A paisagem é um grande teatro. E, nesse ambiente, o que vale é a experiência coletiva. Em Paysages partagés – 7 pièces entre champs et forêts (Paisagens compartilhadas – sete peças entre campos e florestas), a curadora e produtora Caroline Barneaud (diretora de projetos artísticos e internacionais do Théâtre Vidy-Lausanne) e o diretor Stefan Kaegi (integrante fundador da Rimini Protokoll), propõem uma viagem ambiciosa.
Uma dezena de artistas participam com sete formas artísticas que vibram e refletem sobre a vida no planeta e inevitavelmente tocam nas questões sobre alterações climáticas. Esse tour artístico aglutina peças de Chiara Bersani e Marco D’Agostin, El Conde de Torrefiel, Sofia Dias e Vítor Roriz, Begüm Erciyas e Daniel Kötter, Ari Benjamin Meyers, Émilie Rousset e do próprio Stefan Kaegi.
A palavra peça expande-se em outras transversalidades – da filosofia à fisioterapia, geopolítica, antropologia, política dos corpos, teatro documental.
O clima em Avignon está extremamente quente durante esse julho do festival. Esse calor intenso é uma das reações da desastrosa ação humana no Antropoceno. Os recursos da natureza exigem de nós outra consciência crítica e, lógico, outra postura nessa interdependência.
Nesse passeio multissensorial, os procedimentos são variados para estimular reflexões sobre a atuação humana na Terra e as consequências catastróficas que estamos colhendo: esculturas musicais, audioguia coreográfico, piquenique, peças filosóficas, criações sonoras, realidade virtual, fragmento de teatro documentário, instalação audiovisual.
São sete horas de caminhada ao ar livre, com algumas paradas para conferir os espetáculos, quando a própria paisagem aparece como protagonista. As peças acontecem basicamente em francês e inglês, com tradução sonora simultânea para ambas as línguas.
No Festival d’Avignon, o programa ocorre na floresta Pujaut, situada na cidade homônima nos arredores de Avignon. Entre maio e junho, o projeto foi desenvolvido em Chalet-à-Gobet, em Lausanne, onde fica o Jorat, um grande espaço florestal na Suíça.
Depois do Festival d’Avignon, Paysages partagés segue por Berlim, Milão, Eslovênia, Espanha, Áustria e Portugal, com estruturas e apoio de muitas instituições europeias.
Em alguns momentos dessa experiência, os grupos estão juntos, noutras são separados por cores das pulseiras e das pequenas bandeiras sinalizadoras, verdes, azuis, amarelas, rosas. As divisões formam movimentos coreográficos na imensidão do campo. Por vezes, parecem turistas que seguem o guia para desbravar algum lugar ou até uma colônia de férias.
Cobertores e banquinhos foram emprestados em algumas situações. Não há cenas de violência ou linguagem imprópria nos trabalhos e algumas crianças estavam presentes acompanhadas por algum adulto.
O ponto de encontro para partir para floresta é o Parking Relais L’île Piot. Como estou hospedada próximo à Avignon Université, Campus Hannah Arendt, eu teria algumas opções para chegar ao centro. O ônibus iria demorar 40 minutos, então fiz a pé o primeiro trecho.
Com o sol derretendo os miolos, cheguei à Rua de La Republique e resolvi me informar com um guarda estrangeiro que movimentava a cancela para os carros. Ele disse no seu francês ruim que eu deveria pegar o ônibus por trás da estação.
Com a moleira cansada do calor, resolvi pegar um táxi, para não perder o horário. Ele, muito solícito, falou que chamaria o taxi. Que gentil, pensei. Resumo: ele chamou alguém que não tinha a bandeira do táxi e que me cobrou 25 euros por uma corrida de cerca de 2 quilômetros. Reclamei com o motorista. Mas, voilà, paguei com todos os 20 euros que tinha na carteira e apostei que tudo daria certo na volta. E deu.
Do Parking Relais L’île Piot, nós, espectadores com os bilhetes do espetáculo, partimos em ônibus para a floresta.
Por volta das 16h, nos deitamos sob as árvores, com cobertores emprestados e fones de ouvidos para aguardar as instruções. A imensidão do campo e o canto feérico das cigarras provocam os deslocamentos para outras dimensões; dentro da cabeça, rupturas momentâneas do stress do cotidiano.
Nesse embalo, iniciamos o percurso com a primeira obra, a peça sonora assinada por Stefan Kaegi. Olhando as copas das árvores, as nuvens, o horizonte, ou de olhos fechados, ouvimos a gravação de um grupo formado por uma criança, um psicanalista, um agente florestal.
A natureza é um ponto do debate, mas também assuntos da psicanálise como o inconsciente, medos ou projeção. A atuação do agente florestal entra na pauta e a expertise do profissional. As cigarras me chamam para outro lugar e aquela conversa vai se distanciando da minha escuta, apesar de estarem nos meus ouvidos. Minha mente vagueia.
Seguimos… Uma pedra segura um livrinho que está pousado sobre um banco portátil. Somos convidados a folhear o impresso que contém o trabalho da artista turco-belga Begüm Erciyas e do realizador alemão Daniel Kötter. É uma breve ação individual do público com a obra, fotografias e textos curtos que exploram a política espacial do território do Cáucaso, numa zona de conflito entre a Arménia e Azerbaijão.
Após algum tempo, somos convidados a deixar o livrinho e a pedra sobre o banquinho, andar alguns metros para encarar outra experiência, utilizando capacetes virtuais. Com esses óculos, temos a sensação de sair do chão, subir e fazer o passeio de olhar o território do alto e depois traçar o zoom de aproximação. Essa subida panorâmica da realidade virtual projetada por Begüm Erciyas e Daniel Kötter desperta muitas sensações, entre elas a de que o mundo é imenso e nós….
Numa etapa seguinte, a dupla de artistas portugueses Sofia Dias e Vítor Roriz chama para a dinâmica dos corpos e o exercício de imaginação. Rodas são formadas a partir das instruções do audioguia poético e coreográfico da dupla, com direito a interações entre as pessoas, saudações aos pássaros e imitações de ações de bichos da floresta ou dos que existem dentro de nós. O corpo se move no espaço amplo para revelar coisas, a reivindicar as marcas do tempo e dos gestos construídos na trajetória humana.
De repente, do meio da mata, dos arbustos, surgem músicos que executam interlúdios de Ari Benjamin Meyers. Eles tocam deitados no chão ou confundindo-se com a paisagem, numa atitude que salienta um dos atos da pesquisa performativa de Meyers, de destacar o caráter efêmero da música na relação entre intérprete e público.
Andamos mais um pouco, nos encostamos e sentamos perto das árvores. Um telão está armado. Um rapaz numa cadeira de rodas vai se ajeitando para perto da tela. Ele é Guillaume Papachristou.
Clément e Guillaume Papachristou são gêmeos. Guillaume tem deficiência motora (paralisia cerebral) desde o nascimento. Os irmãos protagonizam um piquenique improvisado na floresta.
O quadro dirigido pelos italianos Chiara Bersani e Marco d’Agostin ganha texturas e um tempo impregnado pelo desafio na realização do gesto. Guillaume conta com a ajuda do irmão para fazer algumas atividades, como servir chá e biscoitos. Há uma profunda confiança entre os dois, que exploram o espaço da ficção, o teatro da alteridade e o conceito de corpo político de que fala Chiara Bersani. No final da tarde, sem pressa, os artistas brindam à vida, que exige muitos mais sentidos de respeito à especificidade de todas as formas.
É feita uma pausa para o piquenique de todos, ou de quem reservou com a produção do evento o alimento ou levou algum lanchinho. Depois desse breve intervalo, três atores discutem a política agrícola europeia, o não financiamento para a transição para o orgânico, numa cena em meio aos vinhais.
Uma pesquisadora em etologia, ciência do comportamento animal, conta sobre a linguagem inerente de alguns deles na comunicação e na importância da biodiversidade. A direção é de Émilie Rousset, que utiliza arquivos e pesquisa documental para levantar peças, instalações e filmes e fazer sobreposição entre o real e o ficcional.
Depois de todas essas paradas, a natureza se manifesta numa tela preta, numa pastagem menos verde, com projeções de frases firmes e voz distorcida. Ao mesmo tempo em que faz um diagnóstico das características humanas, assume uma postura extremamente crítica, num monólogo virulento sobre a separação entra natureza e cultura. É carga pesada no Antropoceno que colapsou, está colapsando a biodiversidade. Criada pela suíça Tanya Beyeler e pelo espanhol Pablo Gisbert, do El Conde de Torrefiel, o discurso mira e acerta no alvo nos questionamentos urgentes desses tempos.
Para que o derradeiro ato não seja o sermão corretivo da natureza, os músicos de Ari Benjamin Meyers voltam a tocar, dessa vez enfileirados, de pé, na despedida da luz natural daquele dia. Para que essa experiência sensorial intensa prossiga ressoando no tempo vindouro, marcada pela cartografia do sensível visível e invisível, que desloca percepções insustentáveis.
Paysages partagés 7 pièces entre champs et forêts (Paisagens compartilhadas, sete peças entre campos e florestas)
Conceito e curadoria: Caroline Barneaud e Stefan Kaegi
Peças de Chiara Bersani e Marco D’Agostin, El Conde de Torrefiel, Sofia Dias e Vítor Roriz, Begüm Erciyas e Daniel Kötter, Stefan Kaegi, Ari Benjamin Meyers, Émilie Rousset
ComCorentin Combe, Thomas Gonzalez, Emmanuelle Lafon, Clément e Guillaume Papachristou, os músicos Maxime Atger alternando com Anton Chauvet, Amandine Ayme (saxofones), Julien Berteau (trombone), Téoxane Duval (flauta), Leïla Ensanyar (trompete) , Ulysse Manaud (tuba), e as vozes de Henri Carques, Febe Fougère, Charles Passebois, Sylvie Prieur, Oksana Zhurauel-Ohorodnyx
Apoio dramatúrgico ao projeto: Emilie Rousset e Elise Simonet
Direção musical: Daniel Malavergne
Figurinos: Machteld Vis
Adereços: Mathieu Dorsaz
Coordenação de paisagem cênica: Chloé Ferro, Monica Ferrari e Lara Fischer (Rimini Protokoll)
Assistente artística: Giulia Rumasuglia
Produção: Rimini Apparat (Alemanha) e Théâtre Vidy-Lausanne (Suíça)
Produção local: Festival d’Avignon
Co-produção: Bunker e Festival Mladi Levi (Eslovénia), Culturgest e Rota Clandestina – Câmara Municipal de Setúbal (Portugal), Tangente St. Pölten – Festival für Gegenwartskultur (Áustria), Temporada Alta (Espanha), Zona K e Piccolo Teatro di Milano Teatro d’Europa (Itália), Berliner Festspiele (Alemanha), Festival d’Avignon
Com o apoio da cidade de Pujaut
Com o apoio de Centro Camões Cultura portuguesa em Paris para a 77ª edição do Festival d’Avignon
Cofinanciado pela União Europeia
Em parceria com o INVR para os óculos de realidade virtual