Arquivo da tag: Corpo Rastreado

É urgente a amazonização dos mundos
Crítica do espetáculo Altamira 2042

Gabriela Carneiro da Cunha em Altamira 2042. Foto: Nereu Jr / Divulgação

Ouvimos a voz do rio ou de quem tem intimidade com suas bordas. Se o rio está ferido, as vozes protestam para que o mundo entenda a situação. A Floresta Amazônica está em cólera. Mas antes da explosão furiosa somos convidados a escutar suas nuances na perspectiva de vibrar com o corpo todo no tempo espiralado da instalação imersiva Altamira 2042, da artista performática e pesquisadora brasileira Gabriela Carneiro da Cunha.

Nas palavras da artista, essa peça projeta uma guerra entre dois mundos: um mundo que insiste em práticas coloniais de desenvolvimento e progresso para poucos, em detrimento de todas as outras existências.

A performance tensiona os efeitos da construção da hidrelétrica de Belo Monte, terceira maior barragem fluvial do mundo, que desviou o curso do rio Xingu, devastou flora e fauna e abalou a vida de milhares de pessoas, forçadas a se deslocar para longe do rio.

Uma paisagem sonora, de articulações humanas e não humanas, carregada do balanço das águas e das árvores, expressões dos animais, cantos de pássaros e insetos, murmúrio de ventos e da chuva, nos transporta para a Natureza.

Essa experiência sensorial, que não é de apaziguamento, é seguida por ruídos mais duros e pesados de motosserras e outros equipamentos de construção / destruição. O maquinário de multinacionais poderosas, grandes empresários e exploradores de recursos e pessoas do município de Altamira, no Pará, são projetados em seus efeitos devastadores contra populações marginalizadas.

Os depoimentos e sons ambientes engenhosamente entrelaçados criam camadas dessa dramaturgia, que valoriza o pensamento, as expressões de fala e texturas de habitantes ribeirinhos e indígenas, ambientalistas, artistas, etc, em vídeos projetados ou áudios. Os fluxos e refluxos do rio são acionados de pen drives e caixas de som que piscam suas luzes coloridas (muito utilizadas nas festas de aparelhagem da região paraense).

Foto Nereu Jr

Rio ou Rua?, pergunta a artista a algumas pessoas do público, antes do espetáculo começar. Essas cúmplices ocasionais são convocadas a lidar com caixas de som ou empunhar o cinzel em algum momento.

Cobras de neon no chão observam outros movimentos. Dona Herondina, a narradora, empresta narrativas para a composição cibernética. Dona Raimunda Gomes da Silva, trabalhadora rural e liderança militante das margens do Xingu (que foi despejada com a família pela construtora da barragem), recupera com sua voz mitos amazônicos, como o da mulher-cobra,

A artista assume o espírito do rio, o espírito das águas. Uma mulher-serpente fértil e guerreira nascida de mitos ancestrais. A peça opera uma conjunção entre a sabedoria dos povos tradicionais, o saber orgânico de que trata Nego Bispo, e a tecnologia.

A peça pulsa do desejo das pessoas da região irmanadas com a floresta de que a represa deixe de existir e que o rio volte a correr. 

Foto: Nereu Jr

Altamira 2042 se ergueu como dispositivo que pensa e questiona os mecanismos ecogeopolíticos do real. Um trabalho que diagnostica o Antropoceno e assume, enquanto arte, um posicionamento de subverter esses tempos.

Uma performance sintonizada com o apelo para uma “amazonização” do mundo.

No Manifesto da Amazônia Centro do Mundo, cujo objetivo é salvar a floresta e lutar contra a extinção das vidas no planeta, lemos:

Na época da emergência climática, a Amazônia é o centro do mundo. Sem manter a maior floresta tropical do planeta viva, não há como controlar o superaquecimento global. Ao transpirar, a floresta lança 20 trilhões de litros de água na atmosfera a cada 24 horas. A floresta cria rios voadores sobre as nossas cabeças maiores do que o Amazonas. O suor da floresta salva o planeta todos os dias. Mas esta floresta está sendo destruída aceleradamente pelo desenvolvimento predatório e corre o risco de alcançar o ponto de não retorno em alguns anos.

Gabriela Carneiro da Cunha em entrevista diz que a “amazonização dos mundos é uma poderosa máquina de guerra anticapitalista, mas uma guerra no sentido ameríndio do termo, ou seja, uma guerra que promove a vida, ao contrário da ideia ocidental de massacre, que não traz mais do que morte”.

O trabalho faz parte do projeto de pesquisa artística Margens – Sobre Rios, Crocodilos e Vaga-lumes, que visibiliza desastres ecológicos e humanos. A teia de Altamira 2042 foi construída em sete anos de muitas travessias da artista para acolher os testemunhos de gente vinculada ao rio Xingu, um dos principais afluentes do Rio Amazonas, afetados pela catástrofe movida pela hidrelétrica de Belo Monte.

Cena Expandida

Raimunda é uma pensadora ribeirinha do Xingu, que sente a pulsação do rio, da terra, dos elementos da natureza. Ela sabe que não estamos todos no mesmo barco. E que os que mais destruíram são os menos afetados. Com a autoridade dos sábios, ela fala de transmutação, processos em constantes movimentos, possibilidades.

A cena expandida, como as conversas após o espetáculo com a participação de operadores do saber orgânico, articula a construção de novos regimes de percepção. As apresentações em Paris, realizadas de 15 a 18 de março, no Centre Pompidou, ganharam com a presença de Raimunda uma força inestimável de testemunho que colabora com os desafios artísticos do presente frente à crise do Antropoceno.

Ativismo, pensamento contracolonial, feminismo. A conjugação de arte e da vida potencializa o papel da arte como lugar privilegiado para tencionar posições nos embates políticos.

Ficha técnica:
Altamira 2042
Conceito e direção: Gabriela Carneiro da Cunha
Diálogos artísticos: Cibele Forjaz, Dinah De Oliveira e Sonia Sobral
Assistentes de direção João Marcelo Iglesias, Clara Mor e Jimmy Wong
Edição de vídeo: João Marcelo Iglesias, Rafael Frazão e Gabriela Carneiro da Cunha
Som: Felipe Storino e Bruno Carneiro
Figurino: Carla Ferraz
Luzes: Cibele Forjaz
Images: Eryk Rocha, João Marcelo Iglesias, Clara Mor e Cibele Forjaz
Foto: Nereu Jr.

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , , , , , ,

Brutalidade como espelho do real
Crítica do espetáculo Tom na Fazenda

Tom na Fazenda na temporada no Théatre Paris-Vilette. Foto: Reprodução do Facebook

Há 15 dias, mais ou menos, Tom “passeia” na minha cabeça. Vou à Biblioteca da Sorbonne Nouvelle (BSN) e ele está lá. Ao supermercado, e ele dá pitaco nas compras. Vou à Sukyo Mahikari (centro de treinamento e elevação espiritual) e ele me espera na porta (não quis subir para receber o okyome [energia positiva]). No Centre Pompidou, ele aplaudiu ao meu lado à performance de Gabriela Carneiro da Cunha em Altamira 2042. Ficou cabreiro na sequência com o debate e inquieto quando Maïra Aggi (artista-pesquisadora brasileira) deu “um chega para lá” no homem cis branco (sempre no comando) que não estava vertendo muito bem as palavras do português para o francês da artista, trabalhadora rural e liderança militante das margens do Xingu Raimunda Gomes da Silva (uma das inspirações de Altamira 2042), e tomou para si a tradução. Vimos juntos, Tom, a nota de cancelamento da sessão de La Mort de Danton afixada na porta da Comédie Française, num dia de greve. Da janela do quarto, viajamos com o vai e vem do metrô da linha 6.

Falei sobre você, Tom, com o Mateus Furlanetto, brasileiro que mora na Alemanha e é tão apaixonado por teatro quanto eu. Ele veio de Berlim só para te ver de novo e confirmar o seu apreço. 

Paris é linda, mas Macron não está facilitando! Tom concorda comigo, pois encontramos bibliotecas fechadas, muito lixo nas ruas e transportes públicos perturbados em razão dos movimentos sociais contra a reforma da aposentadoria, que o governo insiste e os trabalhadores não aceitam. O mês de março se foi. Admiramos, ou nem tanto, les giboulées de mars (chuva forte repentina, geralmente curta, muitas vezes acompanhada de granizo).

Mas Tom, o que eu posso dizer ainda sobre a peça? Nesses seis anos que o espetáculo Tom na Fazenda segue pulsando já colheu as melhores críticas no Brasil, no Canadá e agora em Paris. Já recebeu os mais efusivos aplausos.

Gustavo Rodrigues e Armando Babaioff: tour de force interpretativo. Foto: Victor Novaes / Divulgação

A temporada de Tom na Fazenda no Théâtre Paris-Vilette ficou lotada por três semanas e prorrogada em mais três apresentações até 5 de abril. É a primeira produção latino-americana que ocupa esse palco. A peça foi ovacionada todas as noites, uma atitude pouco comum do público  francês.

Até agora, a produção não conseguiu patrocínio. Mas também não havia como. A peça estreou em 2017, ano seguinte ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff; e os desdobramentos foram terríveis. Além da censura às artes (praticamente uma perseguição) cresceram ou se instalaram movimentos xenofóbicos, genocídio em comunidades pobres e indígenas, desmatamento desenfreado, repressão das expressões “pagãs”, perseguições religiosas, homofobia.

Como pontuou o encenador Rodrigo Portella (em texto do livro Tom na fazenda, que integra a Coleção Dramaturgia da Editora Cobogó, publicado também na revista eletrônica Questão de Crítica – QdC ) , o contexto expõe “uma expressiva onda conservadora a se espalhar pelo mundo como reação às liberdades conquistadas na virada do século”.

Ativo há seis anos, o espetáculo se apresenta como uma célula acesa de resistência diante do desmonte que a cultura no Brasil viveu nos últimos quatro anos, na gestão bolsonarista. Ousada, a na produção Investiu na internacionalização e, por conta própria, participou do off do Festival de Avignon do ano passado. Terminou a sessão com convites para temporadas em alguns teatros europeus.

A homofobia é manifestada de forma truculenta na peça. Foto: Victor Novaes / Divulgação

Qual o risco de se assumir publicamente homossexual, bissexual, transsexual, LGBTQIA+ no Brasil? Na França? No Irã? Afeganistão? Catar? Somália? Nigéria? Ou numa fazenda distante? Ou seja, qual o perigo de ser o que se é? Em alguns lugares do mundo é crime, punido com pena de morte por decapitação, forca ou apedrejamento. Vamos mirar no Brasil, um país em que não existem penas de morte em leis escritas, mas que é apontado como um território violento e com maior número de assassinatos de pessoas dissidentes da norma cis-hétero-normativa no planeta. Os dados do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTQI+ (316, no dossiê de 2022) são alarmantes.

Em Tom na Fazenda, a homofobia é exercida de forma truculenta dentro da casa. A complexidade é traçada a partir da relação intima, quase familiar. Tom, do título, planejava prantear a memória do amante durante os ritos fúnebres na casa da família do falecido. Ao chegar, de imediato constata que é um desconhecido para a sogra Aghata (“ele nunca me falou de ti”) e uma ameaça para o que seu cunhado Francis considera honra.

Para evitar que sua mãe e a longínqua vizinhança do vilarejo saibam que o irmão mais novo da família era gay e mantinha um relacionamento amoroso com o forasteiro de roupas elegantes e hábitos finos, o rude Francis chantageia, ameaça e agride Tom, numa abordagem que faz uma mistura estranha de violência e sensualidade.

Numa pisada de guardião da heteronormatividade da família, Francis cometera no passado um crime contra um garoto de 16 anos que se dizia apaixonado por seu irmão gay. Ele é um único homem, mas não pode ser percebido como uma voz isolada. Ao tratar o tema da homofobia, a encenação fornece algumas chaves ao espectador para pensar sobre uma série de desrespeitos e violações contra o outro.

As atuações são um trunfo da montagem. Gustavo Rodrigues (Francis) e Soraya Ravenle (Aghata)… 

Armando Babaioff (Tom) e Camila Nhary (falsa namorada do morto). Foto: Victor Novaes

A história do espetáculo Tom na Fazenda se passa num ambiente deslocado do seu personagem-título. O dramaturgo canadense Michel Marc Bouchard em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo à época da estreia brasileira expõe suas razões para situar sua peça no meio rural. “Eu queria uma região em que as coisas acontecessem mais lentamente. Um lugar orgânico… Um espaço que portasse uma tensão, rodeado de julgamento. Essa fazenda desponta como um território onde todos os abusos e liberdades são possíveis”, acentuou Bouchard.

É um pressuposto da peça que os ambientes rurais são mais atrasados que os centros urbanos e as leis têm laços mais frágeis na punição de crimes. Essas informações pontilham o texto e um dos personagens avisa que seria bem fácil se livrar de um corpo junto ao “cemitério” de vacas, bois e outros animais.

O presente é insatisfatório, já atestava Ernst Bloch, filósofo alemão (1885 – 1977).  “Nem todos estão presentes no mesmo tempo presente”. A montagem situa essa recusa triste do tempo presente no chão brasileiro desses últimos quatro anos de Bolsonaro (o pior presidente que esse país já teve), em que se escorrega, em que crimes e desvios de conduta são encobertos por lama. A encenação realça um tempo ralentado, uma sensação de isolamento geográfico, com costumes e ideias conservadoras para marcar o local.

Traduzido, produzido e protagonizado pelo ator Armando Babaioff, que atua ao lado de Soraya Ravenle, Gustavo Rodrigues, Camila Nhary, com direção de Rodrigo Portella, a versão brasileira abre canais para leituras do Brasil no tempo histórico em que a peça foi gestada.

O não-direito ao luto aparece em meio a um teia de assuntos violentos. Foto: Victor Novaes / Divulgação

De um jovem homem foi roubado o direito à manifestação pública do luto por seu companheiro morto. Esse impedimento baseado na chantagem, ameaça e violência gera uma transformação no comportamento, perspectiva e visão de mundo do protagonista. Tom chega à fazenda vestindo um modelito de marca e termina a peça com roupas em farrapos e enlameadas.

Com uma dramaturgia engenhosa e ágil, a direção usa de dispositivos para valorizar o teatro, o jogo, o desenho coreográfico, as ações físicas, as não-respostas, as possibilidades de o espectador criar. Tom fala com o namorado morto (por WhatsApp), utiliza o discurso interior, ou conversa com os outros personagens e muitas vezes isso fica propositalmente embaralhado. Ou ainda executa ações que os outros personagens não enxergam – o gesto e o que está por trás do gesto.

Armando Babaioff imprime transformações fortes à personagem; Tom vai se revelando um ser mais frágil, por trás do bem-sucedido publicitário com tiques consumistas.

Agatha é tocante em sua dor, na ignorância ou fingimentos das coisas não-ditas. Agarrada em suas crenças, ela cita passagens da Bíblia. Quando se vê saturada com a cultura de mentiras, ela reconhece que o que lhe restou, entre os três homens da vida, foi o “pior”, o “bandido”.

A falsa namorada do irmão morto leva um frescor ao ambiente, mas desestabiliza a relação de “quase irmandade” entre os dois homens.

Dispositivos utilizados pela encenação permitem dúvidas sobre o que o protagonista fala ou age

A cenografia assinada por Aurora dos Campos utiliza poucos objetos. Uma lona preta coberta por barro – que, de quebra, produz sonoridades com a movimentação dos atores – sacos de areia, alguns baldes pretos. Na iluminação, Tomás Ribas investe numa lâmpada solitária pendurada no centro do palco, que reforça o clima de aridez. A trilha de Marcelo H. atiça tensões com suas paisagens sonoras.

Para expor os atos de barbárie, a encenação utiliza de uma ferocidade cênica, que funciona em níveis energéticos e físicos. As interpretações dos dois atores – Babaioff e Rodrigues – são viscerais. Um sadomasoquismo que desliza entre atração e repulsa. Um jogo ambíguo de masculinidade, em que a tensão sexual paira no ar e cola nos corpos.

Francis expõe um comportamento próximo do bestial, mas a direção ressalta a humanidade em nuances e gradações. Durante os dias que passa na fazenda e nas incontáveis lutas corporais com Francis, Tom coleciona hematomas e tem os pulsos machucados. Mas os dois homens também trocam confidências, trabalham na companhia um do outro, dançam juntos uma cumbia no curral e realizam o parto de um bezerro.

Para ser aceito, Tom passa por um gradual apagamento de si, incorporando valores que ele repudiava. Pode lembrar as mentes fragilizadas pelo deflúvio subjetivo desses tempos que correm. “Atenção… É preciso estar atento e forte!”

Por que Tom não foi embora após o funeral?; Por que ele “aceita” tanta violência?; e muitas outras perguntas vão para a plateia. Com o desfecho inesperado e a mutação do protagonista – que chega ao final com os clichês do rude – questiono se não há também o risco de induzir os efeitos de captura das subjetividades que se deseja combater? Ainda bem que não existe uma explicação única, que responda a tudo.

Público francês aplaude com entusiasmo, em temporada com ingressos esgotados. Foto: Reprodução

Tom, boa sorte na sua caminhada.

A agenda da peça:
Paris 9 de março a 5 de abril  – Théâtre Paris-Villette
Recife 15 e 16 de abril – Teatro do Parque
Natal 20 de abril – Teatro Riachuelo
Juiz de Fora 26 e 27 de abril – Teatro Paschoal Carlos Magno
Belo Horizonte 28 a 30 de abril – Cine Theatro Brasil Vallourec
São Paulo 5 de maio a 25 de junho  – Teatro Vivo

Tom na Fazenda (Tom à la ferme)
Texto: Michel Marc Bouchard 
Tradução: Armando Babaioff 
mise en scène: Rodrigo Portella 
Elenco: Armando Babaioff, Soraya Ravenle, Gustavo Rodrigues, Camila Nhary 
Cenografia: Aurora dos Campos 
Iluminação: Tomás Ribas 
Figurino costumes: Bruno Perlatto 
Música: Marcello H. 
Coreografia: Toni Rodrigues
Fotos: 
Victor Novaes ou Roberto Peixoto

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , , , , ,

A morte como escolha em duas peças de Milo Rau
Crítica dos espetáculos Grief and beauty e Familie

Grief and beauty (Deuil et beauté / Luto e beleza), de 2021. Foto: Michiel Devijver / Divulgação

Princesa Isatu Hassan Bangura. Foto: Michiel Devijver / Divulgação

Staf Smans amparado por Arne de Tremerie. Foto: Michiel Devijver / Divulgação

A morte “escolhida” pulsa no centro das duas primeiras peças da Trilogia da Vida Privada do dramaturgo e realizador suíço Milo Rau. A terceira do tríptico deve estrear em 2024. Assisti aos espetáculos Grief and beauty (Deuil et beauté / Luto e beleza; 2021) e Familie(2020) no La Colline Théatre National, em Paris, nesse mês de fevereiro, com texto em suíço e legendas em inglês e francês simultaneamente.

Milo Rau foi o artista em foco da sexta edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp, em 2019, e apresentou no Brasil A Repetição. História(s) do Teatro (I), Cinco Peças Fáceis e Compaixão. Ele já disse que “É possível levar tudo ao palco” e que não é ele quem escandaliza. “Minhas produções que são relacionadas a fatos escandalosos”.

Grief and beauty e Familie são peças inspiradas em algum acontecimento da realidade. São espetáculos que não nos deixam indiferentes. Ainda fico refletindo se a intenção de Milo Rau não é mesmo chocar esse mundo contemporâneo já tão abarrotado de coisas de todo o tipo e imagens que se derramam de violência. Nem se Sontag poderia me acudir nessa questão. O fato é que dificilmente alguém sairá indiferente de uma dessas duas montagens da Trilogia da Vida Privada.

Ao entrar no teatro, uma tela estampa o rosto sorridente de Johanna B. Seus olhos vivazes dão as boas-vindas. Ela vai morrer / já morreu, alguns já sabem. Uma das atrizes dirá que a simpática mulher escolheu o momento de sua morte, um dia após seu aniversário de 85 anos. Na Bélgica ou na Suíça é possível fazer eutanásia legalmente e Grief and beauty projeta alguns momentos do último dia de sua vida, cercada por familiares e amigos queridos.

Johanna, nascida em 1936 em Roterdã, tinha uma doença incurável. Na sua casa, ela conversou por mais de quatro horas com o encenador suíço e seus assistentes. O encontro foi gravado. Entre outras coisas, Johanna deixou registrado: “a morte é um trabalho solitário”, mas que ela quis compartilhar com o público do diretor Milo Rau.

A cenografia da peça é de um apartamento hiper-realista, que enfileira banheiro, quarto com cama hospitalar, sala e cozinha. Os acessórios funcionam e são acionados em algum momento, como o rádio ou a cafeteira elétrica. Alguns dos objetos foram doados por Johanna, como o relógio de pêndulo.

Anne Deyglat e Staf Smans. Foto: Michiel Devijver / Divulgação

O dispositivo da dramaturgia do cotidiano deixa transbordar o processo de criação. No início o elenco está sentado em um dos lados do palco. O espetáculo entrelaça as histórias supostamente verdadeiras de quatro atores amadores e profissionais, tendo como epicentro a morte. Arne de Tremerie, Anne Deyglat, Princesa Isatu Hassan Bangura e Staf Smans expõem suas questões. A Princesa Isatu faz a conexão com Johanna, elucidando seus desejos e confidências.

Do lado do jardim, a violoncelista Clémence Clarysse toca ao vivo as melodias que Johanna B. escolheu. O cinegrafista Moritz Von Dungern manipula sua câmera do lado do pátio, para projetar imagens da cena, que são alternadas com as do vídeo de Johanna.

Os depoimentos são entrecortados. Cada um conta a sua versão das experiências. Arne de Tremerie lembra do seu primeiro papel aos 8 anos, como Pequeno Príncipe. Ele diz que a mãe sofre de esclerose múltipla, o quanto foi impactado pela separação dos pais e como virou um exímio cuidador.

O homem velho Staf Smans, primogênito de sete irmãos e irmãs, cresceu na fazenda, perdeu irmã e mãe, foi pro exército, num baile encontrou uma mulher que nem o atraia tanto, casou com ela, celebraram 50 anos de casamento. Ele se tornou ator aos 40 anos, e não sabe como descrever a morte da filha aos 33 anos.

Anne Deyglat, a mulher de meia idade que cuida do velho, viveu um amor recíproco por um jovem de 24, com quem usufruiu da felicidade por 21 anos na Itália. Até que o rapaz avisa que está apaixonado por outra. O mundo desabou. Ela confessa gostar de estar perto dos animais e da natureza. Passou a acompanhar a vida noturna dos lobos por um site na internet. Em algum momento, ela traduz sua tristeza quando grita/uiva.

Princesa Isatu Hassan Bangura, que faz o papel de enfermeira, é de Serra Leoa, viveu no Senegal com seu pai, relata as desavenças familiares, as desconfianças da mãe, as ameaças do pai e a saudade de seu país, de cheiros e sabores.

O velho que adormece na frente da televisão e precisa da ajuda do jovem para um banho sentado, segue o mesmo percurso de Johanna. Ele tem câncer. O grupo toma champanhe antes da aplicação da injeção.

No vídeo de arquivo, Johanna se despede dos seus. O close-up expõe seu rosto luminoso e sereno. “Pode-se estar triste… mas nada de drama”, comenta. Ela diz que está pronta, que tem sono para recuperar, que não há nada de errado, que ela sempre quis sair sorrindo. O elenco avisa que o material é autêntico. Depois da picada Johanna para de respirar.

No palco, a morte é fictícia. O teatro some, com o cenário do apartamento suspenso e o jogo de luz e fumaça criando a ilusão de estrelas ou buracos cósmicos, com apenas vestígios do que existiu. Enquanto o velho passa a dançar em seus passos românticos. A musicista Clemência, acompanha o canto do jovem em um trecho de Lamento de Didon, de Purcell, uma peça apreciada por Johanna.

Não vejo beleza reconfortante em mostrar os últimos suspiros de uma mulher que escolheu a eutanásia. Mostrar esse ato de forma tão explicita é de uma radicalidade controversa. Mas Grief and beauty reafirma a mortalidade contra essa ilusão de ser imortal provocada pela pressa de viver. Johanna corajosamente fez as pazes com sua sepultura.

Mesmo com a autorização e desejo de partilha da homenageada da peça eu me pergunto se Milo Rau fez a melhor opção ao compartilhar esse momento tão singular. O cinema expõe gravada a agonia da morte. Mas o teatro? Que ocultou mortes para narrá-las? Ainda fico sob o impacto desse acontecimento! Assistir ao último suspiro de Johanna, depois da injeção, encarado de forma tão simples, como coisa banal, foi difícil.

Familie

 Familie tem no elenco os artistas Filip Peeters e An Miller (centro) e suas duas filhas Leonce e Louisa

Familie é inspirada num fato aparentemente inexplicável. Em 2007 em Coulogne, uma pequena cidade francesa ao norte perto de Calais, quatro pessoas da mesma família foram encontradas enforcadas na varanda de casa. Os Demeester (pai, mãe, filho e filha) deixaram apenas uma mensagem lacônica “On a trop déconné” (“Ficamos muito fora de controle”, mais traduzida como “Nós erramos muito, desculpe…”). O caso foi encerrado como suicídio coletivo, sem motivo conhecido.

Para representar esse episódio, Milo Rau reuniu no palco uma família da vida “real”: os artistas holandeses An Miller e Filip Peeters, e suas duas filhas adolescentes Leonce Peeters e Louisa Peeters, além dos dois cães.

O cenário de Familie enquadra mais ao fundo do palco uma casa com paredes de vidro, que expõem todos os cômodos (alusão que o núcleo não tem nada a esconder?). À frente, uma mesa, um caderno, uma luminária, duas cadeiras. Uma câmera lateral. Apenas a filha mais velha ocupa esse espaço-dispositivo da entrevista. Ela articula a história. No alto, uma grande tela.

A filha mais velha reflete sobre o suicídio coletivo

Foto: Michiel Devijver / Divulgação

Foto: Michiel Devijver / Divulgação

Os Peeters-Millers, o clã substituto dos Demeesters, recriam os últimos momentos dos suicidas. Milo Rau já disse que não há ficção, que os atores contam coisas de suas vidas. Há uma sequência em que cada um anuncia o que prefere, “eu amo…” isso e aquilo e tal. Não há nada de extraordinário nessa jornada.

Assim, o grupo representa momentos prosaicos, como a preparação do jantar ao vivo pelo marido/pai com cheiro de comida inundando o ambiente, o banho da mulher e a colagem das fotos dos momentos em comum no banheiro, o telefonema da mãe à matriarca, a refeição em conjunto, as confidências íntimas, o estudo de inglês das meninas com os cães ao colo. Coisas ocorrem simultaneamente e algumas cenas são transmitidas em detalhes pelo telão.

Antes do gesto fatal, o conjunto de ações é detalhadamente banal e monótono, enquanto o ato final é engendrado, exposto em paralelo com o trabalho investigativo realizado em torno dos Demeesters e os vídeos da viagem até a casa de Coulogne, imagens à beira-mar, escultura de Rodin. De vez em quando, os faróis dos carros que passam avisam de outras existências ao longe.

É complexa a tecedura que agrega os diferentes elementos: o que foi apurado dos fatos originários e os comentários feitos pelo grupo sobre isso, a criação/ficção dessa última noite na preparação dessa macabra cerimônia.

A representação utiliza uma espécie de reportagem (os atores foram visitar a casa dos franceses para fazer um levantamento para o espetáculo), drama teatral (a encenação das últimas horas dos suicidas) e a narrativa da adolescente mais velha filmada ao vivo, em closes, exibindo uma beleza cativante, mas fria, com o rosto minimizado de expressões e uma voz monótona e terna. Ela, que lidera o ato final, confessa que pensamentos suicidas povoaram sua cabeça, em estado de niilismo da idade.

A noite encenada é preenchida de pequenas coisas, da beleza gélida, de um repertório poderoso para instalar algumas emoções, com Bach, Haendel e Leonard Cohen. Ou ainda a cena do ritual de despedida com Air de Télaïre: Tristes apprêts, da ópera Castor et Pollux, de Jean-Philippe Rameau. Enquanto a trupe de atores alimenta a reprodução do gesto dos Demeester, a ação primeira se recobre de enigma.

Ao recriar / inventar a noite final, a cena se cerca de esvaziamentos de sentidos da vida. A vida espantada com sua própria razão em si mesma se arrasta nos intermináveis segundos em que a trupe de atores re-produz o ritual de enforcamento. Milo Rau faz o público ver até o último gesto.

Na sessão que assisti, algumas pessoas ficaram paralisadas na plateia após o término da peça por alguns minutos. Uma sensação de suspensão me atingiu, seguida de uma reflexão dolorida do que é a vida e as razões de existir.  Seguir a pensar na competência desse artista de conduzir / manipular os afetos de estar no mundo e propor porquês.

Grief and beauty
Concepção e mise en scène: Milo Rau
Assistente de direção: Katelijne Laevens
Elenco: Arne de Tremerie, Anne Deyglat, Staf Smans, Staf Smans e Johanna B. na tela
Dramaturgia: Carmen Hornbostel
Colaboração na dramaturgia e treinador: Peter Synaeve
Câmera: Moritz Von Dungern
Música ao vivo: Clémence Clarysse
Composição: Elia Rédiger
Cenografia: Barbara Vandendriessche
Iluminação: Dennis Diels

Familie
Concepção e mise en scène: Milo Rau
Elenco: An Miller, Filip Peeters, Leonce Peeters, Louisa Peeters 
Dramaturgia: Carmen Hornbostel 
Cenários: Anton Lukas 
Figurinos: Anton Lukas, Louisa Peeters 
Vídeo: Moritz von Dungern 
Arranjos musicais: Saskia Venegas Aernouts
Iluminação: Dennis Diels

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , , ,

Manifesto Transpofágico em Paris
e o Festival Everybody 2023

Renata Carvalho apresentou espetáculo Manifesto Transpofágico em Paris, . Foto: Rodrigo Fidelis

Duas sessões esgotadas. Foto: Rodrigo Fidelis / Divulgação

Poderia começar esse texto de muitas maneiras. A partir da recepção calorosa do público francês ao Manifesto Transpofágico. Com foco no crescimento da atriz Renata Carvalho desde a estreia da peça em 2019. Pelo que estava fora da cena (e nem tanto), do recrudescimento de atos antidemocráticos no Brasil ao recente horizonte humanitário com a volta de Lula. Por avanços na luta trans, que repercutem no palco. Existem caminhos e escolhas, sem garantias no caso do meu texto.

No trecho de um dos vídeos (um dos documentos) do espetáculo, uma frase ficou ecoando na minha cabeça nessa temporada parisiense, talvez porque sintetize a extensão e profundidade da violência contra os corpos trans: “cortei um braço… é pouco; corte o outro… é pouco, corte o pescoço”. É um depoimento de Bartô a Goulart de Andrade e Andrea de Maio, uma reportagem sobre a “Casa da Bartô”, de 1985, em que ela fala sobre aplicação de silicone industrial em travestis e como utilizava automutilação com gilete para defesa quando eram presas por abuso de poder policial.

Manifesto Transpofágico conta breves histórias de violências. Mesmo com cenas tocantes e outras engraçadas, a peça pinta um Brasil agressivo e ameaçador contra corpos trans, de ontem e de hoje. E expõe o quanto o mundo é atrozmente transfóbico. São e serão necessárias mais mudanças e garantias de direitos.

Solo com dramaturgia de Renata Carvalho e direção de Lubi. Foto: Rodrigo Fidelis

O Brasil se “acabava” no Carnaval 2023, num quase desespero de alegria depois da suspensão da festa pela pandemia e do alívio de se livrar do traste-ruim. Em Paris, pouco afeita aos delírios carnavalescos, no Carreau do Temple, Renata Carvalho, atriz trans militante e transpóloga conduzia sua performance solo e ensinava / alumiava umas coisinhas sobre os malefícios da cisnormatividade, do patriarcado, da exclusão histórica, da hipersexualização, da perseguição e brutalidade contra às pessoas trans.

As duas apresentações do Manifesto Transpofágico, faladas em português com legendas em francês, em sessões lotadas nos dias 20 e 21 de fevereiro, fizeram parte do Festival Everybody 2023.

Renata Carvalho traça um breve panorama da construção social e das representações de mulheres trans a partir da sua própria experiência. De menino saco-roxo, passando pela rejeição dos pais e a transformação do seu próprio corpo, uma invenção à base de desejos inabaláveis e silicone industrial.

Sozinha no palco, usando apenas uma calcinha justa, ela relata a guerra entre seu corpo e os olhares curiosos, inquisidores, desejosos, questionadores, a sempre querer arrancar pedaços simbólicos. Quase no escuro, sua voz anuncia um ajuste, enquanto convida a plateia para a sessão de transpofagia, a mirar – com a ideia de comer e digerir – seu corpo trans. “Meu corpo estava lá antes de mim, quando eu não tinha pedido nada. Ele é mais velho do que eu”, confessa, para destacar que “Hoje resolvi me vestir na minha própria pele”.

Essa pele que ela habita é esquadrinhada pela dramaturgia da iluminação, que retira o rosto dessa moldura. O corpo de Renata está recortado por luz e sombra. Os letreiros luminosos “gritam” obsessivamente a palavra “TRAVESTI”, que saltam do azul ao rosa choque, entre outras cores. As histórias são pesadas, de crueldades e humilhações. Mas ao falar de si, a atriz amplia seu foco para outras vivências semelhantes, para sua ancestralidade trans.

Corpo-desejo que persegue a essência do ser e não aceita as jaulas sociais. Estar em desacordo é ir à luta para se tornar protagonista de sua própria existência. A artista relata esses fatos em palavras simples, em episódios pontuais e compreensíveis, com franqueza, honestidade e coragem.

Corporeidade-história repleta de significações entregue praticamente em estado cru para o escrutínio da plateia. Mas há um preço para isso, cobrado mais sutilmente na primeira parte do espetáculo e mais diretamente na segunda, da consciência da transfobia de cada uma que contempla sua estampa.

Foto: Rodrigo Fidelis

Na peça as 3 uiaras de sp city, a dramaturga Ave Terrena Alves avisa, a quem interessar, que as personagens Miella e Cínthia devem ser interpretadas por atrizes travestis / mulheres trans, pelo menos até o ano de 2047. O texto é dedicado às travestis / mulheres trans de ontem e hoje, que lutam para existir.

Cito esse drama musical da Ave Terrena (que esteve em cartaz no CCSP em 2018) porque episódios da perseguição do Estado a homossexuais, travestis e prostitutas nos idos dos anos de 1970 e 1980 são retrabalhados artisticamente na peça. E também pela luta contra o transfake. Renata Carvalho é uma das fundadoras do Movimento Nacional de Artistas Trans- MONART, onde foi criado o Manifesto Representatividade Trans, com o objetivo de garantir que personagens transgénero sejam interpretados por artistas transgénero.

Algo avançou nesse terreno, mas é uma luta constante. Desde a infância é preciso enfrentar uma sociedade transfóbica, que faz um jogo canalha de glamourizar, capitalizar narrativas e até matar real ou simbolicamente. No Brasil isso ganha uma proporção gigantesca, já que o país lidera vergonhosamente o percentual de assassinatos, 40% do total mundial de pessoas trans. Há também o número alto de suicídios, por rejeição da família, dificuldade de sobrevivência, insegurança de toda ordem.

Para existir é preciso que as histórias não sejam apagadas, que elas sejam contadas e recontadas. E Renata vale-se de arquivos documentais para fazer uma leitura crítica da trajetória cultural das travestis brasileiras. Sua transcestralidade que reconhece muitas que vieram antes, como Rogéria, Roberta Close e muitas outras.

O lugar social que ela ocupa é fortalecido por sua atuação como transpóloga, uma rama da antropologia que ela mesma criou, um estudo científico, teórico, etnográfico, epistemológico e empírico sobre sua “Transcestralidade” – uma antropologia trans, uma travesti que estuda o corpo travesti/trans, sua historicidade, transcestralidade, identidade, memória com foco nas artes.

Seu teatro é vivo e pulsante, humanamente imperfeito, com cargas da sujeira feito o rock, longe de qualquer ideia de alta cultura, beleza e bom gosto cis. Suas peças, como suas pesquisas, são atravessadas por reflexões e vivências da vida que reverberam no palco. Isso desde o questionamento da identidade de gênero em 2012, com espetáculo Em mim vive outra. Passando pela complexa e tumultuada atuação em O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, um texto de Jo Clifford, onde interpretava Jesus de Nazaré. Como o Evangelho veio a projeção, reconhecimento, mas também proibições, censuras, violações de direitos, ações judiciais, ataques, ameaças de espancamento e morte, linchamentos virtuais e a manifestação brutal de ódio contra o corpo travesti.

Vânia Munhoz fez a tradução. Foto: Rodrigo Fidelis / Divulgação

A segunda parte do espetáculo é na plateia. É o jogo direto com o espectador, performance ardente e cada sessão é única, depende das respostas, das disponibilidades dos depoimentos. Renata Carvalho pergunta sobre a relação estreita daquele grupo com o corpo, grau de conhecimento e afetividade, se existe alguém na família, como é a relação.

Ao fazer uma enquete com a plateia para saber quantos homens cis já ficaram publicamente com uma pessoa trans, a atriz desenvolve uma sequência lógica para dar o xeque-mate na fragilidade cisgênera.  Do medo de perda de potência, do receio de virar o que não é e outras geleias na subjetividade.

Essa segunda parte da peça  Manifesto Transpofágico é sempre surpreendente, é uma energia viva a questionar as violências da genitalização do gênero. Como já pontuou Dodi Leal, uma artista gênero-desobediente, a definição de mulheridade não é vaginal; a definição de masculinidade não é fálica.

Nas turnês ao exterior, a produção da corpo Rastreado procura convidar uma travesti do local. No caso de Paris a tradução ficou por conta de Vânia Vênus Munhoz Pereira.

Aqui vale um parêntese: Vânia Munhoz é uma brasileira radicada na França há 34 anos. Parte de sua história está no livro Ricardo e Vânia, de Chico Felitti, publicado pela editora Todavia. Ricardo, que virou uma lenda urbana e circulava pela região das ruas Augusta e Paulista, no centro de São Paulo, trabalhava na distribuição de panfletos, era conhecido como Fofão da Augusta. O destino dessas duas figuras se encontrou nos anos 1980, quando elxs moraram juntes e aplicaram silicone na face. Ricardo morreu em 2017 depois de falar por videoconferência com o amor da sua vida. Interessados em saber mais dessa história, o livro está disponível nas livrarias e já tem os direitos comprados para virar filme.

Nessa tradução ao vivo, a atriz pergunta ao público e depois dá sua explicação de alguns termos, como cisgênero (“Se você não sabe o que isso significa, com certeza você é!” ) ou “passável”. Na primeira apresentação, incentivados pela artista, algumas pessoas deram seu depoimento da experiência de ter alguém trans na família.

Na sessão do segundo dia alguém respondeu que havia diferenças na acepção da palavra travesti no francês e em português. Bom de qualquer forma o público que acompanhou o festival é não desavisado. Se o médio francês já é bem sabido, o que opta por ir a um evento LGBTQIA+ já está bem-informado dos estudos de gênero No primeiro dia, por exemplo, Renata conheceu uma jovem pesquisadora que faz mestrado sobre o seu trabalho cênico.

Os franceses não toparam passar a mão no corpo da Renata. A atriz reforçou seu discurso sobre a consciência de que o corpo das mulheres, das trans, das travestis, o cabelos dos negros, a barriga das gravidas não são mercadorias para se pegar e apalpar num impulso, sem autorização.

Os parisienses estão numa classe mais adiantada. Além disso, ao que parece, os franceses são treinados desde a infância a serem palestrantes, eles têm argumentação para tudo. E os registros do preconceito na gramática, nos hábitos dos países de primeiro para outros subdesenvolvidos mudam. Sutilezas e ironias. Sigamos.

Renata Carvalho é uma presença perturbadora, a atravessar os rumores da língua, a dizer de condições a que foram/são submetidos corpos com o seu pela sociedade. Um solo para rodar o mundo.

Com Renata Carvalho
Luz: Wagner Antônio
Direção: Luiz Fernando Marques
Vídeo: Cecília Lucchesi
Tradução: Vânia Vênus Munhoz Pereira
Operação de luz: Juliana Augusta
Produção: Corpo Rastreado

 

Onironauta de Tânia Carvalho. Foto: Laurent Philippe / Divulgação

A segunda edição do Festival Everybody durou cinco dias, de 17 a 21 de fevereiro de 2023, no Le Carreau du Temple, em Paris, um evento que juntou propostas artísticas que pensam e movimentam o corpo, questionando estereótipos de várias naturezas. Além dos espetáculos, o Everybody contou com aulas de dança e de bem-estar, instalações de arte contemporânea e encontros para públicos variados.

Além do Manifesto Transpofágico, destaco três espetáculos. A ousadia estética de Onironauta de Tânia Carvalho, a alegria festiva em Happy Hype, dos Ouinch Ouinch x Mulah e a delicadeza de uma dança de cuidado em Formes de vie, do coreografo Éric Minh Cuong Castaing.

A coreógrafa e bailarina portuguesa Tânia Carvalho é internacionalmente conhecida por suas ousadias e desassossego com os muros erguidos entre linguagens artísticas. Quando quer, flerta e namora com a música, artes visuais e cinema. Título do trabalho de Tânia Carvalho, Onironauta (do grego óneiros, sonho + náutés, navegante) é uma pessoa que pode permanecer em um estado de consciência enquanto sonha. Dessa maneira, é capaz de se mover dentro dos sonhos como se fosse a própria realidade, conhecido como “sonho lúcido”.

Em cena, dois pianos tocados por Tânia e o pianista Andriucha e mais sete bailarinos. Esse estado dos sonhos tem muito de surreal, imagens de abismos e visão do paraíso. Navegamos entre luz e a escuridão. por um percurso estranho, desenhos desconcertantes. A provocação estética está embaralhada de vocabulário clássico e outras danças identificáveis ou não um tsunami de movimentos que desafiam as ideias de beleza. Há uma repetição bem-humorada, quebras e invasão estridente dos pianos. Sonhos estranhos fantasmagóricos e cheios de fúria.

Happy Hype, com o coletivo OUINCH OUINCH Foto Ivana Moura

Mulah comanda o som eletrizante de músicas afro e hip-hop na peça Happy Hype, com o coletivo OUINCH OUINCH, que se instalou no grande salão do ginásio. No plateia crianças, jovens famílias inteiras. No palco, o grupo a exercita a liberdade dos corpos que se encontram e se agarram na pista, que se abraçam e fazem coreografias insinuantes. Um chamamento de uma energia coletiva, que se transformou em festa no final.

Equipe do espetáculo Forma(s) de vida Foto: Ivana Moura

O trabalho assinado pelo designer, coreógrafo, diretor Eric Minh Cuong Castaing desenvolve um sensível processo entre o mundo do cuidado e o mundo da arte. Forma(s) de vida, uma peça em que corpos com problemas de mobilidade e corpos performáticos se combinam para realizar uma dança própria.

Kamal Messelleka, um ex-boxeador, que perdeu a força das pernas após um derrame, e Elise Argaud, que sofre da doença de Parkinson, tem a memória de seus corpos reativada. No palco estão Yumiko Funaya, Aloun Marchal, Nans Pierson.

As projeções de vídeos das caminhadas na natureza, ou dos exercícios de fortalecimento expõem as dificuldades, as dores, a insistência. E brota um poder estético nesse tentar, e falhar, e tentar de novo, um desenho, um arco, uma pulsação.

Com o auxílio dos coreógrafos como próteses humanas, o ex-boxeador e a bailarina ampliam os movimentos, criam uma poética, expressam um jeito de estar no mundo. O tempo é expandido na repetição, no ralentar do gesto. A força de criar arte se apresenta na esteira de um profundo respeito à vida.
 

 

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Postado com as tags: , , , , , ,

Os paraquedas coloridos do Gambiarra
Crítica dos espetáculos O Último Encontro do Poeta com a sua Alma e Avós

 

Avos, um solo com Olga Ferrario, do  Cineteatro Gambiarra. Foto: Dea Ferraz / Divulgação

Olga Ferrario e Cláudio Ferrario e em A invenção da palavra. Foto: Divulgação

Em meio à pandemia e ao descaso do antigo governo federal com a cultura, quatro artistas confinados num sítio em Gravatá, no interior de Pernambuco, acionaram – em julho de 2020 – , os paraquedas coloridos (imagem-proposta de grande força vital de Ailton Krenak). Essa visão diz muito das nervuras desses últimos anos no Brasil e da postura dessa trupe – o ator Cláudio Ferrario, a atriz Olga Ferrario, o músico Hugo Coutinho e a cineasta Dea Ferraz – que criaram o Cineteatro Gambiarra. O projeto marca neste janeiro sua despedida do formado unicamente virtual com a exibição ao vivo pelo YouTube dos espetáculos A Reinvenção da Palavra, Avós, O Último Encontro do Poeta com a sua Alma e Martelada.

O título escolhido para o coletivo traduz alguns dos procedimentos do grupo e experimentos propostos. Gambiarra é um ato de improvisar, de encontrar soluções materiais para resolver (ou remediar) uma questão. É também um mecanismo de subversão, com criatividade, dentro do sistema capitalista.

Existe uma intimidade entre essas pessoas, de afeto e amor, pois se trata de um coletivo artístico-familiar. Olga é companheira de Hugo e filha de Cláudio, que é companheiro de Dea. E para animar essa festa ainda tem o menino Davi, que enfrentou a pandemia, e o pequeno Tom, que chegou há pouco, rebentos de Olga e Hugo.

A trupe investiu dois anos e meio nesse formato híbrido, entre imbricações de teatro, cinema e tecnologia, com a produção de seis montagens, que renderam cerca de 30 sessões e mais de 4 mil espectadores pagantes. É evidente que nas primeiras exibições os afetos eram mais inflamados, existia uma sofreguidão por parte do público, o que podia ser conferido nos debates calorosos após as peças.

Avós.

O palco do Gambiarra ganha dimensões diferentes a cada peça. Além da disposição das cenas, a câmera faz os pequenos milagres do cinema com teatro. Em Avós, o espaço passeia espiralado no tempo. O voal, o caminho de pedras e as luzes amarelas contribuem com o clima de mergulhos ancestrais, no solo de atriz Olga Ferrario. É o primeiro texto de Olga, com contribuição da atriz Lívia Falcão (sua mãe), de Dea Ferraz e da jornalista e poeta Sílvia Góes. 

A câmera da cineasta Dea Ferraz se multiplica em dramaturgias. Com seus planos-sequências, closes, enquadramentos e zooms, ela sinaliza possibilidades, registra imagens e insinua composições, com o sangue correndo acelerado nas veias do ao vivo, da respiração ligeira, do risco. A ação de Dea sintetiza as tramas desse teatro de quatro artistas para administrar tantos desafios.

Nos relatos das avós, as palavras se alojam em lugares diferentes do corpo e se inquietam e mudam de lugar e viram lampejos. Os depoimentos dessas avós.– materna e paterna – foram colhidos em momentos distintos. A atriz faz um mergulho do que ela chama dentro. A intérprete assume qualquer coisa de uma ou de outra. Repete frases soltas, assume no corpo ancestralidade.

“Isto não é uma história”, avisa Olga. As falas são entrecortadas, confundem os fios do percurso. Existe uma evidente escolha pela leveza, sem perscrutar grandes depressões ou agonias. A vida segue um fluxo de lutas, de pequenas alegrias, As avós foram boas parideiras, Olga também teve seus filhos Davi e Tom de forma rápida e natural. Isso é pontuado na peça entre idas e vindas.

Os olhos da atriz ficam maiores para fazer confidências. As conversas gravadas com as duas mulheres se cruzam no presente futuro para tratar do passado das suas lidas. Hugo Coutinho cuida do ambiente sonoro, da trilha, da iluminação, acrescentando outras camadas a essa viagem ancestral.

Fertilidade, feminino, fluxos, água, essas ideias e imagens se sucedem e propõem ao espectador que acrescente suas próprias memórias e desejos enquanto o espetáculo anda. E dá uma vontade de correr para o colo da avó, ou sentir saudade. 

O último encontro do poeta coms sua alma

O Último Encontro do Poeta com a sua Alma integra a Trilogia das Dualidades do ator e dramaturgo Cláudio Ferrario. As duas personagens entabulam um diálogo que vai do raso ao profundo. E embora não se sustente em profundidades filosóficas, se alarga na tensão dos questionamentos sobre a morte, a criação artística e as escolhas.

Nessa peça, Ferrario parte da premissa de que existe uma Alma como ser independente da pessoa em si. No caso do Poeta, elas convivem em íntima ligação, mas não se misturam, têm posições próprias e algumas divergências.

O Poeta fica sabendo que lhe restam poucas horas de existência na Terra. A Alma, interpretada por Olga Ferrario, propõe que nesse tempo eles façam juntos uma espécie de inventário, avaliando a trajetória.

A dramaturgia textual se aproxima dos autos vicentinos, no eixo da sátira e da lírica. E por uma perspectiva moral. Mas também carrega uma agitação interna dos teatros de rua, apresentados em feiras populares.

Os diálogos utilizam expressões populares como “… a porca torce o rabo”, “… alma sai pela boca” como mecanismo de adesão do público (esses ditos populares nem sempre funcionam, ou pelo menos, não provocam o efeito esperado em todos os momentos) . O Poeta e sua Alma passeiam de um tema de conversa a outro: tempo, vaidades de artista, significados de sucesso, honestidade artística, inferno, vender a alma ao diabo. Às vezes intensa, outras enfadonha, é a narrativa desse percurso.

A peça fecha com uma moral edificante da poesia, do teatro e do futuro.

Martelada, com Cláudio Ferrario. Foto Ricardo Lima / Divulgação

Quem inventou a palavra: Deus ou Capeta? É a pergunta que gera A Reinvenção da Palavra, a primeira montagem do Cineteatro Gambiarra,  uma adaptação da peça de teatro A Invenção da Palavra, de 2015, que teve encenação de Moncho Rodriguez.

Martelada encena as narrativas fantásticas de Martelo, o Mateus de Cavalo-Marinho mais antigo em atuação em Pernambuco Ele aponta que foi três vezes ao inferno e voltou para contar as histórias.

Essa temporada gratuita foi patrocinada pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura PE). Neste 31 de janeiro é exibido o último experimento, Martelada, pelo YouTube do Cineteatro Gambiarra: https://www.youtube.com/@cineteatrogambiarra

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

Postado com as tags: , , , , , , , , , , , , ,