suficiente para suprir as demandas das categorias? É de fato verdade que os artistas têm um espírito assistencialista, que gostam de ficar reféns do estado, que não criam alternativas para autonomia e independência? Quais as motivações para se fazer teatro, hoje? E o capital social inerente à arte tem sido reconhecido pelas estruturas da sociedade? E a questão da representatividade política dos artistas e técnicos que papel tem ocupado nesta cadeia? Muitas perguntas, poucas respostas práticas.
A saída para muitos tem sido criar projetos de resistência, a exemplo do Coletivo de Teatro Domiciliar criado por algumas companhias e que vem realizando encenações dentro de residências ou as iniciativas de grupos e companhias que constituem suas sedes e as transformam em espaços para apresentações ao público, a exemplo da Fiandeiros e de O Poste, dentre outros. Não tem sido fácil ser encenador ou ator em uma cidade como o Recife, com poucas opções de trabalho e raras possibilidades para uma experimentação mais apurada, para um projeto mais ideológico ou mesmo para o desenvolvimento de estratégias de encenação ou atuação. Também não há casas de espetáculos suficientes e as que existem estão fragilizadas em estrutura e política de ocupação.
Para não ficar refém dessas armadilhas ou para tentar suplantar esse estado de coisas resolvi tomar uma atitude um pouco radical, montar um espetáculo para poucos espectadores, com muitos atores e técnicos e nenhum real. E me dispus a pesquisar alternativas, inclusive em relação ao tipo de espetáculo, seu enfoque e abordagem.
As Primeiras providências
Concomitante à pesquisa referente ao que seria a experiência listei 50 atores e comecei a etapa de diálogos sobre as minhas inquietações e o desejo de montar um espetáculo sem produtor, autônomo, sem data para estrear e sem recursos financeiros. Chamei esta etapa de conversas de Proposta Indecorosa, fazer arte sem perspectiva alguma de sobrevivência material. Uma grande contradição de minha parte, mas sabia que somente quem tivesse condições toparia fazer. Já conhecia a obra de Plínio Marcos, havia dirigido nos anos 1980 o seu texto Jesus Homem e relendo alguns textos reencontrei o livro Inútil Canto e Inútil Pranto pelos anjos Caídos, e nesse o conto Em Osasco que narra sobre 25 homens presos em uma cela onde só caberia 8 homens. Pronto. Tinha um mote, uma metáfora, marginais sem lugar, sem individualidades, sem representação, sem política, sem possibilidade de expressão. Estava definido o mote. Parti então para a consolidação do elenco, de alguns técnicos e de compositores, porque também houve a decisão de contar com uma trilha sonora original composta para a encenação. No dia 4 de maio de 2014 aconteceu o primeiro encontro do elenco. Alguns não conseguiram manter-se no processo, surgiram outras possibilidades de trabalho, outros porque não tinham condições ou vontade de assumir tal compromisso. E começaram os trabalhos práticos que estenderam-se por 11 meses e 21 dias.
A Primeira estreia: Temporada de Processo – Notações.
Entendam Temporada de Processo como sendo uma etapa, um lugar inacabado, um estágio das vivências, um espetáculo em fase de experimentação, um jogo de convivências, uma equação de desejos, caminhos para a cena, um quebra-cabeças, um mosaico, uma colcha de retalhos, um jogo onde todos estão presos, uma história não escrita regularmente, estilhaços. O todo e a solidão década um, uma cadeia de relações. Confissões. A palavra pendurada, instável, sensação de dor e odor. Na nossa cabeça todos estão mortos. Estão? Sol e não-sol, sal e não-sal. O corpo mídia, o corpo suporte dos sentidos. Perder-se em palavras. Negação e nojo da palavra. O que une e separa. A espera. O tempo. Um Sistema, o sistema. Jogo de aproximação e de enfrentamento. Querer e repulsar. Animais em disputa, em mina de amor. Os desejos. Não há nenhuma certeza. Cada um tem sua prisão. O olhar dos outros sobre os presos. Somos a última coisa depois do nada. Uma visão de força. Cada um tem sua prisão. Cada um, cada um. Anunciação. Homens comuns. Intermitentes. As pragas da pele e da mente. Ensaios sobre o amor, sobre a dor, sobre a força. Um mercado aberto em nome de Deus. De Deuses. Inútil espera para um nuevo tango. Reduto de patriotas fugados, códigos de amantes tatuados. O peso do tempo na zona autônoma temporária do anjo incestuoso. A cela. Nossa Senhora Maria dos Anjos perdida. O poder da força. Um lugar sem donos, com líderes falidos, artimanhas para se manter, um território ébrio porque o que importa é apenas estar, sob qualquer condição. Viva o todo poderoso homem.
Temporada de Processo cansa, é desconfortável, demora, precisa de paciência.
Nesse processo o espectador pode sair, tomar água, ir ao banheiro do camarim, sentar no chão, deitar-se onde quiser, dormir, mudar de lugar, atender o telefone, fotografar, falar ao zap, falar com os atores, alongar-se, entrar em cena, cantar junto, dizer poemas, não fazer nada, gritar.
Nesse processo todos estão trabalhando de graça, não porque não precisem, mas porque a cada dia está mais difícil sobreviver da arte do Teatro em Pernambuco, terra de muitos e de poucos.
Queria saber mais da técnica de criação, vertentes de pesquisa, construção de personagens.
Não é Plínio Marcos.
Acostumei-me, durante minha infância no Sítio Serra dos Bois, em Bezerros, Agreste de Pernambuco, a assistir madrugada adentro as cantorias de Pé de Parede. Nessas cantorias o que mais me impressionava era a quantidade de motes que o povo escrevia, colocava nas cuias ou chapéus juntamente com cédulas curtas ou moedas e que, de imediato, eram improvisados pelos cantadores. Uma maestria, coisa de gênio, habilidade que me deixava impactado. Nunca consegui improvisar assim, fazia motes ingênuos e românticos, pouco provocativos, pouco criativos. Desisti rápido. Mas aquilo ficou na minha memória para sempre. Mais, ainda, a vontade de improvisar. Talvez por isso anos depois eu tenha me transformado em professor da disciplina Improvisação para o Teatro, nos Cursos de Teatro do Sesc (Serviço Social do Comércio) e no Curso Básico à Formação do Ator, da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), em Pernambuco e seja um atento leitor da pesquisadora Viola Spolin.
Com o Sistema 25, resguardando-se as diferenças culturais e temáticas, tudo foi muito parecido, os motes eram retirados da obra de Plínio Marcos, dramaturgo de São Paulo e, a partir desses motes, na sala de ensaio as cenas foram sendo escritas:
“Eram vinte e cinco homens empilhados, espremidos, esmagados de corpo e alma, num cubículo imundo onde mal caberiam oito pessoas.”
“Eram vinte e cinco homens colocados no imundo cubículo para morrer. Para morrer aos poucos. Para morrer de forma que parecesse natural.”
“Para morrer sem estremecer as relações internacionais dos cidadãos contribuintes.”
Quem agora assistir ao espetáculo vai perceber que houve um desvio de intenção, porque não é deste tema que trata o Sistema 25 e sim da condição de vida extrema e de como qualquer pessoa, independente de estar encarcerado no sistema prisional, desequilibra-se diante de uma vida sem perspectiva. A desordem e o caos constituem outros sistemas para além das cadeias e presídios.
Mas, voltando ao processo…
Nos últimos tempos me reaproximei dos motes de minhas memórias afetivas quando da realização das Jornadas Literárias Portal do Sertão e Chapada do Araripe, projetos do Sesc Pernambuco que eu criei e coordeno, especialmente quando Cida Pedrosa e Sennor Ramos, curadores das Jornadas, começaram a inserir na programação as Mesas de Glosa, espaços de expertise, desafios que são genialmente vencidos por glosadores exímios, homens e mulheres dotados de excepcional capacidade criativa. Em outra dimensão, ouvir Zé Brown e Júnior Baladeira, mestres do rap, com suas habilidades de improviso também me serviram de referência e inspiração para conduzir os ensaios que geraram o nosso espetáculo. Mas, atenção, esteticamente não há nenhuma aproximação entre estas tendências da arte, elas serviram de estímulo para a minha condução do processo, na minha solidão criativa.
Conheço a obra de Plínio Marcos, “o poeta do submundo, o dramaturgo maldito ou simplesmente, o repórter de um tempo mau…”, dirigi nos anos 1990 o seu Jesus Homem, assisti a muitas montagens de seus textos para o teatro, também conheço o seu livro Inútil Canto e Inútil Pranto pelos Anjos Caídos, ficando particularmente aficionado pelo conto Em Osasco, sobre homens presos em uma cela de pequenas proporções, seus dissabores e desesperos e sobre seu estado-limite de convivência e de desumanidade. Esse foi o nosso ponto de partida, a “Cena da Origem”. Do conto Em Osasco identificamos os nossos motes para a série de improvisos de onde emergiriam as cenas, suas personagens e posteriormente os discursos, os textos dramáticos.
Por aproximadamente 12 meses mergulhamos nas dores e odores destes homens, testosteronas agitadas, pulsações firmes, oscilações da alma, inteligências provocadas de onde muita arte surgiu. No espetáculo, agora em pé, pouco mais de 30% de tudo o que foi criado nos laboratórios de experimentação é que está em cena. Os outros 70% ficaram na memória de seus criadores, nos registros e rabiscos guardados em algum caderno de anotação ou se perderam na vastidão das subjetividades.
Estrutura do Espetáculo –
Cenas por ordem de acontecimento no palco:
Cena 1 – Prólogo – Cela. Música, Hino de Pernambuco (1908), letra de Oscar Brandão da Rocha e música de Nicolino Milano. Dramaturgia de José Manoel Sobrinho.
Cena 2 – Anunciação, dramaturgia de Will Cruz.
Cena 3 – O Guarda-Chuva, sobre mote de Plínio Marcos, dramaturgia de Samuel Bennaton. Música Alma de Palhaço, letra e melodia de André Filho.
Cena 4 – Cena Intermitente, dramaturgia de Samuel Bennaton.
Cena 5 – As Pragas da Pele e da Mente, sobre mote de Plínio Marcos, dramaturgia coletiva.
Cena 6 – O Carrasco, dramaturgia de Geraldo Cosmo e Beto Nery.
Cena 7 – Confissão, sobre mote de Plínio Marcos, dramaturgia de José Manoel Sobrinho.
Cena 8 – Mercado Aberto, 1ª parte, dramaturgia de presos brasileiros, anônimos.
Cena 9 – Ensaio sobre o amor, dramaturgia de Emanuel David D’Lúcard.
Cena 10 – O Homem Deus, dramaturgia de Marcílio Moraes.
Cena 11 – O Bloco, dramaturgia coletiva.
Cena 12 – Mercado Aberto, 2ª parte, dramaturgia de presos brasileiros, anônimos.
Cena 13 – Um Nuevo Tango, dramaturgia de Bruno Britto, Robson Queiróz e Emanuel David D’Lúcard. Música Tenho que te amaro, de Geraldo Maia, com letra de Emanuel David D’Lúcard.
Cena 14 – Cartas: Inútil Espera, dramaturgia de Breno Fittipaldi e José Manoel Sobrinho. Música Amor Partido, de Eduardo Espinhara, Thyago Ribeiro Romildo Luis.
Cena 15 – Alvará de Soltura, dramaturgia de Cláudio Siqueira e José Manoel Sobrinho.
Cena 16 – Reduto, dramaturgia de Marcílio Moraes.
Cena 17 – Patriota, (cena ainda inacabada) sobre tema proposto por Billé Ares.
Cena 18 – Códigos, dramaturgia de Emanuel David D’Lúcard.
Cena 19 – Ensaio Sobre a Força, dramaturgia de Emanuel David D’Lúcard. Música O Tempo, de Eduardo Espinhara, Thyago Ribeiro e Romildo Luis.
Cena 20 – Dama de Copas, dramaturgia de Edinaldo Ribeiro.
Cena 21 – O Amante de Carminha, dramaturgia de Eddie Monteiro e Will Cruz.
Cena 22 – Tatuagem, dramaturgia de Will Cruz e Edinaldo Ribeiro.
Cena 23 – Segredos da Bíblia, dramaturgia de Neemias Dinarte e José Manoel Sobrinho.
Cena 24 – O Sapato, dramaturgia de Eddie Monteiro, Will Cruz e José Manoel Sobrinho.
Cena 25 – Ensaio Sobre a Dor, dramaturgia de Emanuel David D’Lúcard.
Cena 26 – La Libertad, dramaturgia de Marcílio Moraes, sobre mote de Plínio Marcos. Música O Fogo, letra e melodia de André Filho.
Cena 27 – O Fogo, dramaturgia coletiva.
Cena 28 – Anjo Incestuoso, dramaturgia de Marcílio Moraes, sobre mote de Plínio Marcos, música Anjo Vindouro, de Geraldo Maia, letra de Marcílio Moraes.
Cena 29 – Zat – Zona Autônoma Temporária, 1ª parte, dramaturgia de Samuel Bennaton.
Cena 30 – Epílogo – Zat – Zona Autônoma Temporária, 2ª parte, dramaturgia de Samuel Bennaton. Música, Hino de Pernambuco (1908), letra de Oscar Brandão da Rocha e música de Nicolino Milano.
A articulação dessas dramaturgias foi realizada por todo o elenco, com participações relevantes de Emanuel David D’Lúcard, Samuel Bennaton, Will Cruz, Eddie Monteiro, Breno Fittipaldi, Neemias Dinarte, Beto Nery, Robson Queiróz, Bruno Britto e José Manoel Sobrinho. Organização de José Manoel Sobrinho.
O que você acha importante falar que eu não perguntei?
Uma pausa para a realidade.
Agora, algumas questões já podem ser confirmadas. Fazer teatro sem recursos é algo impraticável. Não há concepção que se sustente, nem ator que consiga fazer sobreviver o seu entusiasmo, aquele tão necessário aos processos criativos, sabendo que vai terminar o ensaio às 22h e que somente na virada da madrugada é que vai chegar a casa. Alguém imagina, quem conhece a dimensão da Região Metropolitana do Recife, que um ator morando em Vera Cruz/ Aldeia/ Camaragibe ou em Vila Sotave/ Jaboatão dos Guararapes ou em Jardim Primavera /Camaragibe ou no Janga/ Paulista ou em Prazeres/ Jaboatão dos Guararapes ou em Zumbi dos Pachecos/ Recife, alguém imagina que um elenco enorme, residente em quase 20 bairros diferentes esteja todos os dias feliz da vida para ensaiar um espetáculo? Fazendo o percurso de ônibus, alguns chegando a ficar 2 horas no deslocamento? Alguém imagina que isso acontece no teatro do Recife e sem ganhar nenhum real? Pois este é o panorama de uma parcela do elenco do Sistema 25. A maioria faz o seu deslocamento passando pelos desrespeitosos terminais de integração de passageiros, andando em ônibus lotados, sem ar condicionado, demorando até 1 hora para chegar ao seu ponto inicial. Uma sujeição para a qual ninguém está preparado, uma torpeza da má gestão do serviço e do transporte público em uma cidade como o Recife.
Sobreviver ao cruel Sistema do Transporte Público em Recife é um feito de herói, sendo importante lembrar que a maioria passa o dia trabalhando para poder sobreviver dignamente, para depois, em terceiro expediente fazer o seu espetáculo. O famigerado Sistema de Integração de Transporte Público em Recife e Região Metropolitana é uma deslealdade com o povo desse lugar. É a prova inconteste da incompetência da gestão pública do Estado e dos Municípios. Na esfera Municipal, para além do Recife, aí, pior fica, veículos velhos, sujos, sem cumprimento de horário e sem opção.
Quando o ator chega ao ensaio, cansado e atrasado não há encenador que consiga energia para a construção da cena. Não há processo criativo que sobreviva, que se mantenha.
Narrativa de um ator-dramaturgo,
Will Cruz, sobre um dos processos:
“Tendo como mote o “Inútil canto e inútil pranto…” do Plínio Marcos, os exercícios físicos de integração do elenco, e a determinação do encenador que nos propunha encontrar as personagens dentro deste vespeiro de individualidades que se apresentava no texto, no elenco, na técnica, no público provável… busquei na lembrança de meus dias de professor de presídio, a mescla de memórias que me permitisse desenhar um. Consciente da vastidão de mundos emergentes, minha prioridade sempre foi ser econômico, enxuto, higiênico na escritura.
O tatuador foi o primeiro, nasceu da solidão exacerbada que sinto e vejo em todo lado. Era sozinho, autoflagelante, onanista-masoquista, seu gozo e punição era ter tudo que lhe importava em seu corpo pra sempre. Quando ganhou um companheiro de cena, e eu de escrita, a solidão cresceu, e brotou o ódio e o desprezo, que se incorporou a esta persona que preferiria não falar. Tanto que por nove vezes a cena foi refeita, sempre tirando excesso, ficando apenas com o estritamente necessário cênico. Bebi em Fonte de vida ( o sofrimento que se desenha infinitamente no corpo), no Livro de cabeceira, e nas esculturas do português Manuel Rosa (1984, calcário)
A anunciação, me aconteceu após um dos jogos físicos intensos com o elenco; me veio em imagem e texto e luminosidade, como um filme que simplesmente transcrevi pro papel. A presença de D. Maria dos anjos, foi um sopro da realidade, quando de sua morte, que a colocou como santa entre nós. E a referência bíblica do massacre dos inocentes foi inevitável pra mim. (É que a minha leitura do escrito do Plínio Marcos, me dizia que todos sempre estiveram mortos).
O amante de Carminha, nasceu de minha necessidade de ver o desejo heterossexual dentro da cela; mas também de carinhar a única mulher que transitava entre nós no multifacetado processo de construir estas personas, esta cela, estas cenas. Havia a necessidade de falar de outros menos óbvios desejos, deleites e delírios.”