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Não permitam que a voz de Juana Borrero se perca

La Virgen Triste, da Compañia Galiano 108. Foto: Jennifer Glass

La Virgen Triste, da Compañia Galiano 108. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

A cubana Juana Borrero (1877-1896) foi uma artista precoce. Aos cinco anos começou a pintar de forma autodidata; dois anos mais tarde, iniciou aulas de pintura e escreveu seu primeiro poema. Considerada um dos nomes mais importantes na pintura e na poesia modernista cubana, Juana teve dois envolvimentos amorosos que marcaram profundamente a sua obra. Tanto Julián del Casal (1863-1893) quanto Carlos Pío Uhrbach (1872-1897), esse último considerado o grande amor de Juana, eram poetas. Juana Borrero morreu dois meses antes de completar 19 anos, vítima de uma tuberculose. A acadêmica cubana Susana Montero (1952-2004), que era especialista em estudos de gênero, escreveu que a obra de Juana “comporta uma novidade e uma rebeldia contra os princípios estabelecidos da educação da mulher, que se mostram coerentes com as outras manifestações de modernidade em sua obra: literária, pictórica, ética, filosófica e política, essa última entendida como uma manifestação precoce de suas ideias emancipatórias” (tradução própria).

O espetáculo La Virgen Triste, monólogo apresentado durante a X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, assinado pela Compañia Galiano 108, criada em Cuba, explica logo no início de sua sinopse que não é um texto biográfico sobre Juana Borrero, mas uma peça inspirada em sua poesia. Apesar disso, deixa claro a importância de saber quem é a personagem. As próximas linhas da sinopse são gastas justamente explicando quem foi Juana: “uma menina prodígio e, por direito, uma das figuras mais fascinantes do modernismo americano”. A contradição da sinopse, infelizmente, não se mostra no palco: realmente, a montagem é baseada na obra de Juana, nas suas cartas, nos seus poemas; mas o resultado prático disso é que, quem não conhecia Juana previamente, entra e sai do teatro sem poder falar muito sobre a artista. Parece uma incoerência; mas, de fato, a obra revela pouco da artista e essa é uma das fragilidades do espetáculo.

No palco, a atriz Vivian Acosta tem a responsabilidade de encenar o monólogo – defende a montagem, de acordo com algumas pesquisas rápidas na internet, há duas décadas. Vivian encarna duas personagens: Juana e uma velha – o texto não deixa muito claro se é a própria mãe da poeta ou uma babá, uma dama de companhia. Mesmo que as duas personagens se diferenciem pela voz e pelo corpo de Vivian, ambas são baseadas numa composição exagerada, que beira o caminho da caricatura. É a dor levada ao extremo, em vozes e gestos de figuras fantasmagóricas, de mortalha e rosto branco. Ainda que o texto seja inspirado pela obra de Juana, o que poderia gerar um lirismo em cena, a encenação não conseguiu transmitir poesia, nem sustentar a atenção do público do Centro Cultural São Paulo.
As personagens caem na monotonia do exagero continuado e as palavras de Juana ficam como que pairando, não alcançam efetivamente a plateia. No mesmo sentido, não há um tratamento dramatúrgico que demonstre quem foi Juana, quais eram as suas dores, o que a levou a morte e, mesmo que essas não fossem questões para a direção, que obra é essa, construída por essa “menina prodígio”. O ponto não é ser autobiográfico, mas conseguir estabelecer razões, pertinências, conexões, pertencimentos.

Espetáculo é inspirado na vida e obra de Juana Borrero

Espetáculo é inspirado na vida e obra de Juana Borrero

Pelas poesias e textos escolhidos, Juana é uma menina que sofria de amor, sofria com a perda dos seus amantes, não uma artista efetivamente; nada se vê da mulher que, como aponta o texto de Susana Montero, trazia em sua obra muita rebeldia. Ao contrário, o espetáculo não empodera a voz de Juana, inclusive seguindo uma tendência que parece ser a mesma da literatura, dar muita importância à influência dos amantes na obra de Juana. É sintomático, por exemplo, que o título do espetáculo seja o mesmo de um poema que Julián del Casal escreveu, dizem os estudiosos, inspirado em Juana.

Se a atuação se mostra exagerada e baseada em cacoetes interpretativos, o cenário e a iluminação vão na mesma direção. Muitas velas espalhadas no palco, um candelabro e uma mala com uma foto de Juana e papeis amarelados, esmaecidos pelo tempo, para simular as cartas de Juana. De tempos em tempos, gelo seco; e a construção de uma cena pouco criativa. Logo depois de citar a lua, em determinado momento, lá vem a luz azul; ou quando fala-se em enterro, mais gelo seco e música de sofrimento. O texto segue a mesma trilha… “ouço vozes”, diz em determinado momento a personagem.

Para quem está na plateia, fica a impressão de que a atriz e o diretor, Rogério Tarifa, se agarraram a uma forma ultrapassada de encenação, que pouco consegue estabelecer conexão com o público. Soa falso, forçado, cansativo. Ainda assim, quando conhecemos um pouco mais de Juana Borrero, logo percebemos os motivos que levaram a companhia a se dedicar tanto tempo a essa empreitada. Há muita potência e muito ainda por dizer a partir da obra dessa cubana tão pouco conhecida no Brasil. Fica a expectativa de que a montagem tenha conseguido despertado a curiosidade do público.

Ficha Técnica
Autora: Elizabeth Mena
Direção e encenação: José A. González
Elenco: Vivian Acosta
Figurino: Raúl Martin
Iluminação: Carlos Repilado
Música: Juan A. Leyva
Diretor Técnico: Pedro Balmaseda

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***A cobertura crítica da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo é uma ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, que articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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“Santa” Tryo Teatro Banda: pela glória da ironia

La Expulsión de Los Jesuitas, do grupo chileno Tryo Teatro Banda. Foto: Jennifer Glass

La Expulsión de Los Jesuitas, do grupo chileno Tryo Teatro Banda. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

As escolhas da companhia chilena Tryo Teatro Banda no processo de montagem de La Expulsión de Los Jesuitas, impulsionadas pela competência da direção e do elenco, garantiram como resultado uma peça que consegue estabelecer uma empatia direta com o público. O espetáculo está na programação da X Mostra Latinoamericana de Teatro de Grupo, realizada em São Paulo até o dia 8 de novembro. Decididos a enveredar pela história da Companhia de Jesus no Chile, um capítulo, ao que se consta, pouco contado na história do país, a Tryo Teatro Banda, companhia criada no ano 2000 em Santiago do Chile, optou pelo caminho da bufonaria e da música. O bufão traz em si a comicidade, a paródia, a crítica, a ironia e o sarcasmo, elementos incorporados perfeitamente aos cinco personagens principais desse enredo: um jesuíta, um espanhol, um criolo, um mapuche e uma mulher.

Acontecia a Guerra de Arauco, em 1593, quando os jesuítas chegaram ao Chile na tentativa de ajudar a minimizar os conflitos entre os colonizadores espanhóis, os criolos e os índios. Os criolos sofriam com a dominação dos espanhóis, mas eram os índios que terminavam escravizados pelos europeus. Os jesuítas aprenderam a língua dos mapuches e realmente conseguiram fazer uma mediação que acarretou mudanças efetivas, como o reconhecimento de uma fronteira entre o território do Chile e dos índios. Cada momento dessa intervenção dos jesuítas é contado a partir da veia cômica, histriônica. O corpo desses atores está impregnado pelos gestos largos, caras e bocas, trejeitos e estratégias da técnica do bufão, além do ritmo rápido, quase eletrizante no qual se desenrolam os fatos.

Atores tocam diversos instrumentos em cena

Atores tocam diversos instrumentos em cena

Para completar, como menestréis, uma referência da Idade Média aos trovadores que cantavam e contavam histórias, os atores tocam instrumentos os mais diversos em cena. Há, por exemplo, lira, arpa, flauta, cavaquinho, mas também uma guitarra e um acordeon. Os instrumentos servem ainda como amostra do quanto a montagem mistura referências e consegue com isso realizar uma cena que foge completamente ao esperado, como a cena da “Santa Clorofila”, um ritual de devoção a uma santa vestida com malha de palhaça, que toca e canta em inglês; ou a cena de uma reunião com o rei da Espanha, com personagens que utilizam chapéus de animais e remetem praticamente ao cenário de estábulo.

A montagem dirigida por Andrés del Bosque, com dramaturgia de Francisco Sánchez e Neda Brikic, e tendo no elenco Daniela Ropert, Alfredo Becerra, Eduardo Irrazábal, José Araya e Francisco Sánchez, vai até 1767, quando depois de conspirações e diante de uma crise financeira que havia quebrado a Espanha, o rei decidiu prender e expulsar todos os jesuítas que estavam no Chile, levando-os exilados para a Espanha. A questão é que os jesuítas eram fundamentais para a estabilidade da paz – numa das cenas, por exemplo, o padre consegue mediar o conflito entre o espanhol, que havia trazido de volta a mulher que estava cativa no território indígena e, com ela, outras duas índias -; e o resultado dessa expulsão é somente sugerido ao final da montagem.

Abordando um momento histórico através da comicidade, A Tryo Teatro Banda aproxima o público de um episódio fundamental para a formação da identidade do povo chileno de maneira muito mais fluida e eficaz. Se a montagem não traz uma crítica direta à atuação dos jesuítas, reafirmando muito mais as benfeitorias, a tentativa dos padres de acabar com a escravidão dos mapuches, de estabelecer seus territórios e incentivar a educação, há espaços e lacunas para que o público se pergunte se as coisas aconteceram mesmo daquela forma e quais os outros pontos de vista dessa história. Até que ponto tudo foi em nome da glória de Deus? Essa parece ser também uma das intenções da montagem, que mesmo baseada em documentos e acontecimentos históricos ocorridos entre os anos de 1593 a 1767, consegue ultrapassar limites temporais, colocando possibilidades e levantando faíscas de questões que servem muito bem aos dias de hoje.

Ficha Técnica
Dramaturgia: Francisco Sánchez e Neda Brikic
Direção:Andrés Del Bosque
Assistente de direção: José Araya
Música: Tryo Teatro Banda
Elenco: Daniela Ropert, Alfredo Becerra, Eduardo Irrazábal, José Araya e Francisco Sánchez
Sonoplastia: Julio Gennari
Iluminação: Tomás Urra
Produção: Carolina González

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***A cobertura crítica da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo é uma ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, que articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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O fetiche da miséria e a maldade do outro*

Condomínio Nova Era. Foto: Jennifer Glass

Condomínio Nova Era. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

Condomínio Nova Era, peça do grupo A Digna Companhia, está na programação da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo com apresentações no espaço do grupo Sobrevento, talvez pequeno demais para o espetáculo criado originalmente para se apresentar em outro lugar. Na peça, nove atores e um músico contam a história de um edifício ocupado por pessoas simples, em condições miseráveis, sofrendo (em linhas gerais) com a falta d’água, a ameaça de despejo e a ausência de perspectivas de vida. O cenário é gradualmente montado e desmontado pelos atores em diferentes parte do espaço cênico. Os espectadores se deslocam entre uma cena e outra, o que dá ao andamento do espetáculo uma certa monotonia. A cada troca, um esfriamento e, com mais gente na plateia do que o espaço comporta, a possibilidade de ver a próxima cena de outro lugar ruim.

A peça se coloca como crítica social, com uma noção literal de teatro político, ou seja, teatro que se entende como político porque trata de um tema político e passa uma mensagem clara de opressores de um lado e oprimidos do outro. Mas o espetáculo é mais midiático do que político na medida em que apresenta as situações como preto no branco, sem espaço para nuances e complexidades, como fazem os noticiários de TV: imagens-fetiche para tentar chocar o espectador e verdades proferidas em tom grave de verdade e denúncia. Penso em imagens-fetiche como aquelas de uma visibilidade espetacular, não dialética, que quer impressionar. A imagem gravada e veiculada numa TV no cenário, em que um jovem delinquente cheio de raiva é entrevistado por um repórter cretino que faz perguntas para estimular o garoto a dizer coisas detestáveis, que estimulam o ódio e o asco do outro, é um exemplo de fetichização. Em vários momentos, o espetáculo assume o mesmo regime de visibilidade das imagens, quando mostra uma tentativa de identificação com o sofrimento, com a miséria, com a pobreza. E também quando fetichiza o esforço do artista.

Outra questão que talvez comprometa a dimensão crítica e política da peça é o fato de que o espetáculo está “pregando para convertidos”. Me parece que o público da peça é aquele que já sabe que a especulação mobiliária é desumana e higienista, que a polícia é violenta e abusiva e trabalha a favor do capital, e que uma parte imensa da população mundial vive em condições de precariedade absoluta. Quando todo mundo concorda, quando tudo já está dado, sem possibilidade de questionamento, não há debate. Sem debate, não há dimensão crítica. Ao espectador, só cabe confirmar o que já sabe e baixar a cabeça para o discurso dos artistas. Isso não é político. A vitimização de um e a demonização do outro não dá espaço para a reflexão. Por mais que essa polaridade faça sentido na vida, me parece que na arte precisamos ir além dos conceitos binários para instaurar um espaço de pensamento.

A ideia mesma de deslocar os espectadores também é uma espécie de fetiche, que parte de uma crença de que o espectador tem que estar literalmente se mexendo, sendo fisicamente tocado, sensoriamente incomodado ou atingido por alguma substância ou objeto que os artistas atiram na sua direção para ser um espectador “ativo”. Como se dar atenção a um espetáculo, criar imagens e desenvolver um pensamento sobre o que vê fosse de uma passividade condenável. No caso dessa peça especificamente, percebo uma pressuposição com relação ao espectador com a qual não compactuo: a de que o espectador precisa ser despertado da sua ignorância. No discurso da peça e no tom geral da montagem, especialmente quando o diretor entra em cena e começa a falar diretamente com o público sobre si mesmo e o seu próprio trabalho, me pareceu nítida a ideia de que os personagens e os artistas estão em um lugar de superioridade. Pelo tom messiânico do diretor, fica a impressão de que ele se sente detendor de verdades que os espectadores precisam ouvir. A encenação da “entrega” revela mais vaidade do que modéstia.

Em seu artigo O espectador emancipado, Jacques Rancière apresenta uma argumentação muito coerente sobre essa noção de teatro como lugar simplificado da assembleia, no qual o espectador é tratado como se estivesse numa condição de menoridade. Como o espaço do texto e o prazo de publicação são curtos, não me detenho na referência, mas recomendo a leitura, que ajuda a esclarecer o que estou querendo dizer sobre essa relação desigual entre artista e espectador.

É muito difícil quando o teatro tenta fazer denúncias no calor da hora. A urgência da pauta da denúncia não dá chance para o distanciamento necessário para a elaboração poética. A violência é expressão da maldade do homem, mais que dos interesses capitalistas e das diferenças de classe. E a maldade é uma das coisas mais complexas que a humanidade tem que enfrentar como condição própria. Se o mal é condição da humanidade como espécie, representá-lo como condição do outro (um outro esterotipado) pode parecer ingênuo e auto-indulgente.

Peça traz noção literal de teatro político

Peça traz noção literal de teatro político

Ficha técnica
Dramaturgia: Victor Nóvoa
Direção: Rogério Tarifa
Elenco: Adilson Azevedo, Eduardo Mossri, Flavio Barollo, Helena Cardoso, Jonathan Silva, Liz Mantovani, Karen Menatti, Rogério Tarifa, Victor Nóvoa e Zimbher
Direção musical: Jonathan Silva e Zimbher
Composição da trilha original: Jonathan Silva, Zimbher e Flavio Barollo (música: Homem Falido)
Cenografia: Ana Rita Bueno e Rogério Tarifa
Instalação audiovisual: Flavio Barollo
Figurinos: Ana Rita Bueno
Criação de luz: Marisa Bentivegna
Workshop de preparação de atores: Ana Cristina Colla
Operação Som e Luz: Igor Sane
Atores nos vídeos: (Quarto Jucilene) Bruno Maldegan e Priscila Ortelã
Design gráfico: Vertente Design
Fotos: Alécio

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*Crítica escrita por Daniele Avila Small – Questão de Crítica/DocumentaCena**
**A DocumentaCena – Plataforma de Crítica articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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Da lama ao caos do encontro

A cidade dos rios invisíveis. Foto: Jennifer Glass

A cidade dos rios invisíveis. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

O trajeto entre as estações Brás e Jardim Romano dura algo em torno de 40 minutos. Antes mesmo de começar o caminho, se você entrou no trem assim que ele abriu as portas, a espera é um pouco maior: até quem parece enfadado depois de um dia de trabalho, desenvolve certa solidariedade por aquele que desce as escadas correndo apressado para não perder o transporte. Ah, até porque os papeis sempre podem se inverter no dia seguinte. Em tudo na vida.
Fechadas as portas, enquanto o trem avança em direção ao extremo leste de São Paulo, temos tempo suficiente para nos perdemos em nós mesmos. Os olhos vagueiam pela janela e dentro do próprio trem, no encontro visual com personagens anônimos. Quanto mais longe do Centro, mais as pessoas se entregam à exaustão, dormem; mais as paisagens e a arquitetura mudam. As verticalizações da “cidade-progresso” dão espaço a outros arranjos habitacionais, geralmente bem mais coloridos e diversos.

Nesse percurso, ouvindo uma gravação no mp3 (sim, o som alto, que se instaura para a coletividade, é proibido no trem) que incluiu o barulho do rio, textos poéticos, reflexões e depoimentos, começa o espetáculo A cidade dos rios invisíveis, do grupo Estopô Balaio (De)Criação, Memória e Narrativa. Foram três sessões dentro da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, todas marcadas pela chuva que caiu na capital nesses últimos dias.

Os criadores do grupo chegaram ao Jardim Romano no ano de 2011, pouco depois que as águas haviam baixado. Durante quatro meses, o rio que passa por trás da comunidade entrou mais uma vez nas casas que ficam na parte mais baixa do bairro. Da mesma forma que, muitas vezes sem pedir licença, tomamos o espaço da natureza, vez ou outra, recebemos um sinal. Talvez não seja nem uma resposta desaforada, mas é assim mesmo que geralmente encaramos. O rio que invadiu e alagou as casas deixou marcas em diversos âmbitos na comunidade.

Montagem da Estopô Balaio começa na estação  Brás e vai até o Jardim Romano, extremo leste de São Paulo

Montagem da Estopô Balaio começa na estação Brás e vai até o Jardim Romano, extremo leste de São Paulo

Enquanto as crianças diziam que tinham visto peixes “pularem” no meio da enchente, jovens e adultos carregavam outras memórias e experiências normalmente bem menos lúdicas. Desde então, tendo a comunidade como parte efetiva do grupo, o Estopô Balaio já fez outros dois trabalhos a partir das vivências no Jardim Romano. O terceiro é justamente A cidade dos rios invisíveis, que usou como uma das referências o livro As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino.

O movimento de travessia em direção ao encontro está no cerne do projeto. Na itinerância do Brás ao Jardim Romano, no caminho pelas ruas e becos até o rio. No encontro entre os atores “profissionais” e atores “moradores”, entre esses e o espectador. No encontro entre a poesia e os relatos da vida cotidiana. Os atores vão conduzindo a itinerância: que, dependendo da chuva, tem até 13 momentos, a maioria deles marcados por personagens do próprio bairro. Na Rua Miguel de Quadros Marinho, por exemplo, ouvimos a entrevista de Dona Jacira, nordestina, que fala sobre a condição da mulher. Na Rua Cochonilha, o público se depara com invenções, para ver a vida de outra forma. No Beco da Rata, mais poesia. Crianças da comunidade acompanham o percurso inteiro empolgados (até que algum pai ou mãe chama) e também participam da encenação.

Se as relações, inclusive na arte, podem ser mais rápidas e fortuitas, não foi o que aconteceu entre o Estopô Balaio e o Jardim Romano. Isso é muito claro para quem acompanha a apresentação e faz a diferença completamente nesse projeto, que diz muito mais sobre respeito e empoderamento do que só sobre arte e teatro em si. Foi no bairro, por exemplo, que o grupo instalou sua sede, numa demonstração efetiva de que o olhar estrangeiro queria ser tomado, fundido, pelo olhar local.

Atores "moradores" participam da encenação

Atores “moradores” participam da encenação

Esse talvez seja o principal mérito desse trabalho. Ao mesmo tempo em que os atores “profissionais” realmente acumulam experiências de vida e não só simulacros e memórias, os atores “moradores” atravessam o caminho em direção à própria voz. Estão todos no mesmo barco, na mesma rua de paralelepípedo, no mesmo beco enlameado que tem as paredes cobertas de poesia. Todos se influenciam, se misturam, se deixam afetar.

É um espetáculo também que desperta a noção de pertencimento, discute a cidade que queremos, a vida que desejamos levar, os sonhos pelos quais lutamos. Se durante muito tempo na comunidade, era o rio quem vinha ao encontro dos moradores, impondo como eles mesmo dizem, os tempos da água, da lama e do pó, agora somos nós que vamos ao rio, num movimento não só de autocompreensão, mas de tentativa de diálogo com o mundo no qual estamos inseridos.

Ficha Técnica
Ideia original, roteiro e direção: João Júnior
Dramaturgia: Estopô Balaio
Atores: Ana Carolina Marinho, Juão Nin, Johnny Salaberg e Renato Caetano
Atores-moradores: Adrielle Rezende, Bruno Cavalcante, Bruno Fuziwara, Keli Andrade e Paulo Oliveira
Participação: Emerson Alcade
Trilha Sonora: Marko Concá
Sonoplastia: Carol Guimaris e Doutor Aeiuton
Poesias: Debora Fiúza “Rata”, Emerson Alcade e Jacira Flores
Canções: Diane Oliveira, Dustin Mc e Matheus Farias, Juão Nin, Marko Concá
Figurino: João Júnior
Artes Visuais: Paula Mendes, Renato Caetano e Clayton Lima
Dança de Rua: Kel Look, Popper Diniz, Jeans, Bia Ferreira, Big Baby e Mell Reis
Produção: Wemerson Nunes, Clayton Lima e Ana Maria Marinho
Comunicação: Ramilla Souza

Montagem terminou sob chuva forte, no rio. Foto: Reprodução facebook/Estopô Balaio

Montagem terminou sob chuva forte. Foto: Reprodução facebook/Estopô Balaio

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***A cobertura crítica da X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo é uma ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, que articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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“A memória é uma força, não um fardo.”*

Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia. Foto: Jennifer Glass

X Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo

A citação que intitula esse texto é um comentário do programa da exposição de Tadeusz Kantor, atualmente em cartaz no Sesc Belenzinho, a que tive oportunidade de assistir logo antes da apresentação de Arqueologias do presente – A batalha da Maria Antônia do grupo Opovoempé na Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. Menciono aqui a exposição não apenas para contextualizar a citação, mas para lembrar que a recepção de uma obra é sempre trabalhada pela sua poética. O estado do corpo em uma exposição que nos interessa é uma mistura interessante de atenção e distração. O início desse trabalho do Opovoempé opera a passagem para esse estado.

O espaço cênico é formado por mesas, painéis, paredes e um espaço vazio, com o número 68 no centro de uma forma circular, em referência ao ano de 1968. Os painéis contêm frases que enquadram os tópicos propostos com documentos de diferentes procedências: cópias de matérias de jornal, artigos publicados nos anais da AMPUH, monografias, impressos de páginas na Internet, projetos de lei, um mapa cujas ruas devem ser renomeadas, etc. Nas mesas, jogos e outros documentos como livros e dispositivos de áudio com fones de ouvido para cada um ler ou escutar gravações de discursos ou depoimentos acerca da ditadura militar no Brasil e da situação análoga em outros países latino-americanos.

Entre os livros, me chamaram a atenção os de Educação Moral e Cívica em uma mesa que lembra uma mesa de professor na sala de aula, com aquela típica bandeirinha do Brasil. Sobre a mesa, uma sinalização que dizia algo como “Criança Anos 70”. Tendo nascido em 1976, me lembro de ter aula de Moral e Cívica, mas não me lembrava do conteúdo dessas aulas. Em dois livros, encontrei narrativas – pretensamente históricas – sobre índios. Em um deles, uma narrativa praticamente eliminava os índios do Brasil, falando deles no pretérito: “O índio, que era o homem primitivo do Brasil, vivia, na oportunidade da descoberta deste, no regime da mais rudimentar cultura, aproximando-se esta, da Idade da Pedra.” Tirei uma foto da página para não esquecer, mas não tenho a referência bibliográfica.

Acima, dei ênfase ao fato de que se tratam de narrativas “pretensamente” históricas porque a premissa básica da escrita da história é o compromisso com a verdade. Só que não em países que sofreram processos ditatoriais. Nesses casos, a história, bem como parte significativa do jornalismo, serve para criar ficções de acordo com interesses específicos. O trabalho do grupo Opovoempé me aprece apresentar a ideia da construção deliberada de discursos mentirosos ao oferecer essas evidências para o espectador encontrar de uma forma que prescinde de qualquer estratégia de convencimento.

Depois de um tempo em que os espectadores estão no espetáculo como se estivessem em uma exposição ou em uma sala de jogos, um dos atores inicia um jogo em que os espectadores respondem a perguntas ao se deslocar no espaço, de acordo com o grupo a que pertencem. Por exemplo: o ator propõe que quem nasceu antes de 1964 deve ficar no ponto X e quem nasceu depois, no outro X. Assim, com algum humor, vai se apresentando uma espécie de cartografia da formação do público. Com esse movimento, os espectadores trocam olhares, riem, às vezes aplaudem o outro grupo ou o reprimem em tom de brincadeira. Os atores administram o tempo das propostas com tranquilidade e com isso o público vai se adequando ao tempo de permanecer, que também é o tempo de escutar. Até que parte do elenco começa a narrar os fatos da Batalha da Maria Antônia. Eles estão com fones de ouvido e falam na medida em que escutam depoimentos gravados. A preparação do ritmo interno do espectador me parece bem eficaz, embora tenha ficado com a impressão de que o público, no dia da apresentação que eu vi, estava excessivamente tímido para a proposta da peça.

O espaço cênico é formado por mesas, painéis, paredes e um espaço vazio, com o número 68 no centro

O espaço cênico é formado por mesas, painéis, paredes e um espaço vazio, com o número 68 no centro

Os criadores de Arqueologias do presente se propõem um risco real quando optam por fazer a temperatura do espetáculo depender bastante do público de cada dia. Para o bem ou para o mal das apresentações isoladamente, é interessante que a poética do espetáculo tenha essa dimensão de risco e essa abertura concreta para o trajeto de pensamento que o espectador vai percorrer.

De qualquer modo, penso que a forma como a peça lida com o espectador é exemplar do desejo de convívio e partilha que o trabalho propõe. Até nos momentos em que um ou outro ator faz uma pergunta diretamente para um espectador, o tom é de conversa, não de interrogatório nem de desafio. A relação é sempre horizontal. Mesmo quando eles tomam a palavra para dar os depoimentos, a fala é entre iguais, sem pretensão de autoridade.

Vejo duas formas documentais distintas na peça. A primeira é composta pelos objetos, por coisas materiais, por imagens e textos impressos. A outra é feita de vozes, depoimentos falados, entonações, expressões físicas do corpo, pessoas reais. É como se a peça nos convidasse a escutar a história de outra maneira, convocando uma humanidade, um corpo a corpo para esse processo.

Em determinado momento, um dos atores perguntava qual era o X da questão, indagando o porquê das coisas estarem como estão. Talvez seja possível responder que há um vício tautológico geral de dizer que as coisas estão assim porque sempre foram assim. E o que vemos com essa e outras peças que buscam formas singulares de lidar com a história é, primeiramente, o obvio: que o país em que vivemos agora é o resultado do projeto de cinco décadas atrás. Mas a peça também sugere que a força da memória pode ser a de entender que se as estruturas que (ainda) cultivam a violência e a ignorância são uma construção, também podemos acreditar na sua desconstrução e trabalhar por ela.

Temperatura do espetáculo depende bastante do público

Temperatura do espetáculo depende bastante do público

*Crítica escrita por Daniele Avila Small – Questão de Crítica/DocumentaCena**
**A DocumentaCena – Plataforma de Crítica articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).

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