O espetáculo Puro Lixo, O Espetáculo Mais Vibrante da Cidade encerra sua primeira temporada no Teatro Hermilo Borba Filho, no Recife Antigo, neste domingo, com duas sessões: uma às 18h e outra às 20h. A peça estreou em 13 de agosto, com casa lotada em todas as apresentações, no teatro configurado para ter capacidade média de 90 espectadores. Cerca de mil pessoas foram conferir à montagem. Mas a peça se expande para além do palco. Campanhas eficientes nas redes sociais dão conta de iluminar teoricamente alguns aspectos da encenação, com o reforço dos ensaios que constam no programa e outras escrituras. Ficamos gratos com tanta generosidade intelectual. E garanto, isso não é uma ironia.
Algumas vivecas que foram à estreia comentaram que naquela noite não se sentiram identificadas com a cena, com o luxo e riqueza, com a calculada frieza da montagem. Mas o teatro alimenta esse caráter efêmero, mas dinâmico: cada sessão é única. E cada leitura depende tanto do dia de quem a recebe, das suas subjetividades e circunstâncias. Portanto… cada obra é singular na construção pelo espectador.
Montagem encerra o ciclo de investigação cultural, Transgressão em 3 Atos, voltada aos grupos teatrais pernambucanos Teatro Popular do Nordeste (TPN), Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e Vivencial. O trabalho foi desenvolvido em coautoria com Alexandre Figueirôa, Claudio Bezerra e Stella Maris Saldanha e publicada no livro Transgressão em 3 Atos – nos abismos do Vivencial, pela Prefeitura do Recife/Fundação de Cultura Cidade do Recife, em 2011.
Também foram erguidos os espeáculos Os fuzis da Sra. Carrar, de Bertolt Brecht, e O auto do salão do automóvel, de Osman Lins, em celebração ao Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e ao Teatro Popular do Nordeste (TPN), respectivamente.
A herança do Grupo de Teatro Vivencial, coletivo pernambucano que causou furor em Olinda/Recife entre 1974 a 1982 aportou em Puro Lixo, O Espetáculo Mais Vibrante da Cidade. O texto é assinado por Luís Augusto Reis, inspirado no artigo Vivencial Diversiones Apresenta: Frangos Falando para o Mundo, de João Silvério Trevisan, publicado no Lampião da Esquina (Rio de Janeiro, ano 2, n. 18, p. 15, nov. 1979). E tem direção de Antonio Edson Cadengue.
O figurino, assinado por Manoel Carlos investe na criatividade dentro do universo manufaturado. Materiais novos, em combinação de cores, tecidos, apelo visual e praticidade na troca de artigo de roupa dos atores. As fotografias de Ana Araujo- que essas sim ficam para interpretações futuras -, são imagens de relevância estética. Na composição, na tonalidade, na apreensão de minúcias dramaticamente teatrais, na parcela de humanidade da valorização do teatro.
No elenco homens lindos: Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira. Que se fazem de macho, que se fazem de fêmea, que se fazem de trans. Eles se inventam e transitam entre papeis. De salto alto, eles deslizam pelo palco melhor do que muitas mulheres. Desfilam entre o glamour, o protesto, o deboche, a crítica de tudo isso.
Sabemos que não é fácil andar naquelas plataformas (quase diria pernas de pau). Tem gente que disse que comeria todos eles, numa referência à derradeira canção do espetáculo. Uma música no encalço do corrosivo, que brinca com ação de tributo aos transgressores do passado/presente deitando-os também como objeto de consumo. Do espelho do camarim até o público vira simulacro de si mesmo. E os atores denunciam cultura na cadeia de produção em série; nem sempre são bem compreendidos.
O ator Gil Paz festeja Elza Soares com o trecho da canção de Chico Buarque Meu Guri . Está estreitamento vinculado à outra cena de exaltação da negritude plasmada contra o preconceito na passagem “seja herói, seja marginal. E a do Meu Sobrado no seu Mocambo, que expõe feridas atávicas do passado escravocrata.
Soube que a montagem esquentou. O elenco se apropriou dos espaços reais do teatro e fictícios da peça. Stella Maris Saldanha representa as mulheres do Vivencial. Representa as deusas daquele teatro debochado feito de sucata e brilhos tirados da alma.
Com uma elegância que a caracteriza Stella dá pinta do seu jeito, dá bronca, canta, erotiza o humor. É uma interpretação apolínea. Mesmo que estivesse blasfemando ou dizendo todos os palavrões acho que manteria essa postura altiva/contida. Isso não é bom nem ruim. Eu aplaudo a elegância de Stella. Acho bonito. Nos Fuzis, no Automóvel, em Puro lixo.
“Nem anjos nem demônios, os atores de Puro Lixo, o Espetáculo Mais Vibrante da Cidade, têm no corpo e na alma os riscos próprios a esse ofício que exige conhecimento de si e do outro”, escreveu o encenador Cadengue nas redes sociais.
Que Puro lixo volte logo para uma próxima empreitada.
Essa entrevista com Stella Maris Saldanha foi feita nas horas tensas que antecederam à estreia. Por troca de mensagens. Outros textos foram postados. Faltava esse.
Sobre Puro Lixo, o Espetáculo Mais Vibrante da Cidade nós publicamos Uma festa para o Vivencial, no dia 11 de agosto de 2016.
Desbunde, transgressão e poesia do Vivencial, no dia 13 de agosto de 2016.
“A liberdade era vivida na imediatez daqueles tempos”, uma entrevista com o encenador Antonio Edson Cadengue, publicada em 15 de agosto de 2016.
E As nervuras do luxo, crítica ao espetáculo publicada no dia 28 de agosto de 2016, mas que parece que ninguém gostou.
E viva o teatro!
Entrevista: Stella Maris Saldanha
“Não adianta fazer ou assistir teatro sem considerarmos as características do tempo em que vivemos. O teatro é o reflexo das realidades de uma época e não um fenômeno isolado cujas dificuldades sejam exclusivamente suas, mas de todo um processo criativo em crise.” Gostaria que você comentasse.
Sim, o teatro é filho do seu tempo, pois dialoga com o que lhe é contemporâneo. Mesmo fazendo uma viagem temporal, quer dramatúrgica, quer de linguagem, o tempo presente, como dizia o poeta, é sua matéria. Vejamos o caso do projeto Transgressão em 3 Atos, que rememora o Teatro Popular do Nordeste (TPN), o Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e o Vivencial. Trazê-los à cena atual, entre outras coisas, se justifica porque na sua contemporaneidade, ou seja, no momento em que atuavam, falavam do seu próprio tempo estando em desacordo com ele. Aliás, esta é a chave da contemporaneidade: o desacordo, porque ele propõe o alargamento contínuo de fronteiras.
Quando levamos ao palco as três montagens do projeto – Os fuzis da senhora Carrar (2010), Auto do salão do automóvel (2012) e agora Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade – não estamos apenas apresentando ao público de hoje estética e repertório do passado, mas fazendo ver que aquela história toda tem seus tentáculos no presente que nos incomoda. É disso que se trata. Ou seja; neste caso o que foi de ontem ainda é chama ardente.
Qual a dor e a delícia de cada um dos personagens da trilogia?
Comecemos pela personagem da primeira montagem do projeto, a Senhora Carrar. Bem, eu a havia interpretado aos 18 anos de idade. Uma aposta corajosa de Marcus Siqueira nas minhas possibilidades como atriz. Era, à época, a segunda peça da qual eu participava e a primeira em teatro adulto. Sou imensamente grata a Marcus Siqueira por ter me proposto esse desafio, quase um desatino. Então, voltar à mesma personagem 32 anos depois foi outro presente, e outro desafio. Eu tenho um caso de amor com a Senhora Carrar desde que a interpretei pela primeira vez em 1978. A expressão é esta mesma: um caso de amor.
Em Auto do Salão do automóvel, a delícia foi, primeiro, a estatura literária do texto de Osman Lins e, como falávamos antes, a sua contemporaneidade. É um texto quase profético. Em 1969 Osman Lins já enxergava o esmagamento do humano nos grandes centros urbanos do país, o avanço predatório do capitalismo sobre os espaços públicos. Agora, verdade seja dita, não foi fácil. Dar-me àquela experiência teatral com narrativa literária exigiu certa dose de desconstrução de tudo o que estava posto até ali. Foi um processo criativo em nada indolor.
E agora em Puro Lixo, outra experiência radical. Veja só: aos 18 anos – no momento do desbunde geral, da nudez, da politização do corpo – eu interpretava a Senhora Carrar, uma viúva de pescador lutando para manter os filhos vivos em plena guerra civil espanhola. Agora, aos 56, eu mergulho no universo ruidoso, transbordante e tropicalista do Vivencial, inclusive, com nudez. Parece um desafio invertido, né? Mais uma vez dou-me à vertigem.
Espetáculo Puro Lixo foi escrito a partir da matéria “Vivencial Diversiones apresenta frangos falando para o mundo”, publicada em 1979 por João Silvério Trevisan. Qual a estrutura e abordagem?
O texto de Luís Reis, no meu entendimento, conduz, à perfeição, à proposta primeira do projeto Transgressão em 3 Atos: uma interlocução entre a memória e o contemporâneo. Sim, porque não se trata de reproduzir uma experiência do passado, mas alinhavá-la às inquietações do presente. Usando como referência o que João Silvério Trevisan testemunhou sobre o Vivencial àquela época, Luís fragmenta e intercala lembranças, apelos sociais, irreverência, brincadeiras, ardências, atrevimento. Tudo à moda do Vivencial, mas à luz de reflexão e fruição de hoje.
Outro detalhe sobre o texto é que ele nos foi apresentado como uma obra aberta. Sujeito, portanto, às interferências decorrentes da rotina de ensaios e do processo criativo do grupo. O espetáculo apresentado ao público revela esse texto-processo, amálgama da carne viva do Vivencial de outrora e do testemunho que agora bradamos, com afeto, sobre tudo aquilo existido e existindo. Mas, para além da dramaturgia proposta por Luís Reis, gostaria de dizer ainda que tanto a montagem de Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade, como as duas montagens antecedentes do projeto Transgressão em 3 Atos, não representam um testemunho saudosista. Aos desavisados de plantão informo que tanto o Vivencial, como o Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e o Teatro Popular do Nordeste (TPN) foram por nós focados como experiências pertencentes à esfera pública, às quais, à bem da criticidade e da memória, devemos observância. Fico, pois, com as palavras de Eric Hobsbawm em suas reflexões sobre o século XX: “os acontecimentos públicos são parte da textura de nossas vidas”.
Serviço
Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade
Quando: Domingo, dia 4 de setemro, às 18h e 20h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho
Quanto: R$ 20,00 (inteira) e R$ 10,00
Indicação: Para maiores de 16 anos
Ficha Técnica
Elenco: Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira, Stella Maris Saldanha
Texto: Luís Augusto Reis
Consultoria: João Silvério Trevisan
Encenação: Antonio Cadengue