Acelera. Ordenou a modernidade aos passos lentos, tranquilos e orgânicos da humanidade. Ela obedeceu e quis vencer limites. Mas aumentar a velocidade tem consequências. A tecnologia criou um novo mundo que desafia as mentes mais criativas. Garantiu o conforto que todos conhecem. Mas ao mesmo tempo, as criaturas passaram a carregar uma carga cada vez mais pesada. Milhões de informações disputam os sentidos dessa gente que corre atrás de dinheiro, amor (que pode nem ser verdadeiro) e poder. São exigências desse mundo – de ser veloz, eficiente, feliz; e de preferência o MAIS competente, o MAIS sensual, o MAIS desejado, enfim, o fodão. Mas essas cobranças de ter mais e ser o que pode mais criou um nível de disputa sem precedentes.
O espetáculo Insone, do Grupo Z de Teatro do Espírito Santo, toca em muitos desses pontos que incomodam e literalmente tiram o sono do homem contemporâneo. Na peça, quatro intérpretes mostram o desespero de quem não consegue dormir ou dorme mal e, no dia seguinte, sem o devido descanso, precisa enfrentar mais uma jornada, ou poderíams dizer, quase uma guerra.
Com figurinos brancos (camiseta e short) os atores desenvolvem suas ações em um colchão branco que serve como único cenário. Em determinados momentos, alguns travesseiros entram em cena. Essa paisagem insuportavelmente clara, monocromática, incomoda os sentidos, principalmente a visão. Pela proposta do grupo é bom que a montagem provoque essas sensações desagradáveis.
Essa trupe de insones movimenta-se em atos de repetição, buscando conforto para o corpo numa enervante e frenética troca de posições. Nesse processo, os personagens irrompem em preocupações com o emprego, com a viagem, com o filhinho que chora ou outras pequenas coisas da vida prosaica. Repetem palavras, frases soltas. O quarteto se atormenta com o sono reduzido a pouco, insuficiente para o merecido descanso.
A sonoplastia e a iluminação se encarregam de reforçar a atmosfera tensa com sons de engarrafamento e a luz que se altera entre o profundo branco e a penumbra do quase escuro, que inclusive produz desenhos que parecem significativas grades.
A montagem de dança-teatro exibe um turma de autômatos. Às vezes sonâmbulos, às vezes perseguindo a multidão que faz do consumir, divertir, ficar ligado uma obrigação. Nesse ritmo frenético, o repouso é negligenciado ou forçado a ficar em um plano secundário, para o jogador permanecer no jogo.
Sem uma narrativa linear, Insone expõe o sono perturbado e a vigília comprometida pela falta de repouso adequado. Impedidos de ter sonhos, a vida se torna um pesadelo num mundo dominado pela velocidade.
Criado em 1996 no intuito de realizar um trabalho contínuo de pesquisa de linguagem, o Grupo Z investe em três linhas de propostas: o trabalho em espaços diversos; o corpo como ponto de partida para a criação e o desenvolvimento de dramaturgia própria.
A dramaturgia me pareceu o aspecto mais fragilizado da encenação. Entre “dormidas”, rolamentos, saltos, pequenas correrias, brigas e acolhimento entre eles a proposta fica reduzida. A temática que possibilita interfaces com outras questões contemporâneas não borra fronteiras, não invade outros pontos.
A sensação que fica é a de que a duração do espetáculo poderia ser até menor, porque o repertório se mostra limitado e limitante e as repetições acrescentam pouco, não ampliam em significados. Ficam ali imersos no colchão coletivo e na impotência do sono. No desejo não realizado de dormir.
Ficha Técnica
Insone, do Grupo Z de Teatro (Espírito Santo)
Dramaturgia: Fernando Marques
Direção: Fernando Marques e Carla van den Bergen
Coreografia: Carla van den Bergen
Elenco: Alexsandra Bertoli, Daniel Boone, Ivna Messina, Luciano Rios (substituído aqui no Recife por Carla van den Bergen)
Direção de produção: Carla van den Bergen
Figurino e cenário: Francina Flores
Iluminação: Carla van den Bergen
*Texto extensivo ao projeto editorial do jornal Ponte Giratória, que circula impresso durante o 7º Festival Palco Giratório Recife, organizado pelo SESC PE. Outras informações no hotsite do festival.