Henrique Ponzi em Fio invisível da minha cabeça. Foto: Val Lima
Henrique Ponzi é daqueles atores que se engrandece no palco. Franzino e aparentemente tímido, ele se potencializa quando interpreta seus personagens. O olho acurado da atriz e diretora Juliana Galdino, do Club Noir, de São Paulo, não deixou isso passar despercebido. E durante um exercício de uma oficina coordenada por ela, em novembro, durante o Festival Recife do Teatro Nacional, Ponzi foi convidado para passar uma temporada de treinamento no grupo que ela mantém com o marido, o dramaturgo e diretor Roberto Alvim.
Além da oficina, Juliana Galdino apresentou no festival o espetáculo Comunicação a uma Academia, com texto de Franz Kafka e direção de Roberto Alvim. Uma intepretação estupenda. Ela desempenhava o papel de um macaco que se foi transformando em gente e expõe seu relato vigiado por um guarda armado (José Geraldo Jr.). O discurso sobre o processo de sua mutação de macaco caçado, maltratado e subjugado a homem é duro e nos joga na cara o quanto de “humano” existe em nosso comportamento. Qualquer semelhança com ações de colonialismo e aculturação não é mera coincidência. Ela apresentou o espetáculo no Teatro Barreto Júnior, com um palco praticamente vazio, numa encenação minimalista, com os atores quase imobilizados, com movimentos mínimos, às vezes quase imperceptíveis; num ambiente frio, escuro, claustrofóbico. Na parede, uma grande cabeça de cervo. E um domínio da fala, que brincava com nossas sensibilidades e limitações. Uma cena forte, cortante, que não aceita concessões.
Mas voltemos a Ponzi. Essa ida dele para estágio no Club Noir me fez recordar a atuação de Juliana no Recife.
Neste sábado, às 20h, e domingo, às 19h, Henrique Ponzi apresenta o monólogo Fio invisível da minha cabeça, baseada num conto de Caio Fernando Abreu. É a sua despedida e uma forma de levantar uma verba e ajudar a custear sua temporada em São Paulo, que deve durar no mínimo seis meses.
Ponzi estudou Letras e cursos livres de teatro. Mas acredita que é preciso investir sempre na formação. Em 2004, ele fundou a Cia. do Ator Nu, com ator e produtor Edjalma Freitas. Com a companhia montou Fio invisível da minha cabeça e Encruzilhada Hamlet, com texto e direção de João Denys.
O texto do espetáculo Fio invisível da minha cabeça foi elaborado pela Companhia do Ator Nu a partir do conto Além do ponto, do livro Morangos Mofados de Caio Fernando Abreu. Trecho a seguir:
“Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem guarda-chuva nem nada, eu sempre perdia todos pelos bares, só levava uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito, parece falso dito desse jeito, mas bem assim eu ia pelo meio da chuva, uma garrafa de conhaque na mão e um maço de cigarros molhados no bolso. Teve uma hora que eu podia ter tomado um táxi, mas não era muito longe, e se eu tomasse um táxi não poderia comprar cigarros nem conhaque, e eu pensei com força então que seria melhor chegar molhado da chuva, porque aí beberíamos o conhaque, fazia frio, nem tanto frio, mais umidade entrando pelo pano das roupas, pela sola fina esburacada dos sapatos, e fumaríamos beberíamos sem medidas, haveria música, sempre aquelas vozes roucas, aquele sax gemido e o olho dele posto em cima de mim, ducha morna distendendo meus músculos.
Mas chovia ainda, meus olhos ardiam de frio, o nariz começava a escorrer, eu limpava com as costas das mãos e o líquido do nariz endurecia logo sobre os pelos, eu enfiava as mãos avermelhadas no fundo dos bolsos e ia indo, eu ia indo e pulando as poças d’água com as pernas geladas. Tão geladas as pernas e os braços e a cara que pensei em abrir a garrafa para beber um gole, mas não queria chegar na casa dele meio bêbado, hálito fedendo, não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava, todo dia um bom pretexto, e fui pensando também que ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando a pé naquela chuva toda, e eu andava, estômago dolorido de fome, e eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras, teria que ter cuidado com o lábio inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase certamente sim, quando o encontrasse, para que não visse o dente quebrado e pensasse que eu andava relaxando, sem ir ao dentista, e eu andava, e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era.
…”
Adaptada e dirigida por Breno Fittipaldi, a peça mostra o desassossego de um homem que procura preencher o vazio interior. E será que isso é possível? O personagem sai numa louca jornada em busca de um amante que nunca é encontrado. Ele se des-espera por seu amor – inventado? Numa atmosfera noturna, urbana, cheia de referências ao universo de Caio Fernando Abreu.
O público também precisa de preparação. No hall do teatro. Música para entrar no clima com repertório de cantoras muito queridas pelo autor do conto, entre elas, Maria Bethânia e Angela Rô Rô. O jornalista Tiago Soares, na função de DJ, faz a seleção dos LPs. E será servida uma dose de conhaque aos espectadores.
Fio invisível da minha cabeça estreou em 2008, no Recife. Participou de alguns festivais como o de Curitiba, no Paraná; o POA em Cena, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, o de Salvador, de Tuparetama, de Igarassu e de Petrolina.
As Yolandas vão conferir a despedida de Ponzi e desejar muita sorte para o ator na Paulicéia.
Serviço
Fio invisível da minha cabeça
Onde: Teatro Apolo (Rua do Apolo, Bairro do Recife)
Quando: Hoje, às 20h. Amanhã, às 19h
Quanto: R$ 20, R$ 10 (meia-entrada) ou R$ 15 (para colaborar com o intercâmbio)
Informações: 3355-3321/ 3355-3318