Texto é baseado em conto de Caio Fernando Abreu e nas narrativas conservadoras. Foto: Ivana Moura
É possível que você fique com muita raiva da personagem da peça A Mulher Monstro. É provável que você ria de algumas falas altamente preconceituosas. É arriscado simplesmente condenar a Fulana da encenação, porque em muitos pontos as barbaridades que ela faz, pensa ou diz estão entranhadas até na constituição do brasileiro mais nobre, daquele que defende os plenos direitos humanos e dos seres vivos do planeta Terra. Aquela criatura do palco flerta com as ideias do Bol+nato. Ou reproduz a absoluta arrogância da elite e a estupidez de certos líderes religiosos. E esse caráter pode trair o nosso próprio gesto coletivo, pensamento ou fala. Ela é absurda.
E não dá para encarar essa criatura na chave da comédia. Inclusive porque humilhar, desprezar, rebaixar, desqualificar, aviltar as pessoas por qualquer motivo não tem graça. Especialmente nesses tempos sombrios em que vivemos, de intolerância em todas as letras do alfabeto. Em que cada um defende sua verdade e os caminhos para o diálogo estão obstruídos pela prepotência do umbigo.
O ator, dramaturgo e diretor José Neto Barbosa, da S.E.M. Cia de Teatro (RN), arquitetou a peça A Mulher Monstro tendo como eixos: o texto Creme de Alface, escrito por Caio Fernando Abreu em 1975 e publicado em Ovelhas negras (2002); e a avalanche de informações / comentários postados nas redes sociais (como Facebook e Instagram), falas aleatórias veiculadas na TV e nas ruas que exaltam panelaços e condenações “sem provas, mas com convicção”.
A Mulher Monstro estreou ontem e faz mais uma sessão neste sábado (24/09), às 20h, no Teatro Arraial Ariano Suassuna, na Rua da Aurora, no Recife.
Neto Barbosa questiona as ruindades latentes no ser humano em A Mulher Monstro. Foto: Ivana Moura
A crueldade do conto Creme de Alface provocou a rejeição do próprio autor pelo texto, publicado mais de 20 anos depois de sua criação. A realidade é mais pesada e está deixando o ar irrespirável.
As palavras do escritor gaúcho foram encaixadas nas narrativas de parcelas mais conservadora e retrógrada da sociedade brasileira. O resultado é dilacerante diante do fervilhar de discriminação.
A barbárie, a intolerância e o preconceito da época da ditadura militar ganharam proporções alarmantes nas circunstâncias do golpe midiático-jurídico. E o espetáculo aproveita as imagens e as versões veiculadas pela imprensa conservadora, que criou seus bodes expiatórios. O panelaço é um dos primeiros.
A incapacidade de conviver com as regras democráticas e o ódio construído e alimentado nos noticiários em rede nacional está no subtexto da montagem. A figura que comanda o monólogo é uma monstra conservadora, que ostenta nos seus genes um pouco de tudo isso. Ela é racista, homofóbica, gordofóbica, elitista, sexista e por aí vai.
Essa mulher monstra de Abreu trafega pelo espaço urbano com dificuldade . Ela irrita-se com quem encontra pelo caminho: “aqueles negrinhos gritando loterias”; “…e este maldito velho com passinho de tartaruga bem na minha frente…”; “pivetes imundos, tinham que matar todos”; “só uma cretina seria capaz de trazer duas crianças ao centro da cidade a esta hora”; “animal, por que não olha onde pisa?”; “como é que uma gorda dessas pode sair à rua ao lado de outra gorda ainda mais larga?”. Ela não quer ser tocada pela multidão, “o senhor por favor poderia fazer o obséquio de tirar o cotovelo da minha barriga?”
Vozes da parcela mais conservadora da sociedade brasileira são expostas no palco
Na primeira cena o ator na função de mulher-gorila dentro de uma gaiola é transformada numa dona de blusa branca e saia. Sua verborragia está contaminada pela desonestidade intelectual e pelo raciocínio capcioso. A luz faz a marcação na mudança dos discursos que ela trava sobre o mundo exterior e interior e seus pensamentos. A marcação frenética que revela as situações e personagens ganha espessura na modulação da voz, entonações e intenções que o intérprete desenvolve com muita propriedade. As mudanças de postura e expressão facial acompanham o processo, em rápidas transições.
Ela revela indiferença pela dor do outro. Nutre por si mesma uma autocomiseração e imagem tão positiva que supera qualquer espelho da rainha da Branca de Neve. Não se enxerga como realmente é. Nem vê a crueldade, a violência e monstruosidade que carrega. Sua posição é de vítima do mundo contemporâneo: “eu não nasci para viver neste tempo, sensível demais, no colégio já diziam”.
Retoma lembranças da própria existência e da dos conhecidos. E ao contrário do que nutre por si, eles não merecem sua generosidade: “Raul se enforcara no banheiro, cinco anos exatos amanhã”; “Lucinda quebrou as duas pernas atropelada por um corcel azul três dias depois de Martinha confessar que estava grávida de três meses, e não quer casar, a putinha”; “Marquinhos o tempo todo enfiando aquelas coisas nas veias, roubando coisas pra comprar a droga”; “Arthur subindo e descendo sobre o par de coxas escancaradas da empregadinha”; “Rosemari bebendo cada vez mais, meio litro de uísque até o meio dia, depressão, ela diz,”; “Lia Augusta agora querendo ser modelo, fortunas naquelas fotos, não tenho nada com isso mas falei assim pra Iolanda, bem na cara dela…”
A protagonista encara a rua para pagar alguns crediários. No embate com outros transeuntes ele destila seu ódio disfarçado, seu egoísmo e a frustração com sua vida caótica: “seus porcos, boiada, manada’; ‘desviou com nojo do velho, a pústula exposta, vai pedir dinheiro na Secretaria da Fazenda, já cansei de dizer que mendigo é problema social”.
A perversidade está em toda parte
O ambiente da rua é sufocante para ela com “aqueles jornais cheios de horrores, porcarias, aquele barulho das britadeiras furando o concreto, a fumaça negra dos ônibus”. Resolve adiar o pagamento para proporcionar a si mesma um pequeno prazer. De Assistir a um filme estrelado por Jane Fonda.
Mas tinha uma garotinha no meio do caminho. “A menina segurou seu braço pedindo um troquinho pelo amor de deus pro meu irmãozinho que tá no hospital desenganado, pra minha mãezinha que tá na cama entrevada, tia…”. “A menina insistia só um troquinho pro meu irmãozinho e pra minha mãezinha, moça bonita, e tão perfumada”. Ela nega mais uma vez e agride com palavras: “Ela sacudiu com força o braço como quem quer se livrar de um bicho, uma coisa suja grudada, enleada, e foi então que a menina cravou fundo as unhas no seu braço e gritou bem alto, todo mundo ouvindo apesar do barulho dos carros, dos ônibus, dos camelôs, das britadeiras, a menina gritou: sua puta sua vaca sua rica fudida lazarenta vai morrer toda podre”.
Ela agride fisicamente a menina. E como nas outras situações em que a protagonista se envolve, as imagens sugeridas pelos falas,e interpretação segura de Neto Barbosa são suficientes para despertar as mais diversas emoções.
E por fim ainda temos uma conversa com os criadores, sobre o processo. Um troca, uma comunhão. Neto Barbosa exposto em suas fragilidades, mais forte como artista, com uma mulher monstro odienta, mas encantadora.
FICHA TÉCNICA
Dramaturgia, encenação e atuação: José Neto Barbosa
Iluminação: Sergio Gurgel Filho e José Neto Barbosa
Maquiagem: Diógenes e José Neto Barbosa
Cenografia e figurino: José Neto Barbosa
Assistência de cenografia: Anderson Oliveira e Diego Alves
Sonoplastia: Diógenes, Mylena Sousa e José Neto Barbosa
Registro: Mylena Sousa
Produção: S.E.M. Cia de Teatro (Sentimento, Estéticas e Movimento)
Classificação indicativa: 16 anos
Duração: aprox 60 minutos, mais bate-papo com a plateia.
SERVIÇO
A Mulher Monstro, da S.E.M. Cia de Teatro
Quando: sexta (23) e sábado (24), às 20h
Onde: Teatro Arraial (Rua da Aurora, 457, Boa Vista).
Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia). Informações: 3184-3057