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Operário do teatro

Moacir Chaves chegou a fazer a proposta para a mulher e os dois filhos: deixar o Rio de Janeiro e virem morar no Recife. A família não aceitou. Ele diz que, mesmo sendo uma metrópole, Recife tem um ritmo mais tranquilo do que o Rio ou São Paulo. Mas o diretor que tem no currículo mais de 40 espetáculos, muitos deles premiados, não faz só elogios: acha um absurdo que a cidade não demonstre sua força cultural no teatro, o que estaria ligado, por exemplo, à ausência de um curso de formação do ator.

Na semana passada, Moacir Chaves veio a Pernambuco por dois dias para os últimos ensaios de Rei Lear, montagem que assina para a Remo Produções e que encerra curtíssima temporada neste domingo (30). É a segunda vez que o carioca trabalha com as atrizes Paula de Renor e Sandra Possani (que em Rei Lear são também acompanhadas por Bruna Castiel). A encenação de Duas Mulheres em Preto e Branco também ficou sob a responsabilidade dele; e foi dele também a ideia de encenar Shakespeare tendo apenas três mulheres no elenco.

A conversa com Ivana Moura e Pollyanna Diniz, que incluiu temas como teatro de grupo, formação do ator, atitude política e televisão, no entanto, foi realizada meses antes, em janeiro, quando Moacir trouxe ao Recife duas de suas montagens com o Grupo Alfândega 88: O Controlador de Tráfego Aéreo e A Negra Felicidade. No Janeiro de Grandes Espetáculos, ele foi também um dos jurados do prêmio Apacepe de Teatro e Dança na categoria teatro adulto. Viu de perto as deficiências do teatro pernambucano, mas também as suas possibilidades.

Moacir Chaves

Moacir Chaves

ENTREVISTA // MOACIR CHAVES

Você tem uma formação teórica e prática em teatro. Você sempre pensou no teatro? 
Não. Fiz parte de um grupo de teatro quando era garoto, em Teresópolis, mas por acaso. Um amigo que tocava violão me levou. Era um grupo bacana. Eles montavam uma peça por ano, apresentavam e, com o dinheiro, a gente ia numa pizzaria e ia ver uma peça no Rio. Eu nunca tinha ido ao teatro. Morava numa cidade de interior, Teresópolis. Mas, desde sempre, participei de qualquer coisa que tivesse a ver com teatro na escola, por uma coisa muito simples: eu era bom aluno de português e era escolhido. Nunca fui desinibido. Pelo contrário! Sempre fui muito fechado, tímido. Mas normal também… jogava bola, fazia tudo. Eu era inibido com meninas, basicamente! Nunca escolhi fazer teatro. Entrei nesse grupo e a gente foi fazendo. Depois, fui para o Rio estudar Geologia. Teatro não existia! Não era uma possibilidade! Nem sabia que existia universidade de teatro! Nesse primeiro ano no Rio, 1982, com 17 anos, descobri que, de fato, eu adorava teatro, porque era o que eu fazia. Ia ao teatro todos os dias. Vi todas as peças em cartaz aquele ano. Todas. Ninguém viu mais teatro em 1982 do que eu. Aí fiquei doido pra fazer um curso de teatro. Vi num ônibus uma propaganda de um curso. Fiz curso no Circo Voador, depois descobri que tinha uma escola de teatro chamada Martins Pena. Fiz vestibular para a Unirio e comecei Teoria do Teatro. Já entendia que eu tinha uma relação muito forte com o teatro.

Você é um espectador desde então?
É necessário ver. Vou atrás das coisas, sempre fiz isso. Bem garoto, tinha uma peça em São Paulo, eu pegava um ônibus e ia ver. Todos os primeiros dinheiros que ganhei em teatro, gastei viajando pra ver teatro. Isso é parte da minha formação. Isso é explícito. Quando eu ia ver uma peça que eu sabia que era legal, lia o texto antes. Eu sabia da carência que eu vivia, que era muito grande, ainda é muito grande, mas hoje menos, porque hoje a gente tem acesso via internet a um monte de coisa, viajar hoje é mais barato; e o que tinha para ver eu via. Eu via tudo.

Alguns encenadores rejeitam o teatro dos outros.
Eu nem era encenador! Eu era um garoto que adorava teatro. Até hoje vou ver qualquer coisa. Quando vou montar uma peça, tenho muita vontade de ir ao teatro. Quero ver como as pessoas fazem, o que elas resolvem, quais são as questões, quero comparar com o que eu estou pensando. Isso é bobagem, idiotice! Arte não tem propriedade. Não é você! São as coisas que estão através de você. Não sou eu! Estou estudando um monte de coisa, aprendendo, e tenho que soltar essas coisas todas. Daqui a pouco a gente vai embora! Daqui a pouco a gente morre. E aí? E aquilo tudo que passou por você, que você descobriu? Eu tenho um problema sério agora, tenho que terminar o doutorado. A coisa que mais me estimula a conseguir, porque eu não sou um profissional intelectual, eu leio muito, estudo muito, mas eu não sou um cara que senta, escreve, lê, que tem que ter produção intelectual. Não, minha produção é artística. O que me motiva, o que me faz ser completamente disciplinado é ensaiar, trabalhar, ensaiar, trabalhar. Para produzir escrita eu não sou nada disciplinado. Mas o que me instiga a, de fato, levar adiante o doutorado é tentar por de uma forma menos etérea, menos volúvel, pensamentos a respeito de uma obra, para que fique. Não para que eu seja o autor de alguma coisa ou que tenha originalidade. A questão da originalidade em arte é a coisa mais equivocada que existe. O artista não pode pensar em ser original. Isso é uma falácia, um equívoco. O cara tem que trabalhar com o real, não no sentido de reprodução do real, mas com a vida, com as coisas que estão aí. Isso é coisa do mercado. Quem tem que ser original é a cerveja, o carro. Eles que têm que ser originais. Nós não. Nenhum grande artista tem problema com originalidade. O cara rouba e rouba e é isso aí. O Brecht é um ladrão tremendo e assumido. E daí? Mas se não fosse o Brecht, não existiria aquela obra dele, a despeito de todos os auxiliares que ele “explorou”, ou todas as fontes que ele utilizou. Da mesma maneira Shakespeare, e etc, etc. Todo mundo!

A sua história foi baseada no teatro de grupo?
A única maneira de se trabalhar bem é trabalhar muito e em continuidade. Grupo, coletivo, companhia, não tem nenhuma ideologia nisso. É por que ou você trabalha com parcerias e desenvolve vocabulário, e cresce junto, e vai adiante, trocando, indo e voltando, ou é uma perda de tempo. Não sou nada sectário. Trabalho com quem for. Só não faço televisão porque pra fazer televisão você tem que fazer só televisão. Porque aquilo é divertido. Comecei a fazer teatro porque me divirto, porque gosto de teatro. Não comecei a fazer teatro por nenhuma outra coisa. Adoro estreia! Não fico nervoso em estreia! Gosto de saber o que as pessoas vão achar, gosto de ver se aquele negócio vai funcionar, como é que as pessoas vão receber. Quando a gente não faz bem por um ou outro motivo, quando alguma coisa ruim acontece, só fico triste porque, ai que pena, as condições não foram melhores, o ator estava doente, sei lá, qualquer coisa! Ou esse dia não foi bom…teatro é dificílimo! Teatro não fica bom. Teatro tem que ser bom, tem que ser bom todo dia. Não é como essas coisas mais ‘faceizinhas’, cinema, você fez e está pronto. Não! A gente é uma desgraceira só! Você fez e não está pronto! Tem que fazer de novo e de novo. A questão de grupo é só isso. Tem que trabalhar continuamente e tem que trabalhar seguindo um rumo. E aí infelizmente aqui a gente não tem companhias de teatro. As companhias no Brasil são duas, né? A Globo e a Record. Você não tem outra. O que de fato se mantém? Tem o Galpão, mas é tão limitado, tão fechado, porque o Galpão é só o Galpão. Claro que o Galpão dá milhares de frutos e é um trabalho sensacional, mas o Galpão tem que se renovar, porque o Galpão não pode acabar quando as pessoas do Galpão acabarem.

Como você vê outros casos…o Oficina, por exemplo, não é um grupo…é Zé Celso?
O Oficina não é um grupo. O Oficina é uma coisa que fica em torno do Zé Celso e que algumas pessoas permanecem. É um núcleo. Mas é preciso que as pessoas não se juntem para projetos e projetos e sim que vivam daquilo. E que tenham treinamento, apresentação de repertório.

O Ói Nóis, por exemplo…
O Ói Nóis talvez. Não sei como é que funciona. Claro que tem, mas é tudo muito tênue e ralo. Um grupo deveria ter 30 pessoas. Isso não é nenhum absurdo. Essa companhia de dança que veio agora no Janeiro de Grandes Espetáculos…a São Paulo Companhia de Dança. Quantos bailarinos têm contratados? Porque é que não se tem isso em teatro? Não há diversas orquestras Brasil afora sendo sustentadas pelo governo, com dinheiro do contribuinte? Então, porque não em teatro?

O que precisaria?
Dinheiro. É preciso salário. É preciso que eu viva e saiba que vivo disso, que priorize isso. Tendo dinheiro, salário, tenho rotina de trabalho. Vou todo dia lá fazer um trabalho físico, um trabalho vocal, aprender um instrumento, ler alguma coisa, ensaiar para um espetáculo e apresentar outro. É só isso. Dia a dia. Ator não é ator fazendo uma peça de tempos em tempos. Imagina um músico que toca de ano em ano… O que é isso, gente? Como é que as pessoas ficam dizendo que são atores? Fazem uma peça de ano em ano! Isso é uma aberração. A gente tem que entender que é uma aberração e não ficar triste, porque essa é a nossa realidade. O que a gente tem que fazer? Mudar! Como? Formulando políticas culturais. Berrando que isso está errado! A gente nem percebe! Porque não quer admitir o nosso fracasso individual, que não é culpa nossa. Você não é ator, meu camarada. Se você faz uma peça de dois em dois anos, você não é ator. Você é um diletante. O mundo não te permite isso. Ator é quem trabalha com constância, quem trabalha permanentemente. É difícil mesmo. Assim: o grupo Galpão, por exemplo, é um grupo de atores. Eles trabalham sem parar, há 20 anos. E a melhora individual é brutal. Eles são muito melhores atores do que quando começaram. É uma coisa impressionante! Você olha e diz: olha a maturidade. Mas maturidade não é porque ficaram velhos não! Porque você fica velho e não fica maduro. Maduro na atividade. Você só é maduro na atividade, se você fizer sem parar. Vamos parar de mentir, gente. A gente é uma civilização pobre de teatro, paupérrima. A gente mal faz teatro. Vamos olhar a realidade. A gente faz teatro de uma forma tosca. É nos grandes centros também. Não estou falando porque eu estou no Recife, ou se tivesse em Fortaleza, ou em Belém. Não! Estou pensando no Rio, na minha cidade, nos meus colegas.

O que precisa para se tornar um ator? O que é um ator?
Precisa formação. O ator é um sujeito que sabe controlar o corpo, a voz, criar sentido com os movimentos e com o som que produz, sabe respirar, sabe o que é o diafragma. Esse é o básico. O ator que souber andar a cavalo é melhor. O ator que souber lutar capoeira é melhor. Quanto mais coisa uma pessoa souber fazer, mais capacidade terá. Isso não quer dizer que o pulo do gato é saber fazer um monte de coisa. O pulo do gato é alguma coisa impalpável. Porque um ator que tem um treinamento, tem isso, tem aquilo, é excelente, e o outro que tem a mesma coisa é médio? Porque tem um pianista que é genial e outro que é excelente, que é muito bom? A musculatura de ambos é absolutamente trabalhada, eles tocam no mesmo tempo. O que difere um pianista genial de um pianista bom não é a capacidade de acessar as teclas num determinado tempo e ritmo. Não. Ambos vão conseguir o mesmo rendimento nisso. Isso é o impalpável. Isso também tem em teatro. Sendo que a nossa arte é menos objetiva até do que a musical, porque um pianista vai executar aquela partitura e a partitura não vai deixar de ser o que é. O ator é um inventor de partituras. Mas ou ele sabe tocar ou não adianta nada. Depois do momento em que ele sabe tocar, aí tem que dar o pulo do gato. Tem gente que tem essa coisa impalpável, do talento, mas não tem treinamento. Aí não adianta nada. Tem gente que tem muita sensibilidade, mas não sabe se relacionar com isso. Tem gente que não tem referência.

Já que falamos do ator, com o diretor, o encenador, é o mesmo processo?
Acho que sim. Só que diretor é mais maluco ainda. Porque é uma invenção o tempo inteiro. Claro que você sabe os códigos, etc, etc, mas é uma invenção permanente. Diretor é uma figura estranha de se ensinar. Dou aulas de direção na universidade e não sei como ensinar. Eu sou um blefe! O que faço é trocar experiência e mostrar ponto de vista. E os caras têm que estudar, óbvio. Os caras têm que ler tudo, ver tudo, saber tudo. Se eles não virem, não lerem, não estudarem, não são nada. São uns ignorantes, uns bonitinhos, uns bobos. Tem um monte de gente que dá curso de dramaturgia, que nunca leu Nelson Rodrigues, Martins Pena, França Júnior, Beckett. Ouviu falar. Isso deveria dar cadeia! Pô… Descobri outro dia que um jovem dramaturgo, trabalhou com a gente no grupo, o cara não conhecia a obra do Nelson inteira. Conhecia mal e porcamente, uma, duas peças. Pô, cara! Faz isso não! Aí você vai dar curso de dramaturgia? Coisa feia! Você não sabe nada! Você vai fazer coisa velha. Mas o interesse desse rapaz específico que estou pensando é mais televisão, fazer roteiro. Então tudo bem. Aí dá. Lá não precisa saber nada. Precisa saber aquele modelinho, aquela coisa específica. Tem um saber ali, mas…

O controlador de tráfego aéreo, montagem da Alfândega 88. Foto: Rodolfo Araújo

O controlador de tráfego aéreo, montagem da Alfândega 88. Foto: Rodolfo Araújo

Até na televisão existe uma exigência e o público já nota quando há algo diferente.
Mas televisão nunca vai chegar, né? Televisão é aquilo ali, mercado, restrito. Mercado é consumo de massa e acabou. Você entra na Globo, por exemplo, você não precisa saber nada mais do que o que eles fazem. Se você é uma pessoa talentosa numa coisa e a Globo te contrata, ela não te contrata para fazer aquela coisa que você faz. Ela te contrata porque você é talentoso. E ela vai ensinar a você o que ela faz. A Globo ensina você a fazer a Globo. E não a mudar a Globo, porque a Globo funciona. E o que eles querem é funcionar. E eles querem tirar os talentos do mercado, porque eles podem inventar coisas diferentes e isso desequilibrar…quando eles te contratam é uma forma de usar tua energia, tua inteligência, para fazer o que eles já fazem. E para ceifar a tua energia e inteligência, para não ameaçá-los noutro canal. Isso qualquer grande empresa faz. São assassinas, elas não se interessam por nada, só pelo rendimento prático da ponta, da venda.

Voltando a falar de ator, você encontrou esses atores na Alfândega 88?
Não. De jeito nenhum. Porque ali não é uma escolha de grandes atores. É uma escolha de gente para trabalhar com continuidade e aí entram questões éticas, de comportamento, de interesse. A gente vai se juntando por interesses, às vezes por falta de opção. Tem muita gente que faz teatro porque não consegue fazer outra coisa. Quando fizer outra coisa, nunca mais faz teatro. Isso é muito comum. O cara diz assim: “sou um ator de teatro”. Mentira! O cara está doido pra ficar famoso e descansar. Um cara fez teatro 20 anos… aí soube de uma fonte muito íntima que ele chorava: “eu sou tão bom ator, todo mundo diz, reconhece. Porque não sou chamado para fazer televisão?”. A resposta é: porque você é feio fisicamente, você não se enquadra no que eles precisam nessa faixa etária. Quando você ficar mais velho, isso já não vai ter tanto interesse, tanta importância. E aí você será assimilado, tenha calma. Aí o que aconteceu com esse rapaz? Foi assimilado, hoje ele faz televisão, aqui e ali. Aí eu o convidei para fazer uma peça. “Ah, não vai dar, estou gravando. Mas a gente precisa fazer teatro, né? Não dá para ficar sem teatro”. Falando como uma figura que precisa fazer teatro. Quem precisa fazer teatro, faz teatro. Você não precisa. Precisa ter o seu emprego, você está satisfeito aí. Quando digo que a gente precisa ter emprego no teatro é para possamos nos fixar no teatro, para que o teatro não perca aqueles que querem fazer teatro e não que retenha os que não querem. Porque tem muita gente que quer fazer só teatro, mas não pode. Aí qualquer contrato, aceita, vai e murcha naquele lugar. Por outro lado, tem gente que desabrocha: “agora sou feliz, sou alguém, conhecido, reconhecido”. Que é uma coisa justa. Isso não é uma questão moral.

Duas mulheres em preto e branco. Foto: Pollyanna Diniz

Duas mulheres em preto e branco. Foto: Pollyanna Diniz

Você está trabalhando com Paula e Sandra desde Duas mulheres em preto e branco. Como foi esse trabalho e como se deu essa continuidade?
A Paula e a Sandra são muito legais, dispostas, disponíveis, prontas para trabalhar, com muito gabarito, algumas deficiências de formação, mas com muita experiência. E dispostas a trabalhar essas deficiências. Isso não quer dizer que elas não sejam boas atrizes. Elas são ótimas atrizes, mas têm uma coisa da falta de formação básica. E a continuidade é só o que se precisa. Por isso que a gente pensou um segundo espetáculo. Foi uma relação muito amorosa, a gente se deu muito bem. Tivemos um resultado muito bom. Acho muito legal o resultado do Duas mulheres. É uma tarefa dificílima fazer aquele texto e acho um espetáculo muito bonito e difícil também. É muito desigual, controlar essas coisas todas, manter o lugar correto. Nada foi forjado. Tudo nasceu da gente, em conjunto. A gente foi entendendo o texto, o autor, a forma, o tipo de intervenção que ele fazia. O autor é um personagem nosso, ele não sabe, mas é. A forma vem da percepção de uma mente que organiza aquela matéria. E isso é o que molda as atividades em cena.

E a sugestão de Shakespeare? Foi sua?
Shakespeare foi uma sugestão para continuar. Trabalho com muitos textos, dou aula. Nesse semestre, trabalhei com Rei Lear, dei uma oficina no Teatro Serrador; e pensei vamos fazer Rei Lear com três atrizes. Aí propus a Paula. Mas, para isso, para continuar a relação. Eu adoraria morar no Recife. Comprar um espaço aqui, ter uma sede aqui, produzir a partir daqui. Propus isso a Mônica e ela não topou. Nem os meninos. É uma cidade linda, pessoas amorosas, um mar desses, a água é quentinha. É possível fazer um trabalho mais concentrado, porque a despeito de ser uma cidade enorme, é bem menor do que Rio e São Paulo. Gosto da cidade, da história daqui. Acho que é um lugar muito especial, muita coisa aconteceu. Sempre foi uma potência cultural; e em teatro não é. Não tem uma escola. Isso é uma vergonha. Em Salvador tem. Não pode! É como se dissesse assim: vocês não sabem o que é o Recife, vocês não entendem o sentido dessa cidade?

Rei Lear. Foto: Guga Melgar

Rei Lear. Foto: Guga Melgar

SERVIÇO:
Rei Lear (Remo Produções)
Quando: Sexta (28), às 19h; sábado (29) e domingo (30), às 20h
Onde: Teatro Apolo (Rua do Apolo, 121, Bairro do Recife)
Quanto: R$ 20 e R$ 10

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Um diretor livre de amarras

João Fonseca, diretor

Conheci pessoalmente o diretor João Fonseca ano passado, quando estive no Rio para fazer uma matéria sobre Tim Maia – Vale tudo, o musical. Acompanhada por dois colegas, estivemos na casa do diretor, um apartamento pequeno e charmoso. Lembro que, enquanto, conversávamos, meus olhos se desviavam para os DVDs que ele guardava na sala… Falamos sobre a montagem, sobre musicais, sobre Tiago Abravanel, mas não tive oportunidade de comentar mais a própria carreira do diretor.

Com uma produção tão intensa, não iria faltar chance; ela veio agora, com a apresentação de R&J de Shakespeare – Juventude interrompida, no Teatro de Santa Isabel, dentro do Janeiro de Grandes Espetáculos. Do aeroporto, indo de São Paulo de volta ao Rio, o diretor conversou comigo sobre a peça, sobre novas montagens, Os fodidos privilegiados, Abujamra, direção, sobre a vontade de vir ao Recife.

Em R&J de Shakespeare…, João Fonseca trabalhou com quatro jovens: Rodrigo Pandolfo, Pablo Sanábio, João Gabriel Vasconcellos e Felipe Lima. Diz que uma das coisas que mais chama atenção na montagem é o jogo que se estabelece com a plateia, já que são esses quatro rapazes que irão interpretar a história do casalzinho proibido mais famoso da dramaturgia mundial.

Entrevista // João Fonseca

Adaptações da obra de Shakespeare são bem difíceis. Porque você escolheu trabalhar com esta do americano Joe Calarco? O que ela tem de diferente?
Essa adaptação de Joe Calarco estreou em Nova York há uns 15 anos. E eu fiquei muito curioso, porque era muito interessante fazer Romeu e Julieta com quatro homens. Fiquei com aquela curiosidade. Quando o Pablo (Sanábio) me procurou para fazer um trabalho, eu falei desse texto. Nós lemos e resolvemos na hora. A habilidade do texto é impressionante. Centrar a história de Romeu e JUlieta num colégio interno de meninos e ter esses quatro meninos, que se reúnem para ler, para brincar de fazer Romeu e Julieta, e conseguir contar a história toda só com esses quatro é muito bom.

Como foi o processo de trabalho?
Trabalhamos durante 45 dias, exaustivamente. Oito horas por dia. O texto é bastante difícil. A tradução é do Geraldinho Carneiro, que é poeta. Ele fez uma tradução fluente, mas sem perder a poesia. Os textos são longos e como então dizer esses textos de maneira natural? Cada um faz mais de um personagem e troca de personagem com muita rapidez. João Gabriel Vasconcellos, por exemplo, faz Romeu, a criada e o pai de Julieta. É um exercício para ator incrível, essa possibilidade de fazer vários personagens. E é um atrativo para o público.

R&J de Shakespeare - Juventude interrompida Foto: Luiz Paulo

Romeu e Julieta é, talvez, a história mais conhecida de Shakespeare. Como torná-la ainda atrativa, surpreendente?
A história é ótima. E é bom, porque todo mundo já sabe o final! Eles morrem, todo mundo conhece. Ou melhor, as pessoas acham que conhecem o texto, mas na realidade, muitas não conhecem. E tem todos os elementos de uma peça completa: comédia, drama, ação. É a melhor história de amor de todos os tempos. Mas acho que uma das coisas que mais chama a atenção do público é o jogo que se estabelece. São quatro garotos e se estabelece um jogo com a plateia. Quatro atores representando e como é que eles vão resolver essa história, como vão criando. Não existem figurinos e cenários para Romeu e Julieta, por exemplo. O casaquinho da escola vai virar saia, turbante, a régua vira uma espada, o esquadro vira máscara. E também só de serem quatro homens, já causa um frisson a mais. A peça estreou um ano atrás, exatamente.

Qual a reação das pessoas com esse romance protagonizado por homens?
No começo, quando tem o primeiro beijo, as pessoas sentem um estranhamento, porque estão vendo dois meninos, mas, ao final, eles não vêem mais isso. O que importa é a história de amor. A plateia, sem querer, faz um exercício de tolerância, esquece que são dois homens.

Quais são os seus próximos projetos?
Estou estudando e preparando projetos. Mas posso te dizer que com Os Fodidos privilegiados vamos remontar dois espetáculos de Nelson Rodrigues: O casamento e Escravas do amor, em virtude das comemorações do centenário. Vamos reestrear no Festival de Curitiba. Os elencos são quase originais e vou trabalhar novamente com (Antônio) Abujamra. Vamos remontar, com pequenas mundanças. Vou até atuar.

O casamento, de Nelson Rodrigues, com Os fodidos privilegiados

Você falou no Abujamra. Eu queria saber da importância do Abujamra para a sua carreira.
Abujamra é meu pai, minha mãe, meu tudo. Sou diretor por causa dele. Ele me deu todas as chances, porque eu era ator. Foi ele quem me estimulou, me deixou ser diretor e me ensinou. A minha faculdade é Abujamra.

Mas você tinha intenção de ser diretor?
Não! Não tinha a menor pretensão. E acredito que, para ser diretor, não é você quem escolhe, você é escolhido. As pessoas confiam em você e querem você. E até hoje eu digo: “porque está todo mundo olhando para minha cara?” (Risos) Várias pessoas confiando em você num processo. Quando comecei a dirigir, percebi que a minha melhor vocação é essa. Apesar que eu gosto de estar me exercitando. É importante que eu nunca esqueça como é atuar. Acho que vou dirigir melhor dessa forma, quando eu me coloco atuando de novo, faço parte, tenho essa cumplicidade.

É porque, às vezes, o diretor é visto como um “ser superior”…
E não é nada disso! Não existe nada mais importante para um diretor do que o ator. O ator é o meu
instrumento de trabalho.

Você conseguiria definir a sua linha de trabalho, as suas características, como diretor?
A gente vai tentando…sempre me considero experimentando. Você vai adquirindo experiência e escolhendo caminhos. Gosto de dirigir tudo. Não tenho um gênero. Mas tenho algumas características. Gosto de trabalhar com poucos elementos, por exemplo, no palco vazio, só com cadeiras; e em trabalhos que estabeleçam esse jogo teatral. Isso é o mais importante, é o que acontece em R&J de Shakespeare. O menino vai se matar com uma régua e todo mundo vai acreditar. E essa régua está para o teatro como o efeito especial está para o cinema.

Durante a carreira, você teve que fazer muitas concessões?
Não, nunca fiz concessões. Não diferencio os projetos. Nunca dirigi uma coisa na qual não acreditasse. Sempre dirigi ou porque quero trabalhar com alguém ou porque quero falar aquilo, independente de ser um projeto armado com um elenco reunido só para aquela peça, se com uma companhia de repertório. Esses meninos de R & J eu conheci na CAL (Casa das Artes de Laranjeiras) e agora eles estão se projetando, mas não eram conhecidos, não tinham carreira em televisão nem nada disso. E me dá muito prazer trabalhar com jovens que não têm essa projeção. E a gente nunca sabe o futuro de um projeto, se vai dar certo ou não. Eu não procuro esse guia, de porque vai ser com essa pessoa, vai ser sucesso garantido ou não. O próprio Tim Maia, o elenco não tinha ninguém conhecido. O Tiago Abravanel ninguém conhecia e deu certo. A peça está em cartaz no Rio. Mas deixa eu dizer, eu queria muito ir ao Recife também. A passagem estava comprada, mas aconteceram uns imprevistos. O pessoal do festival é super atencioso, carinhoso. E adoro o Santa Isabel. Tenho um carinho enorme por esse teatro.

Tim Maia - Vale tudo, o musical

Quando foi a última vez que você esteve aqui?
Se não me engano, foi com os Fodidos privilegiados, em 2006. A gente participou do Palco Giratório e apresentou três espetáculos no Santa Isabel.

Você dirigiu também Maria do Caritó, texto de Newton Moreno. O que acha dele?
É mais uma paixão pernambucana. Tenho muita admiração pelo Newton. Ele é um talento enorme. Com Maria do Caritó, Newton consegue fazer o que eu almejo na direção. Ele faz uma obra popular, acessível, mas de um refinamento, inteligência; fala de coisas importantes, tocando com profundidade as coisas. É de uma sabedoria popular. Eu digo que Maria do Caritó é um trabalho em que sou só uma parte de grandes coisas. Os atores são especiais, o texto, o cenário, o figurino, a equipe.

Maria do Caritó, texto de Newton Moreno

E Nelson Rodrigues?
É difícil, com Nelson, sair dos clichês. Ele é o meu autor favorito. É o que talvez eu mais dirigi. Fiz O casamento, Escrava do amor e A falecida. Nelson era muito moderno, arrojado, propôs e trouxe coisas para o teatro que não existiam. Desde Vestido de noiva. Era difícil aceitar. Em A falecida, ele propõe que não se usasse cenário. E ele entra de uma maneira na questão familiar! Que é muito chocante! Como ele lida com pai e filha, filha e mãe, indo de encontro. Chegar a isso era difícil. Porque não é um teatro realista. Joga com as paixões. E as pessoas não queriam: “a família brasileira não é uma perversão”. Em A vida como ela é e nas tragédias cariocas, ele retrata muito bem um cotidiano; mas é também capaz de falar da família como um todo, da instituição.

Serviço:
R&J de Shakespeare – Juventude Interrompida
Quando: hoje e amanhã, às 20h30
Onde: Teatro de Santa Isabel
Quanto: R$ 10 (preço único)
Informações: (81) 3355-3322

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