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MITsp lança plataforma com programação inédita e de acervo

Réquiem, direção de Romeo Castellucci, abre programação. Foto: Pascal Victor/ArtComPress

 

Pensamento em Processo com elenco de Isto é um negro? está disponível na plataforma. Foto: Nereu Jr

O ano era 2014. Na plateia cheia do Auditório Ibirapuera, no Parque Ibirapuera, em São Paulo, muita gente conhecida da cultura. Havia um burburinho, pairava um clima que era uma mistura de ansiedade e entusiasmo. Há muito tempo, talvez desde os festivais de Ruth Escobar, que o Brasil não tinha um festival internacional na dimensão que se projetava a MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, sob a direção de Guilherme Marques e Antonio Araújo.

Naquele ano, além da abertura com Romeo Castellucci e o seu Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, vimos espetáculos de nomes como Mariano Pensotti, Guillermo Calderón, Rodrigo Garcia, Angélica Lidell, Marcelo Evelin. Só para citar alguns. Quem não tinha ingresso garantido, como era o nosso caso, já que estávamos contratadas para fazer críticas, enfrentava filas gigantescas, três horas de espera para conseguir o tíquete para ver os espetáculos.

Acompanhamos ainda, talvez o grande diferencial da MITsp desde aquele ano inicial, uma programação crítica e reflexiva com uma potência que era… incrível. Sei o peso do adjetivo, mas escolho usar com consciência, não encontro outro nome olhando para trás. Debates a partir dos espetáculos com pessoas de outras áreas que não o teatro, conversas com todos os encenadores, publicação de críticas diárias, um catálogo, com textos de vários acadêmicos.

Lembro que, depois daqueles dias, do tanto de troca que aconteceu naquele curto período, voltamos ao Recife com a sensação de que tinha rolado uma pós-graduação inteira. A cabeça fervilhava. Dali surgiu, por exemplo, a DocumentaCena – Plataforma de Crítica.

Nunca mais deixamos de acompanhar a MITsp como críticas e, durante alguns anos, como equipe de produção, já que eu assumi a coordenação de conteúdo editorial da mostra durante três edições: 2017, 2018 e 2019. Claro que sempre fizemos a propaganda do quão importante seria ter mais pernambucanos acompanhando a programação da MITsp. E voltávamos com as malas pesadas, carregadas de catálogo para quem pedia.

A distância, os custos financeiros, a disponibilidade de tempo para se ausentar da cidade por um período mais longo, sempre foram impeditivos para que tivéssemos mais pernambucanos vivendo essa experiência conosco.

Com a pandemia, o fechamento dos teatros, o suporte da internet, as coisas mudaram. A partir desta sexta-feira (12), começa a programação da MIT+ (www.mitmais.com), um dos braços do festival, que é uma plataforma virtual de conteúdo de arquivo e de outros inéditos. O acesso é gratuito, sendo necessário apenas um cadastro. Para as exibições de espetáculos, no entanto, há horários pré-definidos, assim como um festival tradicional. O acervo de encenações não fica disponível por todo tempo.

“Democratizar o acesso a todo esse arquivo era uma ideia de 2016. A gente também queria conhecer o público da MIT, uma informação muito importante, para saber onde estávamos chegando, para ter um canal mais direto”, explica Natalia Machiaveli, idealizadora e diretora da plataforma. “Queremos disponibilizar todo o acervo da parte reflexiva e pedagógica, porque os espetáculos temos sempre uma questão de direitos autorais. Essa disponibilização vai ser ao longo do tempo, porque estamos reeditando, fazendo legendas, dando a cara da MIT+, o que leva um tempo e tem um custo”, complementa.

A abertura dessa programação inicial é com Réquiem, versão de Romeo Castellucci para a missa fúnebre de Mozart, com orquestração do maestro Raphael Pichon. Depois do espetáculo, será exibida uma entrevista feita por Julia Guimaraes com o encenador italiano sobre sua trajetória.

A artista em foco da edição é a sul-africana Ntando Cele que, em 2018, apresentou Black Off. Imagina a imagem de uma negra, pintada de branco, peruca loura, como apresentadora de um talk show, querendo fazer piada com a plateia sobre racismo. Foi um dos principais destaques daquela edição, que será reexibido agora, ao lado do inédito Go Go Othello, onde a artista faz um paralelo com Otelo e intercala cenas de stand-up, videoarte, dança e música, perpassando a história de artistas negros, questionando os estereótipos racistas no mundo da arte. Ntando Cele vai conduzir ainda um workshop, uma residência e vai participar de uma conversa com a filósofa Denise Ferreira da Silva e a bailarina Jaqueline Elesbão.

Go Go Othello. Foto: Manaka Empowerment

A sul-africana Ntando Cele apresenta o inédito Go Go Othello. Foto: Manaka Empowerment

Janaina Leite, artista em foco na MITbr (braço com a programação nacional na mostra) no ano passado, abre o processo de Camming – 101 Noite. Janaina faz um paralelo entre o livro As Mil e umas Noites e as camgirls profissionais, que precisam garantir a atenção dos clientes. Depois das exibições, no dia 14 de março, vai acontecer também uma conversa sobre o processo de criação.

Da programação do acervo disponibilizada na plataforma e aberta a qualquer momento, há mesas e debates que fizeram parte dos eixos Olhares Críticos e Ações Pedagógicas, como uma conversa com o elenco de Isto é um negro? e todas as edições da Revista Cartografias, catálogo da mostra, além de conteúdos inéditos.

PROGRAMAÇÃO:

ESPETÁCULOS

Réquiem
Em sua versão de Réquiem, o encenador italiano Romeo Castellucci faz da missa fúnebre de Mozart um espetáculo de celebração à vida. O espetáculo é conduzido pela orquestração do maestro Raphaël Pichon, que faz uma costura entre a composição original e outras peças sacras, menos conhecidas, do compositor austríaco.
Quando: 12, 13, 14 e 15 de março, às 19h
Duração: 1h40min

Ntando Cele apresentou Black Off na MITsp 2018. Foto: Guto Muniz

Black Off
A sul-africana Ntando Cele aborda e enfrenta estereótipos racistas. Na primeira parte do espetáculo, numa espécie de comédia stand-up, a performer assume o seu alter ego, Bianca White, uma comediante, viajante do mundo e filantropa. Depois, numa mistura de performance musical e vídeo, Ntando passa a destrinchar estereótipos de mulheres negras e tenta descobrir como o público a vê.
Quando: 13, 14, 15, 16 e 17 de março, às 21h
Duração: 1h40min

Go Go Othello
Para discutir o espaço do negro no meio artístico, Ntando Cele faz um paralelo com Otelo, o mouro de Veneza, um dos raros protagonistas negros da história do teatro. Ela intercala cenas de comédia stand-up, performance, videoarte, dança e música num ambiente que remete a uma casa noturna. A sul-africana perpassa a história de artistas negros e se transforma em personagens diversos para questionar estereótipos racistas no mundo da arte.
Quando: 16, 17, 18, 18, 20 e 21 de março, às 20h
Duração: 1h20min

Descolonizando o conhecimento
Na palestra-performance, Grada Kilomba faz um apanhado de seu próprio trabalho e utiliza vários formatos, de textos teóricos e narrativos a vídeo e performance, para questionar as configurações de poder e de conhecimento.
Quando: 17 e 18 de março, às 18h
Duração: 1h10min

Entrelinhas
Num diálogo entre o passado e o presente, a coreógrafa e intérprete Jaqueline Elesbão discute a violência contra a mulher e evidencia como a voz feminina, em especial a da mulher negra, é historicamente silenciada dentro de uma sociedade machista e de mentalidade escravocrata.
Quando: 19, 20, 21, 22, 23 e 24 de março, às 20h
Duração: 30min

O encontro. Foto: Stavros Petropoulos

O encontro, de Simon McBurney. Foto: Stavros Petropoulos

O Encontro
Por meio de tecnologias de som, o inglês Simon McBurney leva o espectador a uma imersão pela Amazônia brasileira. Inspirado no livro Amazon Beaming, de Petru Popescu, ele conta a história de um fotógrafo que, no fim dos anos 1960, se viu perdido em meio à terra indígena do Vale do Javari.
Quando: 25, 26, 27, 28, 29, 30 e 31 de março, às 20h
Duração: 2h17min

sal., espetáculo de Selina Thompson, visto na MITsp 2018, está na programação. Foto: Guto Muniz

sal.
Em 2016, Selina Thompson embarcou em um navio cargueiro para refazer uma das rotas do comércio transatlântico de escravos: do Reino Unido à Gana e, de lá, à Jamaica. As memórias, questionamentos e sofrimentos desse percurso levaram a performer ao universo de um passado imaginário.
Quando: 26 de março, às 19h
Duração: 1h

Em Legítima Defesa
A performance, encenada em meio à plateia, logo após alguns espetáculos da MITsp 2016, traz discursos históricos entrelaçados a depoimentos pessoais, músicas e poesias. Em suas falas, os artistas do Coletivo Legítima Defesa remetem à diáspora negra e a seus desdobramentos históricos, numa ação que busca resistir à narrativa hegemônica e dar voz à própria história.
Quando: 28, 29 e 30, às 19h
Duração: 20min

ABERTURAS DE PROCESSO

Camming – 101 Noites
Janaina Leite faz um paralelo entre o livro As Mil e uma Noites – no qual Sherazade precisa entreter o rei – e as camgirls profissionais, que têm que garantir a atenção dos clientes, num trabalho que vai além do sexual, passando também pela narrativa imaginária, dramatúrgica e até terapêutica.
Quando: 12 e 13 de março, às 23h
Duração: 1h
Bate-papo: 14 de março, às 16h

Ué, Eu Ecoa Ocê’ U É Eu?
Celso Sim, Cibele Forjaz e Manoela Rabinovitch abrem o processo da performance audiovisual, que dialoga com a pandemia e o caos político. Os artistas apresentam dois ritos: um de antropologia funerária, em homenagem aos indígenas mortos em decorrência da Covid-19, e outro de canibalismo guerreiro, uma reação de caça ao inimigo. A performance tem duas versões, uma censurada (ela precisou receber cortes para ser apresentada em Brasília, em dezembro de 2020) e outra sem censura. Ambas serão transmitidas na sequência.
Quando: 22, 23 e 24, às 22h
Duração: 45min (as duas versões)

Um Jardim para Educar as Bestas
O ator Eduardo Okamoto, a diretora Isa Kopelman e o músico Marcelo Onofri realizam abertura de processo de duo para piano e atuação. A encenação alterna dança, música e a história de Seu Inhês, um sertanejo de olhos apertados que, como forma de evitar uma predição de morte da esposa, decide construir um jardim de pedras em meio ao sertão.
Quando: 26, 27 e 28 de março, às 18h30
Duração: 20min

WORKSHOPS

Petformances
A performer Tania Alice e a veterinária Manuela Mellão propõem aos participantes realizar práticas artísticas diversas (performances, escrita, fotografia, pintura etc.), sempre permeadas pelo afeto, ao lado de seus pets.
Quando: 18 de março, das 15h às 17g, e 19 de março, das 15h às 18h
Número de vagas: 20 (os participantes serão escolhidos por ordem de inscrição)

Curando a Branquitude
A sul-africana Ntando Cele propõe um trabalho em conjunto na tentativa de sanar traumas de uma sociedade marcada pela hegemonia da branquitude. A artista busca sabedorias ancestrais e pré-colonialistas na tentativa de reimaginar um futuro e criar um espaço não violento, em que se possa enfrentar a crise global de maneira coletiva.
O workshop será ministrado em inglês, com tradução para o português.
Quando: 20 de março, das 10h às 13h

RESIDÊNCIA

Inter Pretas
A residência virtual é voltada a mulheres artistas e ativistas, em especial pessoas não brancas, que queiram trabalhar com materiais biográficos. Nos encontros, a sul-africana Ntando Cele foca o autocuidado na prática artística e algumas estratégias de empoderamento, além de propor um espaço não violento para “sonhos coletivos”. Ela se alterna entre atividades em grupo e conversas individuais com as participantes.
Quando: de 25 a 28 de março, das 10h às 13h. Os horários dos atendimentos individuais serão combinados com as participantes
Número de vagas: 12

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O amor tem feito coisas…

OE, peça inspirada na obra do escritor japonês Kenzaburo Oe, com Eduardo Okamoto. Foto: Fernando Stankus

Mesmo o amor imperfeito opera milagres no universo. Mas muitas vibrações duelam para processar esse fenômeno. Da raiva de ver sua vida atrelada ao filho eternamente dependente, passando pelo medo do futuro. Até a superação e abertura de visão para os sentidos de uma vida comprometida com o aprendizado do outro. OE é poema cênico com o ator Eduardo Okamoto, inspirado na obra do escritor Kenzaburō Ōe, – Nobel de Literatura de 1994 – que trata desses tsunamis internos do autor japonês.

A peça foi apresentada sábado e domingo, no Teatro Apolo, dentro da programação do 23º Janeiro de Grandes Espetáculos. Com direção perfeccionista de Márcio Aurélio e atuação minimalista de Okamoto, a montagem explora os processos vertiginosos de um pai que reinventa o mundo e a si próprio quando nasce seu primeiro filho com uma deficiência intelectual congênita.

Do susto passando pelo desejo de morte e culpa à construção de um afeto supremo, o intérprete explora os estados desse pai, e desse filho, com extremo rigor. Para cuidar da criança – Hikare Oe – que até os seis anos de idade não falava uma palavra e que se tonou pianista e compositor famoso no Japão, o escritor diminuiu o ritmo de trabalho.

A peça tem direção de Márcio Aurélio. Foto: Fernando Stankus / Divulgação

A peça tem direção de Márcio Aurélio. Foto: Fernando Stankus / Divulgação

OE usa poucos recursos em cena, tem um desenho coreográfico milimetricamente executado e poucas oscilações vocais. A montagem embarca na poesia, para expor o sentimento do mundo em quase 30 cenas curtas. Imagens que se abrem para a miséria e o esplendor do ser humano, num rasgo de solidão e profunda incompletude. Okamoto modula a dor do existir, num breve painel de afetos, de alegrias e tristezas.

O dramaturgo Cássio Pires criou pequenas narrativas, tradução de imagens recriadas a partir de 400 páginas do livro Jovens de um novo tempo, despertai!. Nesse livro, Kenzaburō Ōe busca definições para coisas aparentemente simples como um pé e supostamente complexas como o sonho, num procedimento que sintetiza mitologia, ensaio literário, ficção e registros autobiográficos. É um fluxo da vida, da determinação de um pai em catalogar o real para seu filho e deixar-se subverter por esse rebento.

O corpo do ator Okamoto está impregnado do butoh que foi buscar em Yokohama, no Japão, onde treinou no Kazuo Ohno Dance Studio, conduzido atualmente pelo filho de Kazuo Ohno, Yoshito Ohno. E da ancestralidade japonesa que até a montagem do espetáculo tinha ignorado.

Ficha Técnica
Encenação, iluminação, figurino e cenografia: Márcio Aurélio
Dramaturgia: Cássio Pires, inspirado na obra de Kenzaburo Oe
Assistência de direção: Lígia Pereira
Assistência de iluminação: Silviane Ticher
Orientação corporal: Ciça Ohno
Assistente de figurino e cenário: Maurício Schneider
Orientação pedagógica do projeto: Suzi Frankl Sperber
Coordenação técnica: Silvio Fávaro
Assistência de produção: Mariella Siqueira
Direção de produção: Daniele Sampaio e SIM! Cultura
Atuação: Eduardo Okamoto

Confira conversa com o ator Eduardo Okamoto realizada após a apresentação do espetáculo no Recife

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Recusa é um ato político

A identidade em Recusa é vista de forma plural, polissêmica, com vozes em fricção. Foto: Fernanda Pessoa

A identidade em Recusa é vista de forma plural, polissêmica, com vozes em fricção. Foto: Fernanda Pessoa

Recusa é mais que um espetáculo. É um projeto portentoso de investigação de identidades, da Cia Teatro Balagan, com direção de Maria Thaís, a partir de pesquisa sobre ameríndios. O resultado amplo escapa aos sentidos numa primeira mirada. Pode provocar estranhamento pela profusão de referências de discursos que foram canibalizados durante o processo de construção da cena. Discursos jornalístico, antropológico, geopolítico e mítico. Mas aqui a lógica é outra.

Foram mais de três anos e meio de pesquisa, inclusive com incursão à Terra Indígena Sete de Setembro, dos integrantes da Aldeia Gãpgir, do povo Paiter Suruí, em Rondônia. Isso criou um caleidoscópio de pontos de vista que exige do espectador uma entrega maior para acompanhar a narrativa.

A direção musical de Marlui Miranda sustenta, embala e projeta as múltiplas vozes em tensão da “multidão” que ocupa o palco: dos dois índios Piripkura; dois heróis ameríndios, Pud e Pudleré, e todos os outros que eles inventam (humanos, animais, espíritos e coisas), metamorfoseando, em padre, onça fazendeiro, cantora e mais.

E também são convocados traços de personagens de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Guimarães Rosa. E haja fôlego dos atuadores Antonio Salvador e Eduardo Okamoto.

Para dar conta dessa pluralidade, a Cia Balagan trabalha o teatro a partir de outros paradigmas (que eles foram caçando e devorando), numa reinvenção da linguagem cênica. A identidade é vista de forma plural. A recusa das figuras inspiradoras da peça – de se submeter a um processo civilizatório – é um ato político.

Atuações impecáveis de Antonio Salvador e Eduardo Okamoto

Atuações impecáveis de Antonio Salvador e Eduardo Okamoto

No Dossiê do espetáculo, publicado na revista Sala Preta, em junho do ano passado, os atores explicam que Recusa está ancorada, fundamentalmente, em duas bases conceituais: “perspectivismo ameríndio (canibalizado – e, ao nosso modo, reinventado como cena – do pensamento do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro) e duplicidade (autonomia, e interação de diferenças devoradas nos trabalhos de Beatriz Perrone-Moisés e Manuela Carneiro da Cunha)”.

E detalham: “O primeiro conceito provocou-nos com a impossibilidade do sujeito apreender a realidade em sua totalidade, restando-lhe apenas uma parcela dela ou uma perspectiva sobre ela. O outro lembra-nos que, diversamente do pensamento euro-ocidental, fundado na busca permanente por uma unidade (lógica, coerente em si mesma e, não raro, excludente porque desqualifica tudo o que a ela não se assemelha), o pensamento ameríndio alicerça-se na busca por duplicidade, multiplicidade”.

O espetáculo é narrado e cantado em português e línguas ameríndias ou criadas pelos atores. A fisicalidade dos intérpretes foi forjada na preparação corporal de Ana Chiesa Yokoyama, que inclui os ensinamentos do Butô, o que dá uma leveza aos corpos e como eles atentam “uma nova perspectiva de tempo: não linear, não organizada em termos cronológicos, mas cíclica”.

Recusa desestrutura qualquer ideia preconcebida sobre os ameríndios, rejeita os estereótipos e revela com exuberância traços da riqueza dessas culturas ocultadas por discursos / posições dominantes.

O que dizer sobre a atuação dos dois atores? Aqueles seres que quase voam em cena, que nos encantam com suas vozes, que mergulham num jogo cênico de forma plena e provocam um tsunami na cabeça do espectador (pelo menos, foi assim comigo). A cenografia e figurinos de Márcio Medina, iluminação de Davi de Brito comungam na expressão dessa corajosa experiência artística e de vida.

* Esse texto faz parte da ação do DocumentaCena – Plataforma de Crítica formada por Daniele Avila Small (Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais), Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?), Luciana Eastwood Romagnolli (Horizonte da Cena), Maria Eugênia de Menezes (Teatrojornal – Leituras de Cena), Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?), Soaraya Belusi (Horizonte da Cena) e Valmir Santos (Teatrojornal – Leituras de Cena), que acompanha a IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo

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Nós, os curiosos

Por Daniele Avila Small – Revista Questão de Crítica
(www.questaodecritica.com.br)

Recusa. Fotos: Fernanda Pessoa

Espetáculo Recusa, da da Cia Teatro Balagan. Fotos: Fernanda Pessoa

Inspirados pela notícia da condição de sobrevivência precária e ameaça de extinção dos dois últimos membros dos piripkuras, os artistas criadores da Cia Teatro Balagan atentaram para a recusa deles para com a cultura do homem branco, da civilização como a conhecemos. A partir daí, criaram uma dramaturgia que também foi motivada pela recusa de fórmulas e noções já estabelecidas para a feitura de uma peça de teatro. O fruto é um trabalho de fôlego, uma cornucópia recheada de mundos – para a crítica, um prato cheio, mas que precisa ser devorado com o tempo.

O trabalho do grupo nos permite ver a recusa como resistência mas também como um gesto fundador. A recusa é um grande “não” que se abre para um “sim” maior ainda. A negação pode ser o começo de um reconhecimento, da afirmação de uma identidade, da inauguração de algo impensado. Como foi discutido na mesa-redonda realizada pela Mostra no dia da apresentação do espetáculo, a identidade pode ser um lugar dinâmico de invenção e de resistência ao mesmo tempo. Estamos sempre tentando preservar tradições e criar novas formas. O próprio fazer teatral é um trabalho de resistência (às adversidades econômicas e políticas, à dureza das cidades, à inércia da vida urbana, etc.) que demanda reinvenção (das estéticas, dos hábitos, dos modos de produção, etc.). A recusa não é um fim, mas um começo, não é simples negação, mas um gesto fecundo. Recusa é uma palavra-corte que fere mas abre.

Em relato publicado no programa da peça, os criadores nos contam que, na sua experiência de conversa com os índios Paiter Suruí, os velhos do clã escolheram algumas palavras do seu vocabulário como possíveis traduções de termos do teatro. O significado da expressão escolhida por eles para “público” seria “os curiosos”. A meu ver, isso faz sentido na relação que a peça estabelece com o público. A dramaturgia de Luís Alberto de Abreu engendra uma trama que joga com a curiosidade do espectador, com o seu interesse, numa negociação de sentidos incessante, que a encenação de Maria Thaís mantém num estado de suspensão, oferecendo iscas e pistas ardilosas, que nos fazem seguir mais adiante

Os atores investem no jogo, que forma uma espécie de campo de força

Os atores investem no jogo, que forma uma espécie de campo de força


O trabalho dos atores Antonio Salvador e Eduardo Okamoto parece ser construído a partir de estados, mais que de situações ou discursos. Nos seus corpos, vemos um preparo vigoroso, que resulta em uma presença e uma disponibilidade para o jogo que forma uma espécie de campo de força, que colabora para sustentar a atenção e a curiosidade do espectador. A fisicalidade das atuações – em especial o desempenho vocal que produz uma sonoridade muito concreta – tem o potencial de despertar o espectador pelo corpo, como numa vibração entre instrumentos de corda. O trabalho de direção musical de Marlui Miranda mereceria um texto à parte. Mas vale apontar que não se trata da exibição de um virtuosismo. A demanda por um desempenho corporal expressivo é afinada com a pesquisa estética e temática do projeto.

A cultura indígena – ameríndia – apresentada pelo espetáculo está sempre sob o signo do duplo. As narrativas se alternam, mas há sempre uma relação entre duas figuras que se complementam. Além dos personagens que conseguimos distinguir, também percebemos desdobramentos da ideia de duplo, como na polarização entre o sol e a lua, o corpo e a alma, o índio e o fazendeiro, o homem e a mulher. O teatro só existe quando há dois: a cena e a plateia, o artista e o público. Sem uma das partes, deixa de ser teatro. Se as duas partes estiverem em oposição, não acontece. Se um quer se impor ao outro, algo morre. Como pud e pudlaré, são inseparáveis. E nós, os curiosos, precisamos devolver o canto, jogar o jogo, e manter a atenção mútua.

Do ponto de vista da crítica, para um trabalho como esse, seria preciso devolver um esforço à altura, que este breve exercício não permite. Mas fica aqui um apontamento, uma anotação de primeiras impressões, só pra sinalizar que – mesmo que falte espaço, mesmo que muitas vezes também falte fôlego – estamos interessados, estamos prestando atenção.

* Esse texto faz parte da ação do DocumentaCena – Plataforma de Crítica formada por Daniele Avila Small (Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais), Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda?), Luciana Eastwood Romagnolli (Horizonte da Cena), Maria Eugênia de Menezes (Teatrojornal – Leituras de Cena), Pollyanna Diniz (Satisfeita, Yolanda?), Soaraya Belusi (Horizonte da Cena) e Valmir Santos (Teatrojornal – Leituras de Cena), que acompanha a IX Mostra Latino-americana de Teatro de Grupo

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Mia Couto no teatro

Chuva pasmada. Fotos: Pollyanna Diniz

“Acontece que eu estou escritor. Ninguém é escritor, como se fosse uma condição de essência, uma coisa biológica, que nos marca. A escrita pra mim é uma maneira de eu olhar o mundo e, portanto, posso perdê-la e não me perder nisso”. Esse é um trechinho da entrevista que Mia Couto deu ao Roda Viva na última segunda-feira. A obra desse escritor moçambicano nos concede mesmo o prazer de encontrar muitas visões de mundo. E cada uma tão particular, mas todas geralmente plenas em poesia. Os textos nos absorvem aos pouquinhos, despretensiosamente. Quase como se não quisessem nada, entende? E de repente você se depara com uma frase daquelas que te tiram do prumo.

Essa sensibilidade está no espetáculo Chuva pasmada, adaptação do texto homônimo de Mia Couto, feita em parceria por Eduardo Okamoto e o Grupo Matula Teatro, de São Paulo. A peça foi encenada ontem no Marco Camarotti, dentro do projeto Travessias poéticas, que reúne três espetáculos criados a partir da obra do moçambicano. Além de Chuva pasmada, tem Gaiola de Moscas, do Grupo Peleja (PE) e Mar me quer, da A Outra Companhia de Teatro (BA).

Chuva pasmada é um espetáculo muito simples. Um encontro entre dois bons atores – Eduardo e Alice Possani – e um texto sensível. E isso basta. Eduardo e Alice se conheceram na época de faculdade e foi ideia de Eduardo criar o grupo; mas há alguns anos ele decidiu seguir carreira solo. O espetáculo é então um reencontro.

A história é narrada em terceira pessoa e os dois se revezam dando vida a vários personagens. Até numa mesma cena eles podem trocar de personagens. O pai, a mãe, a tia, o avô, o menino. E os atos se desenrolam a partir da história que cada um desses personagens nos traz. É uma história de memórias, encontros, sonhos e paralisias. De humanidade. Em algum momento, aquele texto te provoca, te surpreende, te traz pra perto, mesmo que tudo teoricamente se passe lá na África, na aldeia onde o rio secou e a fábrica insiste em fazer estragos.

Eduardo Okamoto e Alice Possani

Eduardo e Alice conduzem essas narrativas sem exageros. É emoção na medida, limpeza de movimentos e texto, texto e texto. Sem que nada fique pesado; até porque a poesia que fica como ‘chuva pasmada’ ali na sala de espetáculos não deixa que isso aconteça. O texto foi adaptado por Cássio Pires. A direção e iluminação são de Marcelo Lazzaratto, que não precisou de nada mirabolante não. A iluminação nos convida àquele ambiente de terra laranja, clara. Que compõe com a cenografia e figurinos de Warner Reis. A música está lá no momento certo; é de Michael Galasso.

Programação – Hoje é a vez do grupo Peleja apresentar Gaiola de Moscas; e amanhã o projeto segue com Mar me quer. As sessões são sempre às 16h30 e às 19h30 e a entrada é gratuita, já que o grupo foi contemplado pela Funarte no Procultura de Estímulo ao Circo, Dança e Teatro 2010. Aqui em Pernambuco, o projeto ainda vai pra Arcoverde.

Sinopses:

Gaiola de Moscas:
Zuzé é um curioso comerciante, vendedor de cuspes que, para salvar os negócios, se torna vendedor de moscas. Sua mulher, cansada das ideias do marido, se encanta por um forasteiro vendedor de “pintadas” de batons.

Mar me quer:
Cinco atores contam a saga de Zeca, um pescador cheio de histórias que tenta fugir de seu passado, num diálogo eterno com seu Avô, morto. Apaixonado por Luarmina, sua vizinha e outrora amante de seu pai, ele necessita recorrer as suas memórias para conquistar seu amor e continuar vivo, uma vez que ele é castigado por uma promessa que não cumpriu.

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