Nessa segunda-feira, 30, o compositor, cantor e escritor Chico Buarque foi celebrado com o prêmio de literatura Roger Caillois, em Paris, na França, pelo conjunto de sua obra. Ele foi escolhido na categoria literatura latino-americana. O que poderia ser motivo de orgulho virou mote para comentários hostis, carregados de ódio nas redes sociais nos últimos dias. Um absurdo, por tudo que o artista representa. Como já defendeu o escritor e jornalista Xico Sá: “O Brasil precisa voltar a amar Chico Buarque de Holanda. De todas as maneiras. Com tesão e com afeto”.
A esposa do ex-presidente Lula, que sofreu na última semana um Acidente Vascular Cerebral (AVC) hemorrágico, apontado como o tipo mais grave, também foi vítima da cólera e de demonstrações de desumanidade, selvageria e maldade.
O Brasil mostra sua face monstruosa e as respostas chegam na mesma moeda contra os que atacam. O Brasil está se tornando desumano. De uma perversidade que não tem pudor de alardear o desejo de fazer ou ver sofrer quem pensa diferente.
Nesse contexto adverso, e com os ingredientes da economia e da política da atual conjuntura, O Avesso do Claustro funciona como um antídoto a toda essa baba ácida. O drama musical revigora o nome de Dom Helder Camara (1909-1999), conhecido como bispo vermelho por sua atuação no tempo da ditadura militar brasileira. Baixinho, hábil comunicador e firme defensor dos direitos humanos, ele é inspiração para se tentar recuperar o humanismo, necessário e urgente. Incentivo para a devolução de sonhos e esperanças.
A montagem, da Cia. do Tijolo, junta traços da biografia do clérigo com episódios de três personagens fictícios ancorados no Recife, Rio de Janeiro e São Paula. A peça tem direção partilhada entre Rodrigo Mercadante e Dinho Lima Flor, Dinho também no papel do protagonista.
O Avesso do Claustro fez duas sessões no Recife no Teatro de Santa Isabel, sábado e domingo, (28/01) e domingo (29/01) dentro da programação do 23º Janeiro de Grandes Espetáculos. Apresentações pulsantes, com a plateia participativa em intervenções, diálogos, vaias para os congressistas (não para o ator), fora Temer, risos, choros, muita emoção. Palmas para a memória de Frei Tito, que tem trechos de cartas e poemas expostos, inclusive um relato de torturas padecidas na Operação Bandeirante (Oban), em 1970, e do requinte de perversidade do delegado Fleury que aplicava choque em sua língua na intenção cruel de plagiar o rito da hóstia sagrada.
Foi muito além do que está já previsto no script da cena do lava-pés, sopas e vinho no palco, com o elenco se desdobrando para acolher os que sobem e irradiar bem-querer por todos que estão no teatro.
Essa peça reflete sobre a função da arte a partir dos sentidos; das imagens, dos sons (do batuque de raiz africana e trilha sonora original), do toque, do cheiro da sopa e seu compartilhamento junto com o vinho.
Com lágrimas nos olhos, do palco pude sentir de bem perto a doação proposta da pela Cia. do Tijolo para falar desse mundo perverso e de que até que ponto cada um é responsável pela inflamação desses sentimentos, ao som de Se Deus existe, eu não sei. Ai Rodrigo Mercadante, Dinho Lima Flor, Lilian de Lima, Karen Menatti e Flávio Barollo, que alegria indescritível estar no palco do Santa Isabel para comungar desse amor e também a luta que prossegue.
Dom Helder era um homem subversivo, sim. E a peça enfatiza facetas antidogmáticas e anti-institucionais de forma bem-humorada; passagens em que o religioso dribla as regras do claustro com poesia e danças para a Lua; e em oposição clara à opulência do Vaticano.
O protagonismo de Dom Helder é dividido com outras três figuras localizadas em pontos geográficos distintos: um pesquisador que chega ao Recife para investigar o percurso do bispo, uma cozinheira que trabalha no projeto da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) de levantamento de uma edificação popular no bairro carioca do Leblon; e uma paulistana que mora numa quitinete de 15 m2, percorre estações da cidade e se depara com desvalidos num quadro de degradação do ser humano na maior metrópole do país.
Ao chegar à estação Santa Cecília e esbarrar com a frase “Deus não existe”, ela dá o gancho para o narrador interromper a cena e comentar: “Como Deus não existe? Deus nunca esteve tão presente nos adesivos de carros, em declarações públicas e, até mesmo, nas reuniões na Câmara dos Deputados!”.
Há depoimentos impressionantes, como aquele em que o bispo confessa ter desejado o incêndio do Vaticano e, com ele, a morte do Papa para diminuir a distância entre o poder religioso e os cristãos. A cozinheira carioca também revela que faz boas ações por interesse e rejeita o mal por medo da punição divina.
A peça faz um paralelo da trajetória engajada do bispo em prol dos despossuídos e defesa de perseguidos políticos nos anos de 60/70 e a Teologia da Libertação, os movimentos estudantis cristãos (JUC/JEC) e as Comunidades Eclesiais de Base.
Dom Helder gostava defrases de efeito. E a ele são atribuídas muitas: “o problema do Nordeste não é a seca, são as cercas”; “Se falo dos famintos, todos me chamam de cristão; se falo das causas da fome, me chamam de comunista”. E fica a pergunta: “Quem, mesmo dentre uma legião de anjos, poderá me ouvir?”
Ficha técnica
O avesso do claustro
Dramaturgia: Cia. do Tijolo
Direção: Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante
Direção Musical: William Guedes
Com: Lilian de Lima, Karen Menatti, Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante e Flávio Barollo
Orientação teórica: Frei Betto
Músicos: Maurício Damasceno,William Guedes, Clara Kok Martins, Eva Figueiredo e Leandro Goulart
Figurinista: Silvana Marcondes
Concepção e construção de cenário: Cia. do Tijolo e Silvana Marcondes
Assistentes e aderecistas: Alexandra Deitos e Isa Santos
Rede e bonecos de pano: Silvana Gorab
Bonecões: André Mello e Cleydson Catarina
Cenotécnica: Julio Dojcsar e Majó Sesan
Costureira: Atelier Judite de Lima e Cecília Santos
Desenho de luz: Aline Santini
Operadora de luz: Laiza Menegassi
Assistente de luz: Pati Morim
Operação de som: Emiliano Brescacin
Orientação cênica: Joana Levi e Fabiana Vasconcelos Barbosa
Orientação vocal: Fernanda Maia
Composição de trilha sonora original: Caique Botkay e Jonathan Silva
Produção executiva: Cris Raséc
Assistente de produção: Lucas Vedovoto
Designer gráfico: Fábio Viana
Fotos: Alécio Cezar