Na primeira edição do Jornal Aldeia Yapoatan, que circulou durante a mostra realizada pelo Sesc Piedade no mês de setembro, fizemos uma pequena matéria sobre teatro de grupo. Uma das companhias entrevistadas foi a Fiandeiros de Teatro, que está comemorando dez anos de atuação. Como a conversa com o diretor André Filho rendeu muito mais do que o espaço no papel permitia, aproveitamos o início do projeto Dramaturgia pernambucana, empreendido pelo grupo, para publicar a entrevista. O diretor fala não só sobre a realidade específica da companhia, mas toca em questões pertinentes ao teatro de grupo em todo o país, como a dificuldade em manter uma sede e a falta de políticas públicas.
Sobre o projeto Dramaturgia pernambucana, nas sextas-feiras deste mês serão realizadas leituras dramáticas e depois debates com os autores. Começando sempre às 19h30, no Espaço Fiandeiros, que fica na Rua da Matriz, 46, primeiro andar, na Boa Vista. Hoje (11) o texto será Jeremias e as caraminholas, de Alexsandro Souto Maior. O coletivo Sinergia de Teatro, sob direção de Emanuella de Jesus, fará a leitura. Semana que vem (18) é a vez de Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues. O debatedor será Rodrigo Dourado e a direção de André Filho. Já no dia 25 o texto é Lunik, de Luciana Lyra, que ganha direção de Rodrigo Cunha.
O projeto terá ainda uma oficina de dramaturgia com Newton Moreno entre os dias 19 e 22 de novembro e encenações de contos de Nelson Rodrigues no mês de janeiro.
ENTREVISTA // André Filho, diretor da Cia Fiandeiros
Como os artistas da Fiandeiros se reuniram?
Nós nos reunimos em 2003. Nosso começo não foi muito diferente de outros coletivos: artistas que se juntam querendo se expressar coletivamente através de sua arte. Tínhamos origens distintas – éramos músicos, palhaços, professores, arte-educadores, alguns já com experiência em trabalho de grupo, outros não. Eu havia sido convidado pelo SESC para dirigir uma leitura dramatizada da peça A tempestade, de William Shakespeare. Convidei alguns atores para participar e o resultado é que, depois da leitura, o grupo quis continuar se encontrando para ler outros textos e conversar sobre teatro. Então decidimos seguir em frente com o processo de estudo e, daí, surgiu a Fiandeiros.
Quando vocês perceberam que eram um grupo?
É sempre muito delicada essa questão de se definir como um grupo de teatro. Há dez anos que a gente vive se questionando sobre esse modelo e é impossível encontrar um conceito estável que sirva a todos os coletivos. Na verdade, acho que é justamente esse perguntar-se continuamente “o que nós somos?”, a busca por essa resposta, que nos faz ser enquanto grupo. Mas é possível pontuar algumas questões específicas que diferenciam o trabalho de um grupo daquele de uma produção convencional, como a manutenção de um núcleo de criação permanente e o processo continuado, que não se limita ao tempo de vida de um espetáculo. As ações do grupo não são apenas no sentido de uma criação artística, mas também na formação de uma identidade de coletivo.
Os objetivos iniciais da companhia foram mudando ao longo desses dez anos?
Na verdade, os objetivos mudam de acordo com cada projeto, mas existe algo que não pode mudar: a identidade do trabalho. Um grupo tem a sua identidade, que é quase como a sua digital, a sua marca, o seu formato de trabalho. Essa identidade não surge assim do nada, não dizemos “vamos criar uma identidade de grupo”. Ela surge com o tempo, como fruto de todo o processo de criação. Não é palpável, mas é sentida por todos. E guarda em si o compromisso com o todo. Sabe aquela música, “se falo em mim e não em ti é que, neste momento, já me despedi”? Quando em um processo de grupo alguém pensa assim é porque não faz mais parte dessa identidade e está na hora de partir em busca de outras lições.
Qual a principal dificuldade em manter um grupo?
Existem dificuldades de vários vieses. Mas creio que as mais importantes são conciliar os sonhos com a dura realidade do dia a dia, com a falta de um projeto cultural público eficaz para o teatro, com a desmobilização política de nós artistas de grupo. Essa última, por sinal, é de suma importância. Ou nos conscientizamos de que precisamos nos organizar politicamente, ou não daremos o passo qualitativo nunca. As artes visuais já fizeram isso, a dança já fez isso, mas o teatro não consegue dar esse passo. O tempo médio de vida útil de um grupo produzindo é de, no máximo, dois a três anos. Quem consegue ultrapassar isso já pode se considerar um vitorioso. Existem alguns coletivos na cidade que conseguiram isso. A Fiandeiros é um deles, mas ninguém imagina o preço que pagamos por isso. Olho para trás e vejo a quantidade de artistas e grupos de teatro que ficaram pelo caminho, que poderiam ter dado uma contribuição tão bacana para a cena local e não o fizeram porque não foram estimulados. Falta vontade política para isso. Ainda estamos engatinhando no processo de consolidação do teatro de grupo no Recife. Quando ficaremos de pé? Não sei.
Qual a importância e o desafio de manter uma sede?
Uma sede é extremamente importante para um grupo, não apenas por ser uma base, um apoio para suas atividades, mas também por contribuir para a sua discussão estética, na medida em que estabelece parâmetros novos para o pensamento de uma dramaturgia específica, um olhar sobre o entorno e a relação dos artistas com este. Isso possibilita um olhar diferenciado sobre um processo. Mas manter uma sede não é fácil. Nesse ponto, acho que todas as políticas públicas até agora são falhas. Recife ainda está engatinhando em políticas de fomento a grupos de pesquisa continuada. São Paulo e Rio de Janeiro já saíram na frente com ações públicas que possibilitam aos grupos fazerem residências continuadas em teatros, prédios e casarios públicos. Aqui sequer conseguimos abrir um diálogo a respeito. Há prédios públicos completamente abandonados e há grupos que ensaiam em garagens, nas praças, nas ruas. Acho profundamente lamentável e triste. A Fiandeiros consegue manter a sua sede com recursos próprios; vez por outra aprovamos um projeto que nos dá uma folga de alguns meses, mas é muito pouco. Cada ano que se inicia, não sabemos como vai ser, de onde tiraremos o dinheiro para manter vivo o nosso espaço. Desenvolvemos algumas ações como os cursos regulares de teatro que ministramos, para adultos, adolescentes e crianças, o que tem nos garantido uma sobrevida. Entramos também no circuito de produções nacionais que viajam através dos prêmios de circulação nacional. Em 2012 se apresentaram no nosso espaço, A Companhia Braziliense de Teatro e o Grupo Trama de Teatro (Minas Gerais). Além disso, fomos um dos pólos de apresentações do Festival Recife do Teatro Nacional, além de produções locais que também se apresentaram no nosso espaço.
O que une vocês artisticamente hoje?
O que nos une é a mesma coisa que nos unia há dez anos: a vontade de continuar caminhando em busca do invisível, de algo que talvez nunca encontremos. Somos artistas e isso por si só já seria suficiente para nos manter unidos, mas nem sempre é assim. Temos nossas diferenças, nossos pontos de vista divergentes, que nos fazem morrer e renascer renovados a cada dia. Sempre foi assim – o que nos une nem sempre é o concreto, o projeto pronto e acabado, mas o vazio das imperfeições, o medo das tentativas que nos aproxima e nos fortalece.
Quais as preocupações estéticas de vocês?
A Fiandeiros tem um traço, uma identidade musical bastante forte em seus trabalhos, não apenas instrumentalmente falando, mas também na melodia textual. Isso sempre foi alvo de nossas pesquisas. Em nosso último trabalho, Noturnos, nos experimentamos em outro viés, o da dura realidade das ruas. É um trabalho onde a musicalidade incomoda, são acordes dissonantes do que até então nós tínhamos feito. Falar sobre violência, medo, agressividade, abandono, asco, invisibilidade social, exigiu de nós um esforço enorme e um desprendimento de nossas vaidades pessoais muito além do que já havíamos ido em outros trabalhos. Sinto que agora é hora de voltar, de proceder o caminho de volta à nossa harmonia original, o que não significa que é menos densa. Penso em Picasso que, ao tentar retornar às origens do cubismo, acabou por recriar a realidade contida nele. Lógico que sem qualquer pretensão de nos compararmos, mas é um processo semelhante de busca interna em nossa estética. O legal é que não sabemos onde vamos acabar, as tentativas existem e são múltiplas, tudo vai depender das nossas escolhas. Mas o mais importante é não ficar parado, porque até mesmo quando o artista imita a si mesmo ele se recria.
Quais os próximos projetos?
Temos vários projetos para o futuro. Entre eles, montar um texto para crianças, intitulado Vento forte para água e sabão, de autoria de um ator pernambucano e pessoa muito querida nossa, Giordano Castro, do Magiluth. Estamos aguardando para ver se sai no máximo até o início do próximo ano. Mas tem pelo menos mais uns três ou quatro projetos viáveis para um futuro próximo. Vamos aguardar e ver o que acontece. O processo é este: viver o efêmero e mergulhar no transitório. Só.