Sai da redação imaginando como seria aquela pauta. Quem eram aquelas pessoas com as quais eu iria me deparar? Era agosto e eu tinha pela frente uma realidade aparentemente distante da minha. Pacientes com transtornos psicóticos graves subindo ao palco para interpretar a peça Diário de um louco, texto de Nikolai Gogol. Lá, nas coxias e no camarim do Teatro Barreto Júnior, no Recife, conheci as histórias de Célia, Júlio, Vanilda, Aldeni. Célia me contou que tinha vivido por 15 anos dentro de um manicômio, mas que tinha redescoberto a vida, primeiro através das artes plásticas e agora do teatro; com uma sinceridade desconcertante, Vanilda dizia que era esquizofrênica e tinha transtorno bipolar, mas que amava a vida e não queria ser tratada como louca. Não era só arte. Era a vida real que estava ali escancarada na minha frente pra eu tomar um choque de sensibilidade. O cotidiano às vezes nos deixa muito racionais, céticos até.
Ontem, a mesma emoção que senti no Teatro Barreto Júnior me tomou de novo. Só que desta vez era arte, mas tão próxima da vida real que doía. Ficou martelando na cabeça depois. Precisou de um pouco de silêncio – dispensava comentários cheios de argumentações. Em A lua vem da Ásia, Chico Diaz interpreta um “excêntrico”. Alguém que foi internado num “hotel de luxo” de onde não podia sair. O monólogo que esteve em cartaz no Rio de Janeiro fez três apresentações no Theatro São Pedro dentro da programação do Porto Alegre em Cena.
O texto de Campos de Carvalho não é nada fácil. A montagem se divide em capítulos e, em certos momentos, assume um ritmo frenético com uma narrativa completamente nonsense, totalmente longe de linearidades ou lógicas. Lembrava de Campos de Carvalho por conta da peça O púcaro búlgaro, uma das experiências do romance-em-cena de Aderbal Freire-Filho, que inclusive fez a supervisão deste projeto de Diaz. Em A lua vem da Ásia, o autor trata basicamente da loucura. Astrogildo matou o seu professor de lógica, está internado, relembra o passado, consegue fugir, é preso, vai de um canto ao outro. Já sabia que um excêntrico pode tudo. Tive uma memória disso. Se você não pode, é porque é limitado, embora talvez “livre”. Para os loucos, a liberdade está dentro deles mesmos (Astrogildo tem a liberdade e um irmão gêmeo dentro dele!).
Em seu primeiro monólogo, sob a direção de Moacir Chaves, Chico Diaz arrebata a plateia. Vai chegando de fininho, aos poucos, com a ajuda das projeções no fundo do palco. O tom ainda é muito ameno no início. De repente, a montagem vai ganhando força (embora no meio alguns capítulos quebrem esse ritmo crescente) e potência. Há muito do clown no personagem, as peripécias e travessuras que apronta com a maior naturalidade, o que se acentua na segunda parte da montagem, quando o personagem consegue deixar o sanatório.
O cenário é em miniatura: um piano, uma cama, algumas caixas. Depois, apenas algumas roupas num carrinho de supermercado. Ou então somente as projeções. Não fez falta. Chico Diaz preenche todas as lacunas do palco. Ele se desdobra: faz a plateia rir, tem domínio do seu corpo, do texto (que, como eu já disse, às vezes toma um ritmo desenfreado), de cada nuance da sua expressão. Podia ser Júlio, Célia, Vanilda. Estava ali passando a mesma verdade que é como um tapa na cara. A dor vai passando só aos pouquinhos. Afinal, se você não consegue mudar o mundo, vai deixar que ele te mude?
Ao final, o ator foi super aplaudido. Agradeceu e pediu que a gente lesse o livro. Disse que era muito melhor que a montagem. Pode até ser verdade, mas que é difícil de acreditar, ah, isso é.