Gravação de experimento cênico foi exibida no Janeiro de Grandes Espetáculos. Foto: Ari Soarez/Maker Mídia
Um jogo dialético está dividido em dois momentos: do “palco tabuleiro arena” e da live do julgamento. Foto: Ari Soarez/Maker Mídia
Gravação está online no canal do JGE no Youtube. Foto: Ari Soarez/Maker Mídia
No longínquo século 20, Candinha infernizava a vida de Roberto Carlos “papo firme” com seus mexericos. Essa personagem musical atormentava as escolhas de RC e falava “algo” de toda gente, da rua, do bairro, quem sabe do país. Mas ela era identificável. Essa moça faladeira, que cuidava mais da vida alheia do que da própria, parece agora tão inocente nesses tempos de fake news e pós-verdades. Tudo bem, tudo bem, Nietzsche já vaticinou que não existem verdades absolutas. Mas o que vivemos atualmente no campo da comunicação é medonho.
A nova ordem global chegou com muitos penduricalhos. Pós-verdade e fake news são termos carregados nessa onda. A rapidez pós-moderna plugou na abundância de fontes de informações e meios midiáticos, tanto tradicionais quanto digitais, e fez a festa. Com fartura de fake news, historietas produzidas, boatos e colisões de desinformação. A notícia sofre nessa sociedade em rede sobrecarregada de armadilhas.
Um bando de atores em formação mergulha na criação a partir dos seus isolamentos. A proposta do Experimento multimídia Um Jogo Dialético, do Curso de Interpretação para Teatro (CIT) – Santo Amaro, no Recife, busca “problematizar signos e gestus, inspirados numa herança brechtiana”. Como em muitos outros trabalhos forjados durante a pandemia do Covid-19, a tentativa é averiguar essas novas possibilidade da lida cênica via web, a aproximação distanciada entre criadores e assistentes até a noção de esgarçamento.
O experimento pode ser considerado em dois momentos. A primeira batalha ocorre num “palco tabuleiro arena”, com revezamento de personagens em volta ou sobre uma grande mesa. O segundo tempo desse jogo funciona como uma live coletiva em que essas figuras decidem sobre o destino do Homem.
Quando entram, um dos atores vai ao microfone e fala: “É uma casa modesta. Tem uma mesa. A mãe está sempre botando comida para o pai. A filha está à esquerda, o filho à direita. Não há nada nessa casa que possa identificar quem são as pessoas”.
Os intérpretes usam máscaras transparentes, que parecem focinheiras. Discutem assuntos banais. Aliás, falam ao mesmo tempo que não dá para entender. Aos poucos, ficamos sabendo que eles se referem a um Homem, que um deles (o Pai) deve prejudicar para garantir algum benefício financeiro.
Eles trocam de função e de persona. O diretor Eron Villar dispara os “motes” para o improviso do grupo. Ciberespaço, beijo grego, fake news, linchamento em praça pública são alguns deles.
Entre frases confusas, dança de cadeiras, interpretações instintivas, uma mistura de frescor e ingenuidade dos corpos atuantes, é possível traçar algumas narrativas. Eles falam de ciberespaço como se fosse um lugar no espeço sideral. Eles jogam com a noção de que alguém quer prejudicar o Homem que veio do espaço. No início, as fakes news devem ser espalhadas para manchar a reputação do forasteiro. Depois, o forasteiro deve ser linchado e eliminado.
Universo das fake news é pauta no espetáculo. Foto: Ari Soarez/Maker Mídia
O elenco usa frase de efeito para destacar algumas questões: “Falar de assassinato é mais bem aceito do que falar de cu”. Ou o discurso da cidadã Lari: “Juiz parece que agora faz parte da família real de Pernambuco. É Campos que se chama, né”.
A recorrência do jogo sobre fake news e de que uma pessoa comum estaria disposta a aceitar essa função de espalhador de notícias falsas por dinheiro aponta as faces do capitalismo. Mas não existem grandes elaborações no tratamento do tema.
Talvez isso forneça uma linha de percepção que posso aproximar do caos instalado no mundo com prevalência da manipulação de dados e da terra arrasada de discernimento. Os termos post-truth – pós-verdade – e fake news – notícias falsas se impõe no mecanismo propositalmente caótico da encenação. Meu pensamento faz associações rápidas sobre algoritmos como agentes da formação das bolhas sociais e monetização das notícias.
Sabemos que a epidemia de notícias falsas causou danos semelhantes a uma pandemia. Vivemos isso todo dia, proporcionado pelo desgoverno que pisa na informação, massacra a saúde e tripudia da vida humana.
Na peça, um Homem veio do ciberespaço. Quem ele é, o que pensa, quais seus propósitos, nada disso fica evidente na dramaturgia. Mas é preciso acabar com ele, criando as condições de linchamento virtual ou físico. Mesmo que o motivo sejam notícias vazias, falsas e sem embasamento.
O destino do Homem é definido na “calada da noite” com a participação de juízes com sentenças já definidas, advogados, ausência do “réu”, um ou outro questionamento sobre os procedimentos.
Experimento realça sua natureza pedagógica. Foto: Ari Soarez/Maker Mídia
O experimento, realça sua natureza pedagógica, a oportunidade de vários atores jogarem, num trabalho que tem uma caprichada iluminação na primeira parte, uma simplicidade dramatúrgica e de atuação. Mas que não perde a oportunidade de instigar os jovens atores com reflexões sobre o ofício de intérprete – quando um e outro se destaca ao microfone para comentar sobre inquietações da arte ou das complexas situações causadas por fakes news durante a pandemia.
E esse frescor, esses improvisos, aquecem o jogo com o diretor Eron Villar que nos faz ouvir soltar suas gargalhadas nos desabafos e atitudes de seus atores, que um passo após outro já estão construindo o devir da cena contemporânea pernambucana.
*O espetáculo foi exibido online no dia 15/01/2021 (e ainda está on-line), dentro da programação do Janeiro de Grandes Espetáculos, na Mostra de escolas independentes de teatro, dança e circo.
Trabalho tem direção de Eron Villar. Foto: Ari Soarez/Maker Mídia
Ficha técnica: Experimento multimídia: Um jogo dialético, do Curso de Interpretação para Teatro (CIT) – Santo Amaro Direção: Eron Villar Elenco: Bruna Sales, Carolina Rolim, Cristiano Primo, Danilo Ribeiro, Fábio Alves, Gabriel Lisboa, Guaraci Rios, Hannah Lopes, Heidi Trindade, Jade Dardenne, João Pedro Pinheiro, Julia Moura, Karla Galdino, Karoline Spinelli, Larissa Pinheiro, Rafael Augusto, Rafael Dayon, Raphito Oliveira, Tanit Rodrigues, Yohani Hesed
Apresentações comemoram um ano de Soledad – A vida é Fogo sob Nossos Pés e 37 anos de anistia no Brasil
O título é do curta metragem de Sebastián Coronel Bareiro, Soledad que aún te niegas a morir. Traduz com presteza a passagem digna, valente, corajosa pelo planeta Terra dessa mulher paraguaia que se tornou militante política e foi assassinada à traição pela ditadura militar brasileira por emboscada do pai da criança que ela carregava no ventre. Há muitas portas de interpretação para o monólogo épico Soledad – A Terra É Fogo Sob Nossos Pés. Todas insuficientes para dar conta da complexidade de uma criação cênica dessa natureza. Mas as percepções e interpretações seguem a urgência do tempo.
O espetáculo faz duas apresentações especiais, nestes 1º e 2 de setembro, no Teatro Hermilo Borba Filho, às 20h, como parte das comemorações de um ano da encenação. Ao mesmo tempo celebra os 37 anos da anistia brasileira. Nesta quinta-feira, logo após a sessão, será reservado um ato de gratidão em homenagem aos ex-prisioneiros políticos, militantes da época que devotaram suas vidas na batalha pela democracia. Além de pessoas que contribuíram com o processo da montagem.
E ainda tinha gente brindando neste último dia de agosto o golpe contra a Democracia. “Respeitem quem foi torturado”, exige a peça que toma posição por quem teve a determinação de cuidar do terreno da soberania e da igualdade. A peça ilumina pontos obscuros da história do Brasil e acompanha Soledad Barret Viedma, desde seu nascimento, passando por vários países, até sua morte. O discurso é veemente. Sozinha em cena, Hilda Torres acende o espírito da guerrilheira da Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR.
“Falar sobre Soledad é traçar um caminho de poesia onde a dor e a alegria estão juntas, seguindo em marcha para erguer ideais libertadores. Falar sobre ‘Sol’ é falar de um pedaço de todos nós, que nos impulsiona diariamente a enfrentar, resistir, sem nunca abrir mão do brilho nos olhos ao imaginar um mundo melhor, com direitos iguais para todos e todas, na compreensão das nossas diferenças”, acredita a intérprete.
O livro Soledad no Recife, do escritor pernambucano Urariano Mota, foi o ponto de partida do processo, em janeiro de 2015. A dramaturgia é assinada pela atriz e pela diretora do espetáculo, Malú Bazán.
Soledad ganha os contornos de um animal que ama a liberdade e dela não abre mão. Com isso assume no seu corpo, nos seus gestos, na sua voz, a militância de todos, um dado universal. A trajetória dessa figura ganha uma poética viva e continua pulsando. Contra os ditadores de todos os tempos, contra a violência em qualquer paragem.
Trechos da vida da guerrilheira são expostos no palco
A composição documental da encenação expõe momentos importantes da vida da guerrilheira. Os episódios de dor são exibidos, num cenário de poucos elementos, com uma luz que convida para a intimidade dessa existência e na alternância da representação do trajeto de Soledad e a exploração do metateatro desvelado em seu processo de criação.
O passado e o presente são confrontados, das barbáries de ontem e hoje, em que direitos são confiscados numa montagem em que esses elementos fazem parte de um organismo vivo, pulsante. Alguns retrocessos são denunciados, como o atentado contra o legado do educador pernambucano Paulo Freire.
É um espetáculo em que o feminino tem voz potencializada. E dá xeque-mate na misoginia e no machismo. Contra isso a força dessa mulher que pegou em armas, exigiu tratamento de igual para igual com os homens, mas também é tomada pela onda do feminino, do amor e da ternura.
A encenação exalta os mitos e ritos ancestrais e evoca os povos originários. E incorpora esses dados na passagem do banho na água com os seios à mostra; na celebração de orixás como Nanã, do candomblé. E cenas fortes como das cruzes gamadas, as suásticas, riscadas a aço em suas pernas pelos militantes neonazistas.
Maternidade defendida por Soledad
No artigo de Opinião de Urariano Mota, Dilma Rousseff e Soledad Barrett, publicado no último 29 de agosto, no Diario de Pernambuco, o escritor e jornalista traça elos da corrente: impeachment, Dilma, ditadura, anistia, Soledad no teatro e o Recife. “Entendam. Quando a brava presidenta amargou a prisão, todas as vezes em que as companheiras de cela voltavam da tortura, ela as recebia com os braços abertos, amparava, dava às sobreviventes sopinhas de colher na boca, e punha na vitrolinha de pilhas uma canção. Imaginem qual. As ex-presas políticas contam que Dilma sempre pedia a elas que prestassem muita atenção à letra de Para um amor no Recife, de Paulinho da Viola.
Paulinho cantava na cadeia ‘a razão por que mando um sorriso e não corro, é que andei levando a vida quase morto. Quero fechar a ferida, quero estancar o sangue, e sepultar bem longe o que restou da camisa colorida que cobria minha dor. Meu amor, eu não esqueço, não se esqueça, por favor, que voltarei depressa, tão logo acabe a noite, tão logo este tempo passe, para beijar você’ “. Boa lembrança de Mota.
Os traços afetivos de Soledad bolem com a memória de quem sofreu com a ditadura. Ou teve seus parentes e amigos mortos e/ou desaparecidos. A própria atriz Hilda Torres vive seu engajamento político que potencializa todos as emoções no palco. E como diz Urariano Mota é “Um encontro de teatro, história e resistência. Imperdível”
Entrevista // Hilda Torres
Hilda Torres na Aldeia do Velho Chico. Foto: Divulgação
Um ano depois de viver agarrada no palco com Soledad Barret Viedma, (da Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR, morta ao lado de outros cinco companheiros) – fora o tempo de pesquisa, preparação da produção, ensaios – o que você tem a nos dizer sobre essa mulher?
Nasceu com sua mãe e ela apenas, por isso Soledad – Solidão; criança que cresceu entre sons de bombas e brincadeiras, levando recados codificados em suas saias para dirigentes comunistas, indo visitar seu pai na cadeia, quando não, ele estava clandestino, presente pelos ideais, mas ausente na lida diária; exilada com sua família com menos de 1 ano de idade e, com 16 anos, no Uruguai, no seu segundo exílio, começa a realizar apresentações de danças folclóricas em eventos solidários ao Paraguai; sequestrada aos 17 por um grupo neonazista que marca com uma navalha o símbolo do nazismo; vai pra URSS estudar teorias comunistas, em seguida vai para alguns países da América Latina na tentativa de invadir o Paraguai; 1967, vai para Cuba treinar para luta armada, casa-se e tem uma filha: Ñasaindy Barrett de Araújo, fruto do seu relacionamento com José Maria de Ferreira de Araújo; 1970, vem para o Brasil numa missão pela VPR; Mas aqui é entregue pelo “Cabo Anselmo”, até então o seu companheiro de quem estava grávida. Ela alfabetiza índios! Mulher, jovem, sonhadora, leal aos ideais, mãe, filha, companheira, dançarina, poetisa, militante aguerrida, dócil, serena, dedicada, destemida, empoderada… Soledad Barrett Viedma.
O que significam essas duas apresentações especiais? Essas celebrações?
Comemoraremos um ano de trajetória de um solo que fala de um passado tão presente, de uma mulher aguerrida que nos fortalece na luta de gênero sobretudo nos dias atuais em que vivemos. Comemorar essa trajetória, é também um momento de agradecer a todas e todos que contribuíram para essa realização, a equipe, amigos(as), colaboradores(as), parceiros(as), as plateias por onde passamos, aos festivais que nos convidaram! É um sentimento de gratidão!E a comemoração dos 37 anos de anistia no Brasil é referente a data da anistia que se comemora em agosto. Mas tendo em vista o que passamos atualmente e ao sentimento de gratidão que nos aflora nesse momento, decidimos agradecer aos ex-prisioneiros políticos e militantes que combateram o regime militar e que estiveram próximos ao processo da peça. Então agradeceremos não só pelo apoio nos dado, mas através deles, agradecer a todos e todas que entregaram suas vidas na luta por democracia, por um único sonho: liberdade! Essa geração atual precisa agradecer a uma geração que jamais poderá ser esquecida.
A vida ficou extremamente mais difícil no Brasil desde que vocês começaram a se envolver com a história de Soledad. Como você analisa esse arco do tempo do que acontece no país?
Desde o processo de pesquisa histórica para a montagem da peça, ainda em 2015, percebemos a relação íntima entre o passado e o presente. Nesse mesmo período aconteciam passeatas em São Paulo, principalmente, pedindo a “volta do golpe militar e chega de Paulo Freire”. Tudo começou a doer muito em nós, tanto que essas duas expressões entram na peça num momento de explosão de uma das cenas, justamente no Brasil. É isso! E depois do mergulho nessa época talvez seja mais difícil entender o que passamos hoje, ou mais fácil, e assim decidirmos por continuar a luta!
Espetáculo homenageia presos políticos que lutaram por Democracia
O título da peça se refere a uma frase da protagonista, que exprime a bravura da militante. Ela já realizava um trabalho de empoderamento feminino na década de 1970. Como você detecta isso?
Resumo numa outra fala dela em resposta aos companheiros homens com quem ela treinava: “Não precisa, eu posso treinar com o mesmo fardamento que vocês”! Soledad hoje é nome e referência de luta feminina para vários movimentos feministas da América Latina!
Coragem e dignidade são palavras que queimam e no momento em que vivemos remete imediatamente para a presidenta Dilma Rousseff julgada (e condenada) por figuras de moral duvidosa, e com a morte política anunciada. Que paralelos são possíveis fazer dessas duas mulheres?
Ambas são destemidas, mulheres que não fizeram questão de serem vistas como a delicadeza da flor, mas que não abriram mão de serem firmes na luta por um mundo melhor.
O Brasil tem revelado que existe um teatro de resistência em atuação em cada canto desse país. Como sua produção vem conseguido essa proeza?
Já tivemos muitas portas abertas, alguns nãos. Normal. Mas já sentimos também que algumas portas foram fechadas justamente pela temática da peça, sobretudo, nos dias atuais.
“Percebemos a arte como gatilho para a transformação social. É preciso tirar a arte do papel da celebridade”, você já disse. Como seria possível isso nesse sistema capitalista capaz de inventar celebridades instantâneas o tempo inteiro?
Tudo vai depender das escolhas que cada fazedor(a) da arte fizer. Sim, trata-se de escolhas mesmo nos momentos de necessidade da demanda capitalista. Quanto ao público, a mídia, vive um perfil de fato com essa necessidade do “imediatismo” em tudo, inclusive nos mitos que muitas vezes representam o modismo e muito pouco os ideais, a forma de ver e sentir a vida.
Comunista come criancinhas???
Não, porque acreditamos nelas como uma esperança incansável para o futuro do País, da Nação, principalmente a nossa que precisa de um rumo onde ela própria seja “re”acreditada.
Ficha técnica Atriz e idealizadora: Hilda Torres Direção: Malú Bazán Dramaturgia: Hilda Torres e Malú Bazán Pesquisa histórica: Hilda Torres, Márcio Santos e Malú Bazán Pesquisa cênica:Hilda Torres e Malú Bazán Concepção de cenário e figurino:Malú Bázan Execução de cenário e figurino:Felipe Lopes e Maria José Lopes Luz:Eron Villar Operação de Luz:Eron Villar e Gabriel Félix Direção musical:Lucas Notaro Arte visual:Ñasaindy Lua Produção:Hilda Torres, Márcio Santos e Malú Bazán Produção executiva:Renato Barros Produção geral: Márcio Santos Realização: Cria do Palco Fotografias: Rick de Eça
SERVIÇO Soledad – A Terra É Fogo Sob Nossos Pés – Apresentações comemorativas Onde: Teatro Hermilo Borba Filho – Cais Apolo, s/n , Bairro do Recife Quando: Dias 1º e 2 de setembro às 20h Ingressos: R$ 30 e R$ 15, à venda na bilheteria do teatro 1h antes do espetáculo Informações: (81) 3355.3321 Duração: 1h10 Classificação: 14 anos
A Deus, Todomundo: Uma imoralidade do nosso tempo. Foto: Hans von Manteuffel
Pós teatro, enquanto esparramada no sofá comendo um sanduíche, assisto ao Fantástico. Uma matéria explica quase didaticamente quais são e como agem os grupos extremistas que deturpam a religião islâmica e fazem milhares de vítimas. Imagens mostram execuções em série; uma das informações que me chocam é a de que o Estado Islâmico possui um aparato de 200 mil homens. Logo adiante, a reportagem fala do Boko Haram e lembra que eles sequestraram em abril do ano passado 276 meninas numa escola.
Faço mentalmente uma breve retrospectiva das notícias dos últimos dias. Lembro do traficante brasileiro executado na Indonésia. Do ataque ao Charlie Hebdo. Da imagem destruidora do terrorista atirando no policial. Das imagens de como ficou o jornal depois do atentado. A mobilização na França. A intervenção do Théâtre du Soleil, a boneca sendo atacada por corvos, mas resistindo (Fernando Yamamoto, obrigada por compartilhar esse momento e nos permitir estar lá, através de você).
Volto a pensar no espetáculo que vi – pela segunda vez – enquanto coloco roupas na máquina de lavar. A Deus, Todomundo: Uma imoralidade do nosso tempo, trabalho de conclusão da turma 2012 do Curso de Interpretação para Teatro do Sesc Piedade. Texto, direção, cenário, figurino e maquiagem são assinados pelo professor João Denys.
A montagem é uma versão de Everyman, peça de moralidades, escrita em fins do século XV, não se sabe ao certo a autoria. O objetivo é didático e está a serviço da religião. A moralidade se constitui no meio para alcançar a salvação.
O enredo é simples. Todomundo recebe a inesperada visita da Morte; ela quer levá-lo para prestar contas a Deus. Mas a vida que Todomundo teve até então não demonstra nenhuma relação próxima com o divino. Apavorado, Todomundo pede que a Morte deixe que ele leve alguém, para ajudá-lo nessa tarefa de repassar os feitos com Deus. Pedido aceito, Todomundo vai, em vão, tentar a ajuda das Amizades, dos Parentes, da Riqueza. Até que encontra a Caridade – e essa não tem forças nem pra se levantar – a Sabedoria, a penitência, a remissão e, enfim, o sagrado.
Diante de um mundo de conflitos intensos com a moralidade como o nosso, no século XXI, me pergunto os motivos de uma turma de concluintes ter tido tesão em voltar a Everyman. Remontá-lo. Nenhum texto teórico – do programa ou não – conseguiu me responder.
Ok, pensar no modelo da moralidade, nas consequências dele até hoje, no cristianismo, nas culpas carregadas na cruz do corpo, na exploração disso nos dias atuais. Precisa de muito não. Liga a televisão e vê por três minutinhos os programas evangélicos. Assiste a uma procissão católica, com milhares de pessoas se arrastando de joelhos para receber a graça, a remissão, a salvação.
Ao invés de tudo isso, o enredo de Everyman é reproduzido em cena tal e qual. E toma uma dimensão muito maior do que todas as discussões que poderia suscitar. Ao mesmo tempo, a encenação também não consegue nos levar para outros lugares. Estamos presos ao modelo pronto. Ao que era na Idade Medieval – e pelo jeito é até hoje.
João Denys, falando sobre os alunos e o processo, no programa, a certa altura explica e questiona: “Como resposta ao que eles e elas queriam dizer com o teatro, apontavam os caminhos do expressionismo e eu perscrutava o erotismo na superfície de seus corpos e de suas ações adolescentes. Impressionava-me com a relação que todos mantinham com a religião e mais: a mistura indiscriminada de devoção religiosa e profana. O desejo de ofertar seus corpos nus no altar do teatro e o desejo de ocultarem-se nos seus relicários individuais e narcísicos. (…) Devassos ou místicos? Ambos impuros e exagerados”.
Esses questionamentos todos do mestre na sala de aula se refletiam realmente nos alunos, jovens atores, com pouquíssima ou quase nenhuma experiência? De que forma essa inquietação de Denys – barroca – fazia sentido para eles? Havia pertinência – para eles – em serem devassos ou místicos?
A encenação é apoiada em grande parte no cenário, móbiles que são deslocados pelos próprios atores em cena, pequenos palcos elevados, onde a vida desregrada principalmente pelo sexo assume lugar elevado, a Riqueza, assim como a Caridade, por exemplo, estão num nível superior ao personagem Todomundo.
Atores se esforçaram para cumprir proposta da encenação
Se há algo para se admirar nessa montagem, trata-se do empenho dos atores na execução de uma tarefa. É difícil encontrar eco no que está sendo dito e, mesmo assim, estão todos lá, os corpos desnudos e, mais do que isso, expostos, entregues à paixão pelo teatro. O esforço e a superação são nítidos principalmente em Bruna Bastos e Moisés Ferreira Júnior, que interpretam juntos o personagem título da peça. Há uma potência para ser desbravada em Luciana Lemos, que faz personagens como a Morte e a Riqueza. Ela consegue passear melhor pela ironia, fazer sentir a palavra, arrancar uma risada. Mas todos – o grupo inclui ainda Gabriel Albuquerque, Patrick Nogueira, Sheila Mendonça, Marco Antonio Lins, merecem os parabéns. Pela dedicação, pela coragem. Ouvi de um diretor meses atrás algo do tipo: “uma peça é só uma peça. Vamos adiante, fazer a próxima”. Já foi a primeira – só a primeira, espero, do restante da vida de vocês.
03:15. A máquina de lavar já parou faz tempo. Porque nem tudo é tão sagrado, nem tudo é tão profano. Vou lá estender a roupa no varal.
Ficha técnica: Texto, direção, cenário, figurino e maquiagem: João Denys Elenco: Bruna Bastos, Gabriel Albuquerque, Luciana Lemos, Marco Antonio Lins, Moisés Ferreira Jr., Patrick Nogueira, Sheila Mendonça Assistente de direção: Durval Cristovão Direção geral de cenografia: Manuel Carlos Adereços: Manuel Carlos e João Denys Iluminação: Eron Villar Sonoplastia ao vivo: Adriana Milet Direção de produção: Ana Júlia da Silva Assistência de produção: Almir Martins, Daniela Travassos, Gabriela Fernandes, Diogo Barbosa e Ivana Motta
Não gostava muito do título da peça: Mariano, irmão meu. Sei que relações conflituosas e/ou de proteção de uma das partes mobilizam sentimentos nobres. E neste mundo de contatos escorregadios e contratos descartáveis um pouco de segurança parece um oásis. Não sei se pelo que o título entrega ou pelo que ele esconde. Mas ontem o espetáculo estreou, no Teatro Marco Camarotti, no Sesc Santo Amaro, dentro do Festival Palco Giratório e o título se diluiu, ganhou outro sentido. A montagem é do grupo Engenho de Teatro, que já encenou quatro peças antes, todas com alguma ligação com uma poética da imagem e do verbo autoral.
No caso, Alexsandro Souto Maior assina o texto e também está no palco, no papel de Damião, o irmão mais velho. O irmão do título da encenação é interpretado do Tatto Medinni, um garoto com problemas cognitivos. A terceira figura dessa trama é a atriz Ana Cláudia Wanguestel, que faz a sóbria tia Augusta, e mais dois personagens de ligação (atendente de um serviço de seleção de cargo de trabalho e enfermeira de um posto médico).
Encenação é assinada por Eron Villar e direção de arte por Java Araújo
Os dois irmãos foram abandonados pela mãe quando Mariano nasceu. O mais novo é quem mais sofre com essa ausência e até mesmo pelo desconhecimento do rosto da mãe. Para minorar a dor do caçula, o mais velho adaptou um trecho do Apocalipse para a vida deles, (que ela fugiu de um dragão com sete cabeças e dez chifres) para justificar a lacuna materna.
Afeto e dependência. Essas duas coisas se misturam na vida da dupla. A sobrevivência é fruto da caridade alheia. O mais novo depende do mais velho, e não tem consciência disso. O mais velho é dependente do mais novo e tem consciência disso. Ambos têm a vida paralisada. Mariano espera todos os dias no cais pela volta da mãe. Que não vem.
A direção de Eron Villar aproveita bem os traçados espaciais e as mudanças de localização. As portas do cenário se transformam em outros objetos, manipuladas pelos próprios atores. Eron também imprime um andamento, um tempo que abre frestas para tocar os sentimentos do espectador.
Ana Cláudia Wanguestel interpreta Tia Augusta
A iluminação (também de Eron Villar) é de grande encanto plástico. Não há alegria na peça. O que existe é o sofrimento de dois seres, ligados pela genética e pelo amor. Cru é o tratamento, da temática aos diálogos. Mas não são rudes.
Eles habitam um lugar e um tempo não especificados. Seus trajes e algumas falas dizem de sua pobreza, da carência em todos os sentidos.
No início o autor pensou em escrever sobre a relação de Van Gogh e seu irmão Theo. Talvez eles existam em partículas do texto. O grupo fala que se inspira na estética e na linguagem do escritor Guimarães Rosa. Boas pegadas.
Damião (Alexsandro Souto Maior) cuida do irmão menor
Mariano, irmão meu conta com música ao vivo, de uma trilha que foi composta especialmente para o espetáculo. Isso garante um enriquecimento do todo.
A peça precisa de alguns ajustes, detalhes, reforço. Mas o diretor vai continuar a mexer na sua cria. A mão do diretor parece firme, mas não dura.
As interpretações vão crescer. Mas vale destacar o desempenho de Tatto Medinni como o louquinho, meio ingênuo, totalmente perdido e com um grande sentimento em desassossego. É um papel difícil, e qualquer um corre o risco de cair no clichê já divulgado pela televisão. Medinni leva a dor do seu personagem para o corpo, com um tique ao andar, um tique na cabeça. A voz, o gesto, a respiração, se harmonizam com a proposta para o personagem.
Apesar de conhecer tão bem o papel que escreveu, Alexsandro Souto Maior pode dar mais ao seu Damião. Algo que mexa com as tripas. E que essa agonia que sente, associada à culpa da invenção da história do dragão estejam vibrando na pele.
A tia de Ana Cláudia é pesada, solene cheia de vazios. Falta-lhe nuances.
É um espetáculo que deve crescer com a temporada. Mariano, irmão meu entra em cartaz no Teatro Marco Camarotti, às quartas e quintas, de 5 a 27 de junho.