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Minha pequena maratona pelos bosques do Mirada

Erupção – O levante ainda não terminou, da ColetivA Ocupação, de SP. Foto: Matheus José Maria / Divulgação

Fuck me, espetáculo da argentina Marina Otero. Foto: Diego Astarita / Divulgação

Hamlet, montagem com artistas com Síndrome de Down da Teatro La Plaza, de Lima, Peru. Foto: Divulgação  

Cuando Pases Sobre Mi Tumba, do dramaturgo e diretor franco-uruguaio Sérgio Blanco. Foto: Divulgação

La Mujer que soy, do Teatro Bombón, da Argentina. Foto: Divulgação

Fiz minha pequena maratona pelos bosques do Mirada. 13 espetáculos + um e uma abertura de processo em seis dias, de 12 a 17 de setembro. Minha curadoria particular seguiu alguns critérios. Montagens com maior dificuldade de ver depois, visto que não desceriam a serra ou pouco provavelmente circulariam pelo Brasil. Alguns grupos que já conhecia, interesse pela temática, disponibilidade de ingresso e intuição, ou seja, apostar no que a produção estava vendendo como espetáculo. Dessa forma consegui assistir peças de Portugal, Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, México, Peru e Uruguai.

O Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas ocorreu entre 9 e 18 de setembro. Cheguei no quarto dia de festival e fui embora antes do fim. Acho que tenho algum problema com essa ideia de fim.

No Mirada acontecem tantas coisas ao mesmo tempo, com choques de horários, que é humanamente impossível acompanhar tudo. Então existem muitos Miradas dentro do Mirada, como ocorre com grandes festivais pelo mundo. Performances, ações formativas, lançamento de livros, etc. etc. etc.  Só de espetáculos programados foram 36.  Alguns não verei jamais e espero que não sejam os que me tocariam profundamente. Mas isso a gente nunca saberá. Parecem ideias tão abstratas como as possibilidades de encontros não concretizadas.

Foi um percurso irregular em meio a essa profusão de vozes que projetam, talvez, o recorte mais cintilante da produção contemporânea das artes cênicas ibero-americanas.

De gratas surpresas e pequenos desapontamentos (mas isso é porque de algum modo havia expectativa), confirmações e inquietações. A vida é um pouco assim, né?!!!

No ano que marca o bicentenário da “Independência” do Brasil, Portugal é o país homenageado. Independência com muitas aspas, mas a data é oficial. É uma provocação pensar sobre a relação entre os dois países. Isso foi posto em cena de alguma forma. Nós que avançamos de colônia à monarquia até chegar à República, já passamos por tanta coisa: “libertação”, eleições restritas, ditaduras, golpes, ditaduras, eleições amplas, democracia, golpe, de-mo-o-quê?, a “invasão” de Portugal por brasileiros que fugiram desse estado de coisas dos últimos quatro anos. Não sei se assisti aos mais impactantes espetáculos portugueses. Mas muitas redes foram trançadas, vi de longe.

Farei um passeio pelos espetáculos que acompanhei desse evento produzido pelo Sesc São Paulo, por ordem das peças que assisti, mas isso pode mudar ao longo do caminho. 

As atrizes Mayra Homar e Maiamar Abrodos estão no espetáculo La Mujer que Soy. Foto: Divulgação

La Mujer que soy, Teatro Bombón

O saguão do histórico Atlântico Hotel, situado defronte do mar de Santos ficou animado para as apresentações da peça La Mujer que Soy, uma produção do festival argentino Teatro Bombón, de Buenos Aires, Argentina, que se tornou o xodó do Mirada, com todas as sessões lotadas.  O número reduzido de espectadores, o local fora do teatro (a peça foi criada para ocorrer em site specific), a simultaneidade da encenação em dois apartamentos exibindo duas perspectivas da mesma história, talvez, tenham sido o chamariz.

As surpresas positivas ainda são maiores no jogo cênico. Escolhi começar pelo lado B, Martha’s, um apê sóbrio, que traduz o estilo de vida da moradora. Num pequeno espaço, com cerca de 30 espectadores “muito unidos”, a personagem Cecilia, a filha (Mayra Homar) chega com a namorada (Daniela Pal) na casa de Marta, a mãe (Silvia Villazur), para passar uma temporada. Marta, e a plateia, suspeitam que a namorada é uma tremenda aproveitadora, disposta a dar uns golpes enquanto faz declarações de amor.

No lado A, Mercedes’, um apê vibrante, de temática queer; Marta tenta reconquistar o carinho do ex-marido, a travesti Mercedes que fez a transição de gênero após o divórcio, vivida pela atriz transexual Maiamar Abrodos. É inspiradora como é conduzida na peça uma relação amorosa entre uma mulher trans e outra cisgênero, sem conotações estranhas ou discriminatórias: um exercício amoroso no fluxo de vida. 

É uma história de gente comum, às voltas com seus dramas ordinários, movida pela busca de felicidade, contada de forma emotiva e com uma proximidade desconcertante. A dramaturgia e direção de Nelson Valente equalizam as tensões com maestria.

Para mim se destacam nesta montagem as corpas insubmissas aos padrões de beleza, a bulir de desejo e que vão à luta para conquistar o que querem.

La Mujer que Soy me ganhou pelas interpretações fortes, com intensidade e entrega e vibração específica, marcadas de uma jeita argentina de ser, algo que vai do estridente à delicadeza. E como destaque dessa cena, a atuação de Silvia Villazur com sua presença intensa, com capacidade de dizer muito com um levantar de sobrancelhas ou um pequeno gesto com a cabeça. Fez o coração do público pulsar em suas mãos.

Essa lente de aumento para uma determinada realidade que o Teatro Bombón propõe é super interessante. Criado em 2014 enquanto festival de arte site-specific de obras curtas, o programa já chegou a dez edições, com mais de  60 obras originais de teatro, dança e performance. Com curadoria de Monina Bonelli, Cristian Scotton e Sol Salinas, o Teatro Bombón ativa o sentido comunitário do fazer teatral, que, ao que parece, tem resultados excelentes de reconexão humana.

A Produção no Brasil é assinada pela OFF Produções Culturais, com André Cajaiba, Celso Curi, Heloisa Andersen e Wesley Kawaai.

La Mujer que Soy foi um dos melhores momentos do meu percurso neste sexto Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas do Sesc, o Mirada 2022.

Orgia, Pasolini, montagem portuguesa com direção de Nuno M Cardoso. Foto: Raquel Balsa / Divulgação

ORGIA, PASOLINI Teatro Nacional 21 

Há uma radicalidade na encenação de Orgia, Pasolini, do diretor português Nuno M Cardoso, que não é fácil de entrar, ou de ficar. A densidade do texto exige muita atenção e disponibilidade da plateia. A ação cênica é rara, quase ausente. Os elementos da encenação são reduzidos. O diretor já disse que se espera que plateia ouça mais que veja.

O palco se transforma em altar sacrificial, um círculo de muitas toneladas de argila preta onde os atores se confundem com o material – uma instalação da artista Ivana Sehic. Um território enlameado combina violência, culpa e obsessão. Mas não é uma história pornográfica ou erotizada. O figurino negro, a luz baixa, os elementos são combinados para saturar o trajeto noturno.

Orgia ocorre num domingo de Páscoa. Um homem já morto vai ao teatro contar sobre os momentos finais da sua vida e elucidar o motivo do suicídio. Uma voz póstuma, entre narrador e protagonista a “rebobinar a existência”. Ele e uma mulher buscam se entregar aos prazeres sadomasoquistas, mas a moral hipócrita da sociedade produz a esquizofrenia, que pressiona a mulher a se suicidar. O homem vai atrás de outra parceira, mas ele se suicida.,

Teatro da palavra, protagonismo da palavra, Orgia é reflexão densa, profunda sobre Eros e Tânatos. É arma contra o pensamento precário destes tempos.

A peça adentra pelos rituais de continuidade em repetição. As figuras são ideias a serem ouvidas durante uma hora e meia. Três intérpretes (Albano Jerónimo, Beatriz Batarda e Marina Leonardo) se deslocam no palco. Albano Jerónimo e Beatriz Batarda lutam, sem fúria. Os movimentos são contidos, a velocidade é lenta. Mas a palavra fere.

Festa de inauguração, do Teatro do Concreto, com direção de Francis Wilker Foto: Diego Bresani

Festa de inauguração  – Teatro do concreto

A história é uma construção, com predominância das narrativas dos vencedores, ou seja, da elite, é o que performa o Teatro do Concreto na sua Festa de inauguração, apresentada na Casa da Frontaria Azulejada. Mas de vez em quando os subalternos driblam essa regra. A peça foi inspirada numa reforma por infiltração no teto do Salão Verde do Congresso Nacional, em 2011. Foram encontradas no local mensagens (para o futuro) escritas a lápis, nas paredes que ficam entre o forro e a laje, pelos operários que construíram o prédio em 1959.

Entre os registros, o de José Silva Guerra, datado de 22 de abril: “Que os homens de amanhã que aqui vierem tenham compaixão dos nossos filhos e que a lei se cumpra”.

O espetáculo, com Gleide Firmino, Micheli Santini, Adilson Diaz e Diego Borges, trabalha o ciclo constante da humanidade de construção-destruição-construção para irradiar com humor corrosivo, às vezes com melancolia, ou até faíscas de esperança, a relação entre o público e o privado, o que de público é realmente usufruído pelo coletivo e o confisco da coisa pública por alguns privados.  

A dramaturgia de João Turchi e a direção de Francis Wilker manejam em quadros performativos os conteúdos soterrados que emergem em algum apontamento da história pela ação artística.

A plateia participa ativamente dos momentos de quebrar e do ajuste de compor os destroços para a próxima sessão. Há algo de esperançar nesse performar ruínas.

Uma alegria assistir a essa montagem em que o microfone da peça e a coroa do príncipe de Shakespeare são revezados pelos atores. Um Hamlet inesquecível. Foto: Divulgação

Levar ao palco uma visão de mundo revigorada por jovens e adultos com Síndrome de Down foi o que o grupo peruano Teatro La Plaza fez no espetáculo Hamlet. A experiência dessas pessoas preenche algumas lacunas da máquina da ficção e desloca outras brechas para criar diferentes percursos para o clássico de William Shakespeare.

Sem pudores nem autocomplacência, a turma segue e subverte as pulsações do príncipe da Dinamarca, potencializa Ofelia, cria outras armadilhas para Claudio. Ao falar direto com a plateia sobre a condição deles, algum tipo de comprometimento intelectual ou dificuldade motora, o elenco revela sobre a singularidade de cada artista, de forma engraçada e apaixonante. E mais, o elenco reafirma como é difícil e prazeroso fazer teatro.

Com irreverência, originalidade e eco pop, a montagem – assinada pela peruana Chela De Ferrari com dramaturgismo com Claudia Tangoa, Jonathan Oliveros e Luis Alberto León –  propõe algumas subversões. Dificuldades de fala e linguagem, problemas de habilidades sensoriais e perceptivas são levantados para apontar que nosotros / nosotras temos algo quebrado, insuficiente, qualquer um e como é difícil reconhecer.

Ao combater o preconceito e a discriminação com uma onda elétrica de humanidade, pela via do teatro, os artistas do La Plaza sinalizam para quem quiser ver e ouvir que como é baixa nossa vã filosofia sobre normalidade e arte.

Vida longa à ColetivA Ocupação, de São Paulo e a sua Erupção – O levante ainda não terminou, que estreou no Mirada. Foto: Divulgação

Erupção – O levante ainda não terminou

Estreia disputada do espetáculo Erupção – O levante ainda não terminouda ColetivA Ocupação, de São Paulo, com direção de Martha Kiss Perrone.  A montagem foi gestada da indagação: “O que é o fim do mundo para mundos que já terminaram há muito tempo?”. A existência é luta no trabalho desses jovens artistas que carregam a cena de revolução, festa, guerra, subversão no tempo espiralado entre passado e futuro, numa perspectiva decolonial. As corpas cis e trans fervem e desse calor são traçadas coreografias, experimentados breves virtuosismos da dança urbana, numa insubordinação da Terra que borbulha e gente se revolta.

Há uma mistura de bruxaria negra, levante dos Malês, Revolução de São Domingos e uma energia concentrada de que a guerra é contra todos aqueles que os querem matar, fisicamente, intelectualmente, psicologicamente, e de outros jeitos.    

A coletivA é feita por jovens artistas que buscam o protagonismo de suas histórias com sede de liberdade.  Erupção – O levante ainda não terminou é a segunda peça da companhia que chegou chegando com Quando Quebra Queima (2017), erguida nas ocupações de escolas públicas em São Paulo.

A presença quente dessas garotas e desses garotos nesta segunda peça da ColetivA Ocupação projeta-se vibrante e utópica. Em Quando quebra queima, o elenco transpirava arte com um jeito meio desengonçado das corpas desequilibradamente de adolescentes em  crescimento, aquela fase de transição em que há desajustes de domínio. Em Erupção – O levante ainda não terminou, a trupe chega com carga total de hormônios. E ainda destreza das corpas, ousadia e uma beleza coletiva contagiante, numa mostra de que a vida que importa é poesia, e essa poética se traduz em revolução. A montagem cruza temas como colonialidade, questões ambientais, genocídios e antirracismo. Vida longa e força na luta para a ColetivA Ocupação, de São Paulo e seu espetáculo Erupção – O levante ainda não terminou. Evoé!!!

Tijuana, com o ator Lázaro Gabino Rodríguez. Foto: Divulgação

A crise de representatividade como questão da política, e do teatro, é tensionada pelo coletivo mexicano Lagartijas Tiradas ao Sol, no espetáculo Tijuana. Nele, o ator Lázaro Gabino Rodríguez conta e performa sua experiência quando adotou / inventou a identidade, por quase seis meses, de Santiago Ramírez, um cidadão que vai morar em Tijuana (Baja California, na fronteira com os Estados Unidos), para ganhar um salário-mínimo numa fábrica.

Com essa experiência, o artista buscou explorar as possibilidades de representação. “Viver” a vida de outra pessoa, isso seria atuar? Essa é uma pergunta constante no trabalho.

Santiago Ramirez “escolheu” morar numa das regiões mais pobres da cidade, onde alugou um quarto numa casa de família.

Gabino Rodriguez é um ator com bom trânsito no circuito dos festivais internacionais. Em Tijuana ele expõe seus arquivos de texto e vídeo, narra o que passou e embaralha o status de verdade. A família que lhe alugou o quarto aceita tão plenamente o disfarce como real que Ramirez é agregado nos almoços de domingo.

O intérprete viveu esse tempo apartado do seu mundo de classe média e mergulhou na dureza da vida operária. Não atingiu os seis meses com 3,5€ euros por dia, desafio que tinha se proposto. Pesaram as dores nas costas, o medo de ser desmascarado e agredido por não ser quem dizia ser até a morte, a pressão do bairro, a falta de água quente. A rotina massacrante comprometeu, aos poucos, sua condição emocional.

Essa dramaturgia baseada em práticas dos teatros do real, documentário e performativo desloca a percepção do espectador. Os procedimentos do real e do ficcional são borrados durante a encenação provocando desequilíbrios constantes na apreensão cognitiva e percepção sensorial do espectador. 

A peça integra um ousado projeto chamado La Democracia in Mexico e prevê a criação de uma série de espetáculos na intenção de conjeturar acerca da realidade mexicana e suas contradições.

Fuck me, espetáculo de Marina Otero com cinco bailarinos. Foto: Divulgação

A argentina Marina Otero realmente me desconcertou com seu com Fuck me. Saí atordoada do espetáculo, sem saber o que pensar nos primeiros momentos. Sotero aparece em cena andando com dificuldade e convence que se arrebentou na lida da dança radical, nos traumas e tombos, nas quedas de quebrar ossos.  Mas em Fuck me, a fraqueza é apenas uma máscara da bailarina imponente.

A artista levou seu corpo ao limite humano em prol de seus projetos. Esse equipamento de carne-nervos-sangue-ossos submetido a tantos choques e aberturas aparece danificado na cena. Prejudicada com seu instrumento de trabalho, ela convoca cinco bailarinos, belos, musculosos e dispostos a tomar o lugar de sacrifício para substituí-la na cena, na derradeira parte de um autorretrato criado por Otero.

São cinco Pablos, nome escolhido pela dançarina e coreógrafa argentina, entregues à causa narcisista de Marina Otero. Cada um deles narra um pedaço da trajetória dela. Marina dança desde a infância. É uma obsessão desde lá. E ela revela mais de sua vida, a filha de pai militar, e a repercussão da trajetória da ditadura que devastou seu país, a misoginia e o machismo de homens com os quais se envolveu. A violência que sempre atravessou seu corpo.

Marina é convincente e os arquivos de sua vida pregressa comprovam as manobras corporais feitas pela artista, que beiram a autodestruição, alguns espetáculos, suas memórias familiares e os registros do hospital que dão testemunho de sua espinha estragada. O sofrimento, a operação, a dança que cai.

Foi numa cama de hospital que ela concebeu essa última parte da série auto fictícia Recordar para Vivir, iniciada em 2012 com Andrea, seguida em 2014 com Recordar 30 Años para Vivir 65 Minutos. Ela lembra uma Frida Kahlo do século 21, às voltas em expressar com arte suas dores de corpo quebrado, de ser ela própria arte apesar de toda ruína. É impactante, desafiador.

Essa peça-catarse remete para qualquer coisa de amodovariana na exposição desses destroços, desses elementos que a artista leva para o palco, da criação feita enquanto se recuperava de uma grave lesão na coluna, ocorrida em 2019. O acidente a deixou sem caminhar, dançar e trepar, que em sua prática está tudo relacionado.

Marina embaralha os tempos presente e passado. Mesmo quando se apresenta como uma velhinha com limitações motoras, ela se mostra altiva a exigir de seus bailarinos uma doação máxima. Sem poder dançar, ela passa para eles a missão de executar movimentos ousados, extravagantes, numa multiplicação dela mesma.

Essa peça arrebatadora atiça nas suas camadas os efeitos do passar do tempo. Traz um desempenho deslumbrante dos bailarinos Augusto Chiappe, Cristian Vega, Fred Raposo, Matías Rebossio, Miguel Valdivieso. É possível lembrar da autoflagelação de Angelica Liddell. Mas Marina Otero tem um percurso todo seu, deslumbrante na oscilação do tragicômico. E acima de tudo admirável e imprevisível em sua cena final.  

Cuando Pases Sobre Mi Tumba, com dramaturgia e direção de Sergio Blanco. Foto: Divulgação

“A verdade também se inventa”,  é uma frase do espetáculo Tijuuana, do coletivo mexicano Lagartijas Tiradas ao Sol, mas que cabe muito bem em outras peças.

As pistas falsas traçam os fios no jogo da autoficção do dramaturgo franco-uruguaio Sérgio Blanco na peça Cuando pases sobre mi tumba. Mais uma vez ele narra sua própria morte de forma fictícia e nesta montagem Blanco é interpretado por Sebastián Serantes. Ele decide morrer e para isso recorre ao suicídio assistido, em uma clínica em Genebra, na Suíça. Faz uma consulta com o Dr. Godwin (Gustavo Saffores). O último desejo de Sergio é que seu corpo, depois de enterrado, seja violado por um jovem necrófilo iraniano (Felipe Ipar).

Blanco faz uma autópsia do desejo de poder decidir sobre o término da existência. E explica na encenação a diferença entre a morte assistida e a eutanásia. O tema é tabu e quem já viu alguma coisa da trajetória do artista prossegue encantada com sua capacidade de criar tramas tão inventivas, que não sabemos o que é real e o que não.

 Blanco, que assina o texto e a direção, tem um estilo único de misturar elementos, de ajustar a progressão dramática, mexer com  gráficos projetados, utilizar intervenções musicais, manejar com precisão drama pesado com momentos engraçados. 

A encenação é dinâmica e encantadora, intensa e maneja bem as emoções. Blanco é expert em manter a plateia entusiasmada por suas histórias.

La Luna en El Amazonas, do Mapa Teatro, da Colômbia. Foto: Rolf Abderhalden / Divulgação

La Luna en el Amazonas – Mapa Teatro

Mas é preciso apressar o passo desse passeio. E serei mais suscita nas próximas paragens. Espero.

O espetáculo La Luna en el Amazonas, dirigido pelos irmãos Heidi Abderhalden e Rolf Abderhalden, do grupo Mapa Teatro, de Bogotá, faz conexões da realidade atual com episódio do século 19, sobre uma comunidade indígena que se isolou em virtude da violenta invasão ao seu território na Amazônia colombiana.

O espetáculo faz referências ao filme Memória (2021), do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul, gravado na Colômbia e com atuação de dois atores da peça.

Para erguer a montagem eles fizeram uma cuidadosa pesquisa cruzando textos  científicos e ficcionais, articulando potente material visual, sons eletrônicos e música ao vivo e o resultado é uma enxurrada de imagens, arranjadas em variadas velocidades e combinações que se assemelha a uma viagem lisérgica.

 São muito graves denúncias de destruição, assassinatos, apropriações que o grupo faz com no espetáculo. A trupe fala em resistência poética das áreas da floresta contra uma possível nova colonização. Mas não consegui abraçar em plenitude o excesso de informações, imagens, jogos visuais e gráficos, dramaturgia desse quase-manifesto.

Brasa, de Tiago Cadete. Foto: Bruno Simão / Divulgação

Brasa – Tiago Cadete/Co-Pacabana

Séculos se passaram desde a chegada dos portugueses ao que hoje chamamos de Brasil. Depois disso, sabemos agora com mais consciência (torço), vieram a colonização, evangelização forçada, escravização dos povos originários e dos trazidos forçosamente da África, tudo isso realizado com muita violência e incalculável número de mortos. Tiago Cadete é um criador lusófono que investiga os impactos desses processos e as relações entre Brasil e Portugal atualmente.

Brasa, de Cadete examina essas negociações atuais desse ato de cruzar os oceanos de antigos colonizadores e colonizados, agora motivado por outras ordens e o aumento das migrações de brasileiros para Portugal.

O próprio Tiago Cadete vivenciou esse trânsito entre entre Lisboa e Rio de Janeiro nos últimos oito anos. Artista performativo e visual, o português veio ao Brasil para cursar pós-graduação na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ao lado de cocriadores migrantes dos dois países – Isabél Zuaa, Julia Salem, Keli Freitas, Magnum Alexandre Soares, Ana Lobato, Dori Nigro, Gustavo Ciríaco e Raquel André -, Cadete constrói sua Brasa de crítica histórica.

Na peça ele expõe atritos de percepções e convergências e tenta aprofundar a análise em algumas perspectivas. Leva à cena com doses de humor a “Carta do Achamento do Brasil”, do Pero Vaz Caminha, desdobrada em outras sequências em que são exploradas questões de xenofobia e ações antidemocráticas de vários tipos, em graus ampliados.

A plateia é alojada em um dos dois espaços cenográficos e acompanha imagens de uma floresta em chamas, dança das caveiras, referências ao futebol, à língua, aos sentimentos  para fazer arder um pensamento crítico sem subserviência.  

Discurso de Promocion, com o Grupo Yuyachkani. Foto:Musuk Nolte / Divulgação

Discurso de Promocion, com o Grupo Yuyachkani. Foto:Musuk Nolte / Divulgação

Discurso de Promocion – Grupo Yuyachkani

O grupo peruano Yuyachkani explora uma linha memorialística em seus trabalhos e em Discurso de promoción (Festa de formatura) passa em cena o bicentenário da Independência do Peru, agenciando criticamente as heranças coloniais. Existe uma exuberância na cena que beira o caótico e o exagero para apresentar vários períodos históricos e a crítica a esses momentos. A trupe teatral nascida em 1971 tem uma importância indiscutível para o mapa das artes do seu país, tanto por sua atuação coletiva quanto pelas escolhas políticas, das teatralidades peruanas e das tradições indígenas.

O Yuyachkani utiliza nas suas obras arquivo documental, fotografia, instalação, dança e jogo, valorização do corpo no espaço e ativismo cidadão, como eles chamam. Sob a direção de Miguel Rubio Zapata, Discurso de promoción tem de tudo isso um pouco, de forma muito intensa. Entre ações performativas, envolvendo cultura popular e dispositivos do teatro documentário são mais de duas horas.

Apresentado no Herval 33, uma espécie de grande galpão em Santos, a ação se deslocava no espaço cênico e o público precisava acompanhar as andanças, ora sentando-se no chão, ora ficando em pé, o que provocou um cansaço desnecessário. Há de ter outras soluções menos incômodas para a fruição do espetáculo.

A encenação passa por vários estados – do festivo ao fúnebre – e começa com uma espécie de quermesse em que estudantes com um civismo cego exaltam o bicentenário da independência e com apresentações amadoras buscam arrecadar dinheiro para a formatura da turma, que será comemorada com uma excursão a Machu Picchu, cidade edificada pelos incas.

O segundo ato dá uma guinada para a revisão crítica dos heróis oficiais e de outras representações históricas. São muitos dados específicos da contestação dos atos emancipatórios e da ocupação dos espaços de libertação por homens brancos com algum destaque político ou religioso e a representação secundária do povo. É extremamente louvável essa crítica e autocritica no trato da história. Mas há dificuldade de recepção para a cena, principalmente para quem não é do país do Yuyachkani.

Fronte[i]ra |Fracas[s]o, parceria do Teatro de Los Andes e Clowns de Shakespeare Foto: Rafael Telles  / Divulgação

Fronte[i]ra |Fracas[s]o – Teatro de Los Andes e Clowns de Shakespeare

Da parceria de duas importantes trupes cênicas de pesquisa, o Teatro de Los Andes, de Yotala, na Bolívia, com os brasileiros do Clowns de Shakespeare, de Natal (RN), nasceu o trabalho cênico Fronte[i]ra |Fracas[s]o, que começou a ser gestado no ambiente digital.

Parece-me um espetáculo com muito caminho pela frente, de reajustes dos procedimentos escolhidos. Na primeira parte, no pátio do espaço Arcos do Valongo, os atores expõem o processo criativo das trupes, dividindo a plateia em grupos menores para escutar as histórias das pesquisas de campo nas cidades de Brasiléia, no Acre, e Cobija, no Departamento de Pando, na Bolívia.

O procedimento dos pequenos deslocamentos no local, até a ação de pular corda mostrou-se como muito esforço para pouca fruição.

No segundo momento é apresentada uma fábula que orbita em torno do prenúncio da divisão territorial de um vilarejo fictício. Com presenças mornas no palco e um cansaço evidente por toda a luta empreendida, o espetáculo não empolgou na apresentação de estreia no Mirada.

Todo e qualquer revés registrado na cena, na minha opinião, é reflexo das garras insaciáveis do capitalismo. As nefastas ações (ou desações) de políticas culturais que vêm tentando sufocar os artistas, no Brasil e em outros países, tem repercussões no corpo individual e no corpo de cada conjunto.

Na encenação, o elenco fala que outros atores e atrizes foram embora, largaram os grupos, ou até mesmo deixaram (espero que momentaneamente) o teatro para conseguirem sobreviver em outra função. Isso é muito grave e além das questões políticas dos territórios, o que me chamou mais atenção foram esses relatos diluídos em meio à fábula. A sobrevivência dos artistas, a integridade de seus grupos, é uma questão urgente a se pensar.

Dragón, de Guillermo Calderón. Foto: Eugenia Paz / Divulgação

Dragón, do dramaturgo chileno Guillermo Calderón leva para a cena uma crise artística. Enquanto articula o próximo projeto, o coletivo teatral Dragón – que se reúne periodicamente no restaurante Plaza Italia, na região central de Santiago – vê emergir um conflito interno incontornável entre seus integrantes. Eles tinham elegido o tema da traição e o motivo se transforma em contexto. Qual a posição da arte nas batalhas políticas?

O historiador negro Walter Rodney (1942-1980), da Guiana, um panafricanista, e ativista político, morto vítima de atentado à bomba, em 1980, aos 38 anos, é uma das inspirações da dramaturgia. Ele é citado nas conversas do coletivo. As técnicas do teatro do oprimido, mais especificamente a do teatro invisível, do diretor Augusto Boal (1931-2009) estão entre as referências como método de ação.  

Falso e verdadeiro em tempos de fake News.

A peça propõe um debate ético sobre o que artistas podem apresentar e quem eles podem representar e de que forma. A maneira, a inflexão, acentuação, modulação. Configura-se que o grupo cai na própria armadilha. Ao deixar o Chile e escolher a América Latina como cenário, na sessão que vi no Mirada o grupo adota o Brasil como território das suas referências. Não foi bom, não.

Calderón já havia dito em alguma entrevista sobre Dragón que procurou “um novo sentido de humor, uma renovada ideia de comédia”.

O tom das referências ao Brasil – de deboche e de escárnio – faz perguntar até onde pode ir um artista ao formular enunciados ou tomar o lugar da representação. Em uma cena, alguém do elenco utiliza uma peruca para falar de cotas para negros no Brasil. Isso foi incendiário.   

Com racismo entranhado nas estruturas deste país, me parece que Calderón não tinha o direito de fazer esse tratamento. Com o Brasil tingido de sangue principalmente dos negros e uma situação política deplorável, é inaceitável determinadas alusões.

Para fazer uma exposição das contradições latentes o autor precisaria ter mais propriedade de fala. O humor ácido não é um salvo-conduto para enfiar um país nas suas experimentações.

O breve e acalorado debate que se seguiu à apresentação no Mirada trouxe a tona a indignação de parte da plateia com os procedimentos levados ao palco, que chegaram como zombaria, escárnio. Ou uma atitude tão arrogante de um artista que mostrou desprezo, desconsideração ou insensibilidade com as linhas tênues do que é possível performar e representar na casa alheia.   

Ou, como diz Pollyanna Diniz, a peça reproduz no palco o que a gente condena na arte. Dragón explicita (e é) uma arte branca, falsamente engajada, que não sabe se posicionar de modo efetivo, mas faz barulho. A cena conduz a crítica a partir da reprodução do modelo criticado. E o traído é o espectador. Será que para criticar o modo como fazemos arte precisamos insistir nos mesmos moldes? Vamos tentar ampliar para problematizar as escolhas: será que, para criticar o machismo, é necessário reproduzir o machismo em cena? Para criticar uma violência, é preciso reproduzir violência? Neste caso, o espectador é o traído, aquele que encontrou no palco uma dramaturgia, entendida de modo ampliado, que apenas reitera o que critica.

Cosmos, Cleo Diára, Isabél Zuaa, Nádia Yracema. Foto: Divulgação

Cosmos – Cleo Diára, Isabél Zuaa, Nádia Yracema

Dois momentos do espetáculo Cosmos ficaram acesos na memória, a da vibração do corpo coletivo, da grandeza para fazer a revolução, com potência para inventar novos mundos.

A jornada interplanetária de Cosmos, das artistas Cleo Diára, Isabél Zuaa, Nádia Yracema e elenco é feita de feixes de luz para transportar personagens entre guerras, atravessar fome e pandemia, enfrentar o capitalismo selvagem e o racismo e seguir em busca de liberdade.

A peça fala de criação de um novo mundo, mas que existem outros antecedentes. As artistas de linhagens cabo-verdiana, angolana e portuguesa buscam na mitologia africana e no afrofuturismo as sustentações do espetáculo.

Desse trajeto pelo Mirada, os sinais emanados do palco que chegam é que as democracias estão sempre em risco. É disso que o teatro está falando. Que o mundo é / está desumano, nós já sabemos. Mas mesmo com todo o histórico de colonização, golpes de estado, e violência há sempre injeções de ânimos na veia política, como propõe Erupção e da poética como investe Hamlet. Até o próximo festival Mirada!

  • A jornalista e crítica Ivana Moura viajou a convite da organização do Mirada 2022 – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas e do Sesc São Paulo
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