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Jornada de resistência e busca por liberdade
Crítica da peça Alguém pra fugir comigo

Espetáculo recifense Alguém para fugir comigo. Foto: Ivana Moura

Alguém pra fugir comigo é um espetáculo de estrutura fragmentada e não linear, do Resta 1 Coletivo de Teatro, do Recife, que expõe diversas formas de opressão e de resistência em diferentes tempos – desde o “período escravocrata” até os dias atuais. A peça tem apelos de humanidades perdidas; ou clamor desesperado de que seja possível encontrar algum fio que leve ao coração das trevas.

Como se configuram os dispositivos da montagem, a peça parece abraçar as ideias de Chimamanda Ngozi Adichie sobre a importância de contar histórias e de evitar o perigo da história única.

Seus personagens, figuras ou flashes humanos são pobres e oprimidos, e a opção da montagem é a partir do olhar de luta delas e deles. Com isso, oferece ao público uma tapeçaria complexa de experiências de pessoas subalternizadas pelo sistema de ontem e de hoje. Pois como diz Adichie, “histórias importam”.

Montado em 2016, o que resultou na formação do Resta 1 Coletivo de Teatro, Alguém pra fugir comigo atravessou o pós-golpe de Dilma Rousseff, sobreviveu à pandemia, e respirou aliviado depois de quase sumir com ações diretas e indiretas do pior presente do Brasil. Isso está encarnado no corpo dos atores, nos fluxos de tensões e distensões da encenação. Nos quadros que se articulam entre si há encaixes perfeitos e outros que não se acomodam, gritam isoladamente.

A encenação de Analice Croccia e Quiercles Santana, corajosa e pulsante, desafia ao seu jeito, as convenções teatrais, mesclando diferentes estilos e abordagens narrativas. É uma trama que perpassa diferentes tempos e tipos, rasgando temas como desigualdade, resistência, injustiças e afetos. A origem conceitual e os disparadores vêm de textos políticos, líricos, filosóficos; relatos de fatos verídicos e imaginários.

Nessa estrutura estilhaçada se enroscam diferentes épocas e perspectivas. Desde a fuga de Liberdade, uma escravizada que busca escapar dos abusos da casa-grande, até reflexões sobre nossa cidadania vez por outra ameaçada, a peça mexe um caldo de experiências.

Há imagens extremamente potentes, poéticas, comoventes. Existe uma entrega na atuação do elenco, composto por Analice Croccia, Ane Lima, Caíque Ferraz, Clau Barros, Pollyanna Cabral, Raphael Bernardo e Wilamys Rosendo. Eles “abraçam” tipos cotidianos em situações extremas e performance mais autoral. Mas há quebras, uns hiatos, umas ruínas expostas que se apresentam febris, mas podem cair em fragilidades.

A direção musical e o desenho de som de Kleber Santana, combinados com a iluminação de Luciana Raposo e o figurino simples em tons pastéis, criam uma atmosfera envolvente. Os trechos musicados e coreografados são carregados de poética onírica.

Personagens questionam como conquistar a liberdade. Foto: Ivana Moura

A peça provoca uma gama de emoções no público, desde risos frouxos com o vocabulário escatológico de algum personagem até momentos de profunda reflexão e comoção. Minha amiga Inocência Galvão foi às lágrimas na sessão de 15 de agosto, no Teatro Apolo.

O grupo vai abrindo caminho em busca de uma linguagem própria. Mas soa como uma provocação/cilada o aviso do elenco de que “não há nada de novo ali” e que o público não deve esperar “isso” e “aquilo”. Pareceu-me um jogo de palavras para trazer o niilismo do quadro difícil que o teatro pernambucano enfrenta há anos e que só piorou. Cria um sentido dúbio sobre a obra. E não sei se devolve o efeito esperado pelos criadores/criadoras da cena.

Até porque, o espetáculo propõe uma escuta cúmplice, empática, de quem está à beira do abismo, de quem não suporta mais tanta pressão, dos momentos em que o mundo espreme tanto que quase não sobra fôlego para viver. E como alimentar a coragem, eles vão perguntando e vendo a resposta adiada.

Alguém pra fugir comigo evita oferecer respostas simplistas ou conforto imediato. Mas mesmo assim, relembra que é fundamental o exercício do afeto, da empatia e da solidariedade, especialmente em tempos de turbulência e incerteza. Talvez por a cena ser dura, com episódios cruéis, sinalize para esse caminho de humanidade.

A direção Analice Croccia e Quiercles Santana. Foto: Ivana Moura

O conceito de fuga é central na encenação, servindo como metáfora para a busca por liberdade e autodescoberta. A peça questiona: “Quando fuga virou sinônimo de liberdade? Justiça é sinônimo de liberdade? Estar livre é o mesmo que estar liberto?” Estas perguntas provocativas convidam o público a refletir sobre o verdadeiro significado de liberdade em diferentes contextos históricos e pessoais.

Através de personagens como Liberdade, a peça explora questões de identidade e pertencimento. A pergunta “Essas são nossas terras e origens?” ressoa profundamente, especialmente no contexto da história brasileira e sua herança colonial.

A direção de Analice Croccia e Quiercles Santana cria um jogo teatral dinâmico, mas com andamentos diferentes, da agilidade à lentidão. O uso de elementos simbólicos, como as malas carregadas pelos atores, funciona como metáfora para as bagagens emocionais e históricas que todos carregamos.

Como a própria peça sugere, qualquer dia desses você pode estar mais frágil e precisar de uma mão, de um braço, de um colo, de um abraço, de um empurrão. Talvez seja bom não esquecer disso.

FICHA TÉCNICA
Atuantes:
@analicecroccia
@ane_clima
@claubarros__
@pedrocaiqueferraz
@pollycabral
@rapha_berna
@wilamysrosendo

Operação de luz de @lucianaraposoluz
Pesquisa musical e execução de @klebersantana_bill
Direção de movimento de @patricia.costabailarina
Preparação de canto de @katarinamenezescanto
Texto de Ana Paula Sá e Quiercles Santana
Encenação de Analice Croccia e @quiercles

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