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MIRADA 2024:
Um Palco para as Urgências da Ibero-América

El teatro es un sueño, montagem peruada, abre o MIRADA na rua. Foto de Ramiro Contreras / Divulgação

Esperanza, do Peru, país homenageado da edição, começa a maratona teatral no palco. Foto: Paola Vera 

  • A jornalista Ivana Moura viaja a convite do Sesc São Paulo

Vozes da Ibero-América ecoam através das artes cênicas em Santos, cidade litorânea paulista situada a 72 km da capital. O MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas transforma a Baixada Santista em um vibrante palco internacional, já consolidado em sua sétima edição como um dos principais eventos teatrais do Brasil. Idealizado pelo Sesc São Paulo, o festival bienal ocorre de 5 a 15 de setembro de 2024, ocupa os espaços tradicionais de teatro e se espalha por diversos locais da cidade e seu entorno, incluindo ruas, praças e edifícios históricos.

O MIRADA 2024 apresenta uma programação com 33 espetáculos de 10 países (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Espanha, México, Peru, Portugal e Uruguai), promovendo debates sobre identidade, realidades sociais e crises políticas. além de shows e atividades formativas, uma instalação imersiva e o Mirada Pro – um encontro que reúne programadores e diretores de festivais de artes cênicas tanto do Brasil quanto do exterior.

O festival propõe reflexões sobre temas contemporâneos e urgentes, encarados nas diversas montagens, como questões indígenas, perspectivas decoloniais, relações com a natureza, diversidade e representatividade, deslocamentos humanos e suas implicações sociais.

 Este ano, o festival homenageia o Peru, país que tem demonstrado vitalidade cultural frente a desafios políticos e sociais. Serão apresentados onze trabalhos peruanos, incluindo oito peças teatrais e três performances musicais. A abertura do evento, com El Teatro Es un Sueño, do Grupo Cultural Yuyachkani, leva às ruas de Santos um espetáculo que testemunha a força do teatro comunitário e político. Inspirada no ensaio Notas sobre una Nueva Estética Teatral do poeta peruano César Vallejo, esta produção utiliza música ao vivo, personagens mascarados e interações. 

Também na noite inaugural, Esperanza, do dramaturgo peruano Abel González Melo, transporta o público para o início dos anos 1980 em Lima, período turbulento que sucedeu o regime ditatorial naquele país. Dirigida por Marisol Palacios e Aldo Miyashiro, produzida pela Compañía de Teatro La Plaza, a peça é ambientada no microcosmo de uma residência de classe média e desenrola-se ao longo de um único dia, quando uma família prepara um almoço estratégico para um candidato à prefeitura, visando garantir um cargo ao patriarca. A trama revela as tensões e expõe o contraste entre as aspirações de ascensão social e a realidade caótica do cenário político.

A instalação sinestésica Florestania, concebida pela artista Eliana Monteiro, convida o público a romper com a rotina urbana e mergulhar na experiência sensorial da Amazônia. A obra, que estreou na 15ª Quadrienal de Praga, apresenta 13 redes confeccionadas em fibras de buriti por mulheres indígenas da Amazônia brasileira e peruana. Os visitantes são convidados a se deitar nas redes enquanto escutam, através de fones de ouvido, os sons ambientes de um dia na floresta amazônica. Fica em cartaz durante todo o festival.

La vida em otros planetas foca na educação pública no Peru. Foto: Marina García Burgos / Divulgação

Quemar el bosque contigo adentro. Foto: Paola Vera / Divulgação

Monga, com Jéssica Teixeira. Foto de Ligia Jardim / Divulgação

Existe uma forte presença de obras que exploram a questão feminina sob diversas perspectivas. Dirigido por Mariana de Althaus, La Vida en Otros Planetas traça um panorama da educação pública no Peru pelos olhos de professores e alunos. Inspirada no livro Desde el Corazón de la Educación Rural de Daniela Rotalde, a peça incorpora relatos reais de educadores e testemunhos pessoais do elenco. Em um cenário que remete a uma sala de aula, os intérpretes se alternam entre personagens – docentes, estudantes e familiares – e apresentam dados históricos sobre o ensino no país, esse “outro planeta” desassistido pelo sistema. A dramaturgia de Althaus ilumina a precariedade do sistema educacional e questiona o papel da mulher nesse contexto, muitas vezes invisibilizada e subvalorizada.

Outra obra de Mariana de Althaus, Quemar el Bosque Contigo Adentro, reflete sobre as violências de gênero a partir de um universo simbólico que entrelaça natureza e relações sociais. Em um ambiente rodeado de folhas secas e galhos de eucalipto, a montagem expõe a história de três mulheres – avó, mãe e filha – que vivem numa zona rural peruana marcada por abusos contra meninas. A chegada do pai da garota, há anos distante, desvenda feridas silenciadas e traumas profundos. A montagem estabelece uma analogia entre o abuso do corpo feminino e a depredação da natureza.

Já a diretora chilena Paula Aros Gho apresenta Granada, uma releitura do mito grego de Perséfone que investiga a origem da violência patriarcal. Motivada pelas mobilizações feministas da quarta onda no Chile, Gho emprega o mito para abordar a luta contra a violência de gênero. A obra tem um caráter biográfico e contextual, refletindo sobre as experiências pessoais da diretora como professora universitária durante as manifestações de 2018.

¿Dónde Están las Feministas? Conferencia Performática de una Falsa Activista, de Liliana Albornoz Muñoz é uma conferência performática que mergulha nas complexidades e desafios do feminismo contemporâneo. A peça explora, através de sete capítulos e um epílogo, diversos aspectos da vivência feminista, desde estereótipos até incoerências nas atitudes de quem se identifica com o movimento.

Estratagemas Desesperados, concebida e dirigida por Amanda Lyra, é uma abertura de processo fundamentada em escritoras latino-americanas que investigam o horror e a violência em narrativas onde a mulher é o sujeito da ação. O espetáculo examina as manifestações da raiva feminina na sociedade contemporânea, explorando o contraponto entre a passividade do espaço doméstico ancestral e o desejo de um revide violento no âmbito social. Lyra, em sua primeira direção, traz à tona personagens que criam estratagemas desesperados para sobreviver e inverter a lógica de poder, desafiando os padrões morais e culturais de feminilidade.

Em Monga, Jéssica Teixeira continua a pesquisa iniciada em seu primeiro solo, E.L.A., utilizando seu corpo como matéria para a construção dramatúrgica. O trabalho revisita a história de Julia Pastrana, frequentemente referida como “mulher macaco” e transformada em atração de freak shows. Monga traz à tona o gênero do terror psicológico para questionar as normalizações do corpo feminino e derrubar mitos, na perspectiva de construir outros imaginários possíveis.

Yo soy el monstruo que os habla, do filósofo Paulo B. Preciado. Foto: Enric Rubio / Divulgação

Tierra gira em torno da morte da mãe do autor Sergio Blanco. Foto: Nairí Aharonián / Divulgação

Paul B. Preciado destaca-se no âmbito da filosofia e dos estudos sobre identidade e sexualidade, sendo reconhecido por sua abordagem pioneira na teoria queer e por questionar incessantemente as normas convencionais de gênero e sexualidade. A peça Yo Soy el Monstruo que os Habla é uma adaptação teatral de um discurso que Preciado proferiu em 2019 para 3.500 psicanalistas em Paris. O título, Eu Sou o Monstro que Vos Fala, já indica o tom desafiador e provocativo da obra. Preciado, como homem trans e pessoa não-binária, coloca-se na posição do “monstro” – aquele que a sociedade e a ciência tradicionalmente patologizaram.

A produção teatral busca ampliar o impacto do discurso original ao colocar em cena cinco performers trans e não-binários. Estes “monstros” são convidados a sair da “jaula” metafórica em que foram colocados pelas normas sociais vigentes. A peça critica a violência que a psicologia tradicional exerce sobre corpos dissidentes, convida a uma reformulação radical do pensamento sobre gênero e identidade.

Conhecido por sua exploração da autoficção no teatro, o dramaturgo e diretor franco-uruguaio Sergio Blanco tem consistentemente borrado as linhas entre realidade e ficção em suas obras. Tierra (Terra) é uma peça profundamente pessoal que gira em torno da morte da mãe de Blanco, Liliana Ayestarán, uma respeitada professora de literatura. A obra se passa numa quadra esportiva escolar, com a escrivaninha de sua mãe, criando um espaço que é ao mesmo tempo íntimo e ressonante.

Neste contexto, Blanco “entrevista” três personagens fictícios que foram alunos de sua mãe. Cada um traz consigo uma história íntima de perda, criando um mosaico de experiências sobre o luto e a memória. Essa configuração possibilita a Blanco investigar tanto sua própria dor quanto o aspecto universal do luto e seu impacto em nossas vidas.

Essa abordagem questiona a natureza da narrativa e da representação teatral, coisa que Blanco já fez em obras como Tebas Land, La Ira de Narciso e El Bramido de Düsseldorf.

Produção argentina A Velocidade da Luz. Foto: Kazuyuki Matsumoto / Divulgação

Montagem Palmasola, sobre o sistema prisional boliviano. Foto: David Campesino / Divulgação

Duas produções site-specific (espaços urbanos transformados em palcos vivos para a exploração de temas sociais complexos) que se destacam no cenário teatral contemporâneo e que estão presentes no MIRADA são A Velocidade da Luz e PALMASOLA – uma cidade-prisão. Essas obras utilizam espaços urbanos para criar experiências provocativas.

A Velocidade da Luz, dirigido pelo argentino Marco Canale, com duração de 180 minutos, é um espetáculo itinerante que convida o público a embarcar em uma jornada pelas ruas da cidade. A peça entrelaça histórias reais de moradores locais com uma trama fictícia. Durante uma residência de quatro semanas, Canale trabalhou com idosos da região para coletar suas memórias e experiências. Esses relatos pessoais foram incorporados à performance, permitindo que os próprios moradores participassem como atores, muitos sem experiência teatral prévia.

Os espectadores são guiados por diferentes locais da cidade, incluindo as casas dos participantes e um local considerado “sagrado” para a comunidade. Em cada parada, histórias são compartilhadas, canções são entoadas, e uma cartografia emocional do território é gradualmente construída.

Criado pelo grupo suíço KLARA-Theaterproduktionen em parceria com artistas bolivianos, PALMASOLA – uma cidade-prisão promete proporcionar uma experiência teatral impactante. Transformando a Casa da Frontaria Azulejada em Santos numa réplica da penitenciária Palmasola em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, a obra se aprofunda na realidade alarmante desse local. Ali, detentos e seus familiares compartilham um cotidiano sob regras próprias, em meio a desigualdades sociais e econômicas marcantes.

A trama avança a partir da ficção de um viajante estrangeiro capturado por tráfico de cocaína. Com encenação de Christoph Frick, diretor artístico da KLARA, a obra mescla elementos ficcionais e documentais, apresentando as realidades brutais do sistema prisional. A produção incorpora elementos multimídia, com vídeos que provavelmente ampliam a sensação de imersão e fornecem contexto visual adicional. A música investe na construção da atmosfera e tensão dramática.

A montagem paulista Parto Pavilhão, com Aysha Nascimento em destaque, sob a direção de Naruna Costa e texto de Jhonny Salaberg, lança um olhar crítico sobre o sistema prisional feminino no Brasil, com foco especial nas mulheres negras e mães.

O Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona traz à cena Esperando Godot. Nesta interpretação da clássica peça de Samuel Beckett, que serve como uma metáfora para a desolação pós-conflitos bélicos, o grupo propõe uma ruptura com a noção de messianismo, incentivando uma postura ativa e um apreço pelo viver o momento. 

O Grupo MEXA prossegue com sua exploração em torno do teatro baseado na realidade e do documentário teatral através de Poperópera Transatlântica. Este trabalho tece uma conexão entre as vivências pessoais dos membros do elenco e o poema épico Odisseia, de Homero. 

O Estado do Mundo (Quando Acordas), de Portugal. Foto: Manuel Lino / Divulgação

Vila Socó rememora tragédia de bairro operário. Foto: Sander Newton / Divulgação

Contra Xawara, com Juão Nyn. Foto: Bruna Damasceno / Divulgação

O Estado do Mundo (Quando Acordas), da companhia portuguesa Formiga Atómica, e Vila Socó, pelo brasileiro Coletivo 302, compartilham uma preocupação com as consequências ambientais e sociais de ações humanas, destacando a urgência de uma consciência coletiva voltada para a sustentabilidade. A tragédia industrial narrada em Vila Socó é resgatada através de uma experiência imersiva que resgata a memória e a história de um bairro operário.

A preocupação ambiental é radicalizada no manifesto performático Contra Xawara – Deus das Doenças ou Troca Injusta, do brasileiro Juão Nyn, que discute as enfermidades e explorações trazidas pelo contato entre povos originários e colonizadores e suas consequências duradouras sobre as comunidades indígenas.

Ubu Tropical, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz _Foto: Maíra Ali Lacerda Flores / Divulgação

G.O.L.P. Foto: João Octávio Peixoto / Divulgação

Cabaré Coragem. Foto de Guto Muniz / Divulgação

A temática da ambição pelo poder e suas consequências devastadoras é explorada em Ubu Tropical e Mendoza. A primeira, uma produção da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, do Brasil, utiliza a sátira para criticar a corrupção e a estupidez no poder, inspirando-se na obra de Alfred Jarry e refletindo sobre o cenário político brasileiro com influências do tropicalismo e modernismo. Enquanto El Presidente Más Feliz (Peru) é uma sátira que discute a corrupção e o abuso de poder, utilizando dança, música e criações audiovisuais para retratar a polarização e a fragmentação social.

Por outro lado, Mendoza, da companhia mexicana Los Colochos Teatro, reimagina a tragédia de Macbeth para o contexto da Revolução Mexicana, oferecendo uma perspectiva crítica sobre a luta pelo poder e suas implicações sangrentas.

G.O.L.P., um esforço conjunto do Teatro Experimental do Porto de Portugal e do Teatro La María do Chile, introduz uma camada adicional de complexidade ao debater a eficácia dos sistemas políticos através de uma ucronia (subgênero da ficção, que explora realidades alternativas baseadas em “e se” históricos. A ucronia reimagina o passado, propondo um desvio em eventos históricos conhecidos, resultando em um presente ou futuro alternativo) que contrasta um Portugal comunista idealizado com um Chile democrático em crise. A encenação questiona a capacidade de aprender com o passado para moldar futuros mais promissores, adicionando ironia e reflexão sobre a natureza cíclica do poder e da política.

Cabaré Coragem, apresentado pelo Grupo Galpão, do Brasil, reafirma o papel vital da arte como um meio de resistência. Inspirado na obra de Bertolt Brecht, esse espetáculo mistura teatro, música e dança, celebrando a identidade e a persistência artística frente às adversidades, e ecoando as preocupações com o poder e a corrupção presentes nas outras obras.

El Rincon De Los Muertos, do Peru. Foto: Claudia Cordova Zignago / Divulgação

Arqueologias do Futuro. Foto: Rodrigo Menezes / Divulgação

Historia de una oveja. Foto de CNA (Centro Nacional de las Artes – Delia

El Rincón De Los Muertos, monólogo protagonizado pelo ator Ricardo Bromley, mergulha nos ciclos de violência que marcaram profundamente a cidade de Ayacucho, situada na região dos Andes peruanos. Mama Angélica, pela Antares Teatro, conta a história de Angélica Mendoza de Ascarza, uma ativista social que busca seu filho desaparecido, refletindo sobre os direitos humanos e o impacto da violência política no Peru.

Historia de una Oveja, pela colombiana Teatro Petra e Centro Nacional de las Artes, expande essa discussão ao trazer à tona as histórias de deslocamento e busca por identidade. Enquanto Subterrâneo, um Musical Obscuro, uma colaboração entre os portugueses da Má-Criação e os brasileiros do Foguetes Maravilha e Dimenti, é inspirado no acidente da mina San José no Chile. O espetáculo imagina as histórias dos 33 homens presos.

Arqueologias do Futuro, de Mauricio Lima e Dadado de Freitas, combina memórias pessoais do artista Mauricio Lima com vídeo depoimentos de jovens envolvidos no projeto Museu dos Meninos. Esse trabalho investiga as narrativas corporais, questionando quais corpos são reconhecidos e ouvidos, além de refletir sobre quem possui a autoridade para contar suas próprias histórias.

As Cores da América Latina. Foto: Hamylle Nobre / Divulgação

Azira’i, da atriz Zahy Tentehar. Foto: Annelize Tozetto / Divulgação

VAPOR, ocupação infiltrável (Brasil) e As Cores da América Latina (Brasil) são destaques na dança. VAPOR utiliza a capoeira e o breaking para criar uma dança não simétrica que emerge de movimentos cotidianos, refletindo sobre a invisibilidade social dos jovens nas periferias brasileiras. Já As Cores da América Latina celebra tradições culturais latino-americanas, como a Fiesta de la Tirana e o Cavalo Marinho, propondo um diálogo entre essas manifestações e elementos do teatro, para contar a história do último Fofão do Carnaval maranhense. Ambas as produções exploram a ressignificação de fronteiras e a preservação das tradições culturais.

De Mãos Dadas com Minha Irmã mescla técnicas teatrais e linguagens afro-brasileiras para narrar a trajetória da heroína Obá, explorando a desvalorização das mulheres e a importância da memória cultural. 

A encenação argentina Sombras, Por Supuesto e a produção brasileira Azira’i trazem narrativas intimistas e pessoais, explorando a ausência e a memória. Sombras, Por Supuesto inspira-se no universo de Rainer Werner Fassbinder para criar uma trama realista com diálogos absurdos, enquanto Azira’i narra a relação da atriz Zahy Tentehar com sua mãe, a primeira mulher pajé de sua reserva indígena, utilizando elementos da cultura indígena e da memória pessoal. Essas produções investem no mergulho emocional de histórias que exploram a identidade e a herança cultural.

Teuda Bara, atriz de Cabaré Coragem, do Grupo Galpão participa do Encontro ao Vivo. Foto de Nayra Maria 

O MIRADA inclui atividades formativas, encontros críticos e apresentações musicais, como a da banda de cúmbia peruana Los Mirlos.

Os Encontros ao Vivo, as entrevista, com a mediação da jornalista Adriana Couto serão oportunidade de conhecer um pouco mais de alguns artistas e pensadores das artes cênicas ibero-americanas. Miguel Rubio Zapata e Marisol Palacios discutirão o potencial transformador do teatro na sociedade e a importância dos festivais como espaços de inovação. Daniel Veiga e Faby Hernández abordarão a representatividade e a identidade, destacando a arte como um meio de ativismo e inclusão. Teuda Bara e Mariana de Althaus conversarão sobre a intersecção entre dramaturgia e atuação, explorando como o teatro reflete e constrói realidades. Ricardo Bromley e Jéssica Teixeira compartilharão suas experiências em trabalhos que questionam memória, identidade e o uso do corpo na arte, sublinhando o papel da expressão artística como veículo de transformação social.

O Boteco Crítico é iniciativa que recria a atmosfera descontraída das conversas pós-espetáculo, convidando o público a participar de debates informais sobre as obras apresentadas. A ação neste festival é conduzido por um grupo de críticos teatrais Amilton Azevedo, Fernando Pivotto, Heloisa Sousa, Guilherme Diniz e Fredda Amorim; os quatro primeiros do do projeto Arquipélago.

O festival também oferece uma série de oficinas e aulas abertas, como a oficina com Ricardo Aleixo, que explora a poética da performance, e a aula aberta com Cristian Duarte, que propõe uma experiência coletiva de movimento e dança.

Os Encontros para o Futuro reúnem artistas, pensadores e fazedores de arte para discutir proposições criativas e reflexões sobre o futuro das práticas artísticas. Mediados por profissionais como Cristina Moura e Márcio Abreu, essas ações oferecem um espaço para diálogos abertos sobre os caminhos possíveis para a arte contemporânea.

Programação completa e mais informações em:  https://sescsp.org.br/mirada

Serviço:

MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas
Data: 5 a 15 de setembro de 2024
Local: Santos, SP, Brasil
Ingressos: Disponíveis no portal do Sesc SP, app Credencial Sesc SP, Central de Relacionamento Sesc SP, e nas bilheterias das unidades do Sesc São Paulo. (https://sescsp.org.br/mirada).
Preços:
R$ 10 (credencial plena)
R$ 20 (pessoas com +60 anos, estudantes e professores da rede pública de ensino)
R$ 40 (inteira)

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : Agora Crítica, CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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Querido público pagante, sobrevivente de guerra
Crítica de Cabaré Coragem

Cabaré Coragem é o primeiro espetáculo do Galpão pós pandemia de covid-19. Foto: Humberto Araújo

Neste cabaré, “cantaremos, beberemos, dançaremos!”. Essa é a promessa feita por Singapura, personagem de Inês Peixoto em Cabaré Coragem, espetáculo do grupo Galpão, de Minas Gerais, que estreou no ano passado, já passou por alguns lugares do país, participa agora do Festival de Curitiba e começa temporada neste mês de abril em São Paulo, no Sesc Belenzinho. Mesmo que proponha diversão, Singapura nos lembra instantes adiante que é importante estarmos alertas: nem tudo é o que parece, as aparências enganam. No foyer do Guairinha, na noite do último dia 30, a garrafa de cachaça está à mão, mais disponível do que disputada, dos frequentadores do local.

Quando entramos, a música alta da picape do DJ embala as conversas enquanto as pessoas procuram seus lugares e aguardam que o espetáculo comece, digamos, oficialmente. Lembro de ouvir Marília Mendonça e João Gomes, só para ficar entre os meus preferidos. Algumas pessoas se balançam nas cadeiras e há quem aceite o convite para dançar no palco ou no corredor. Os artistas que logo mais se apresentam neste cabaré circulam pela plateia, conversam com as pessoas. Oferecem doses de cachaça ou de conhaque. No canto do palco, sentada numa poltrona, a atriz Teuda Bara, 81 anos, ostenta peruca loura, sombra azul, blush rosado e batom vermelho.

Teuda Bara é madame, a dona do cabaré do Galpão. Foto: Humberto Araújo

A noite é de festa, mas as contradições são estabelecidas desde o início. Estamos aqui para nos divertir e viver esse momento. Quem sabe, dependendo do empenho e da entrega daquele conjunto formado por quem está no palco e na plateia, gozar. Mas gozar é difícil rotineiramente; o que podemos dizer então sobre gozar de barriga vazia, estando faminto? Nesses instantes iniciais da encenação, o Galpão pavimenta o caminho para os espectadores, anuncia a que veio.

Há uma expectativa de celebração que paira na plateia: além da possibilidade da instauração no teatro desse inferninho do Galpão, o reencontro com o grupo criado em 1982, com 26 espetáculos ao longo de sua trajetória, era aguardado. A última peça, Outros, segunda direção de Marcio Abreu para o grupo depois da disruptiva Nós (2016), estreou no distante ano de 2018, antes da pandemia. Eles sobreviveram. Nós também. Esse já seria motivo suficiente para cantar, beber e dançar, mas essa primeira cena deixa evidente que o Galpão traz ao centro desse cabaré o alemão Bertolt Brecht (1898-1956), dramaturgo, poeta, encenador, para tomar uma cachacinha junto e explicitar a luta de classes. É um cabaré cujas referências foram forjadas nos cabarés franceses e alemães do começo do século XX, espaços para discussão política, experimentalismo e transgressões.

Nos últimos anos, de modo mais recorrente na última década, estamos num contexto em que o teatro de grupo no Brasil, de modo geral, está refletindo muito mais a partir das identidades e das dissidências, das questões de raça e de gênero: o teatro negro, o teatro feminista, o teatro queer. Alguns grupos continuam suas pesquisas insistindo na luta de classes, como a Companhia do Latão, de São Paulo, e o Coletivo de Teatro Alfenim, da Paraíba, mas essa não é mais a tônica dominante, como já foi por exemplo na década de 1960.

O Galpão resgata a temática da luta de classes utilizando a irreverência para desestabilizar o que de algum modo naturalizamos: as consequências do capitalismo, desigualdades, exclusões e injustiças. Roberto Schwarz, em seu texto Altos e baixos da atualidade de Brecht, no livro Sequências brasileiras: ensaios, diz que “Trata-se de entender, em suma, que na realidade como no teatro os funcionamentos são sociais e, portanto, mudáveis”, o que nos explica noutras palavras Singapura.

Singura (Inês Peixoto) nos dá as boas-vindas neste cabaré brechtiano. Foto: Humberto Araújo

As menções a Brecht estão espalhadas ao longo da peça, desde o título, Cabaré Coragem, referência a Mãe Coragem e Seus Filhos, texto de 1941. Mas nesse caso há também uma memória afetiva que vem do mineiro Guimarães Rosa (1908-1967), como afirmou Inês Peixoto na coletiva de imprensa sobre o espetáculo no Festival de Curitiba. De Grande Sertão: Veredas talvez seja esse justamente o trecho mais citado e bonito: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

Teuda Bara é a Madame, dona do cabaré, mas em seu número encarna a Mãe Coragem. A veterana fala sobre as consequências da guerra, o quanto teve coragem e, ao mesmo tempo, medo de perder os filhos, e depois engata os versos de Mamãe coragem, de Torquato Neto e Caetano Veloso, conhecida na voz de Gal Costa. Na música, que compõe o álbum coletivo Tropicália ou Panis Et Circencis (1968), considerado manifesto musical do Tropicalismo, um filho tenta consolar a mãe.

Espetáculo atualiza debate sobre luta de classes. Foto: Humberto Araújo

O espetáculo, aliás, quero colocar em letreiro neón, é do elenco feminino do Galpão: Inês Peixoto, Lydia Del Picchia, Simone Ordones e Teuda Bara. Gente, essas atrizes! No palco, principalmente Inês Peixoto e Lydia Del Picchia reforçam o estereótipo da figura da mulher no cabaré-inferninho brasileiro, performando em seus figurinos e caracterizações a mulher desejada por seu corpo, cujas formas são destacadas pelo brilho das roupas curtas e apertadas, pretas, de preferência, ao mesmo tempo em que trazem outras camadas ao feminino.

Lydia Del Picchia começa o espetáculo vestida com macacão de mecânico, bigode pintado, e se transforma no palco. “Vocês devem ter reparado na minha roupinha, um brilhozinho básico, vulgar sem ser sexy. Cansei de ser sexy, agora eu sou só vulgar!”, destacando o empoderamento e a liberdade no que se deseja ser, em se fazer desejante do modo que nos satisfaça a nós mulheres e não necessariamente aos outros.

Noutro momento mais adiante, Simone Ordones será transformada na mulher monstro defensora da moral e dos bons costumes, replicadora de memes e notícias falsas, que se acalma com as joias das Arábias. Em seu número musical que se segue à performance como mulher monstro, a música escolhida é Mulher limpa, de Juliana Perdigão, criada a partir do poema de mesmo nome de Angélica Freitas, que está no livro Um útero é do tamanho de um punho. Com toda ironia, Simone entoa e faz o público repetir os versos: “Uma mulher boa / é uma mulher limpa / se ela é uma mulher limpa / ela é uma mulher boa. Uma mulher brava / não é uma mulher boa / e se ela é uma mulher boa / ela é uma mulher limpa”.

Uma das camadas mais significativas quando pensamos no feminino retratado na peça é a idade dessas mulheres. São quase todos corpos de mulheres mais velhas, se bem que… o que é velho? Mas são corpos que não são enxergados comumente pela sociedade como desejáveis, como se a mulher tivesse um prazo de validade.

O espetáculo é atravessado pela questão da idade para além do feminino. Esse cabaré é um cabaré de idosos, maravilhoso! Em determinado momento, quando os artistas questionam as condições de trabalho, a falta de comida, a precariedade, Madame responde com deboche: “Quero ver quem é que vai dar emprego para um bando de artista velho que nem vocês…”.

O etarismo nosso de cada dia relega os mais velhos a posições escamoteadas. A imagem comumente associada ao cabaré é a da juventude. Mesmo que a arte seja mais gentil com quem envelhece do que outros campos, como pontuou Antonio Edson durante a coletiva de imprensa, os preconceitos permeiam a vivência da velhice, ignorando o fato de que a sociedade brasileira caminha rumo ao envelhecimento de sua população.

Nesse lugar que fica mais visível na velhice, mas existe em todas as fases da vida, de levar em consideração o que conseguimos ou não fazer, de respeitar os próprios limites, mas não deixar de tentar transgredi-los, o Galpão recria uma cena de acrobacia de Antonio Edson e Eduardo Moreira. Eles são atores e não acrobatas; e homens mais velhos. Mesmo assim, disponíveis ao jogo, levando os seus corpos a lugares possíveis e, nem por isso, menos dignos de celebração. A trajetória do Galpão é admirável por muitos motivos, inclusive por este: a capacidade que o grupo possui de se colocar disponível, de experimentar, de não deixar que os anos de trabalho engendrem uma marca pesada demais para carregar.

Discussão sobre etarismo permeia a encenação. Foto: Humberto Araújo

Voltando ao capítulo Brecht, sem nunca ter saído dele, o Galpão consegue espraiá-lo na montagem, de modo que algo vai te alcançar, você vai sair dali entendendo que a peça também é sobre luta de classes, sobre questionar a realidade “imutável” na qual estamos inseridos. Na cena do ventríloquo e da sua bonequinha, foi incorporada a fábula Se os tubarões fossem homens, de autoria do dramaturgo alemão. Explicando à bonequinha, num dos trechos, o ventríloquo diz: “Se os tubarões fossem homens, eles fundariam escolas onde os peixinhos aprenderiam a nadar para dentro da boca dos tubarões e a sempre acreditar nos tubarões, especialmente quando eles dizem que vão cuidar para que os peixinhos tenham um belo futuro”.

No número seguinte, Lydia Del Picchia faz referência ao nome do bar da peça, repetido algumas vezes, Gangorra´s Bar: “Eu conheço este sistema, é meu velho conhecido. Alguns poucos por cima, outros muitos em baixo”. Os versos da música soam baratos e vagabundos, mas é isso mesmo: “Analisando essa cadeia hereditária, quero me livrar dessa situação precária / Onde o rico cada vez fica mais rico e o pobre cada vez fica mais pobre / E o motivo todo mundo já conhece, é que o de cima sobe e o de baixo desce”.

Há ainda Antonio Edson cantando em alemão Die Moritat von Mackie MesserA balada de Mac Navalha, de A ópera de três vinténs, de Brecht e Kurt Weill. Há a versão Tango dos açougueiros felizes, da música Les Joueux, do francês Boris Vian (1920-1959). A música gravada por Cida Moreira, que trabalhou com o Galpão durante o processo de montagem, uma das artistas especialistas no cabaré brechtiano no país, resultou numa cena catártica. Há a música Singapura – Um copo de veneno, também de Cida Moreira, que dá nome à personagem de Inês Peixoto. E há a explicitação das contradições do sistema capitalista engendradas na própria arte: “Aqui, quanto mais você paga, mais a gente brilha”, “querido público pagante”.

Galpão, grupo mineiro, é um dos principais representantes do teatro de grupo brasileiro, em atuação há 42 anos. Foto: Humberto Araújo

A peça do Galpão nos lembra que somos sobreviventes de guerra. Há vários tipos de guerras. Mesmo que não traga o contexto político brasileiro ipsis litteris, também é sobre isso. Acompanhamos um golpe de Estado que tirou a primeira mulher presidenta do Brasil do poder, nunca esqueceremos. Vimos um político se tornar presidente da república rendendo louros a um torturador. Vivemos a pandemia, vivemos a pandemia com Bolsonaro na presidência. Tivemos uma tentativa de romper com a democracia. O fantasma da extrema direita vive a nos assombrar. Mas a garantia do direito à memória – e o Galpão é memória em cena e memória encenada – continua a ser um desafio para nosso país. Assistimos no mês passado ao cancelamento dos atos em repúdio aos 60 anos do Golpe civil militar e das barbáries praticadas pelos militares após decisão do presidente Lula.

O Galpão traz ao palco uma luta que não se restringe ao individual, um grupo de teatro que se mantém no Brasil há 42 anos apesar de todas as circunstâncias, sejam políticas, econômicas, de descaso com a política de Cultura no país. Eles são caminho percorrido e vislumbre de possibilidade com sua atuação pública e artística. Ver o Galpão em seu 26º espetáculo, no palco, é pensar “um pouco na realidade e muito na imaginação”, como diria Roberto Schwarz, que o futuro pode ser bonito.

O espetáculo Cabaré Coragem foi apresentado nos dias 30 e 31 de março de 2024 no Festival de Curitiba.

* Pollyanna Diniz escreveu críticas de espetáculos que participaram do Festival de Curitiba a convite do Festival. A crítica foi originalmente publicada no site do Festival de Curitiba.

O grupo de críticos que trabalhou no festival incluiu ainda Annelise Schwarcz, Guilherme Diniz (Horizonte da Cena) e Kil Abreu (Cena Aberta).

Cabaré Coragem no Festival de Curitiba 2024. Foto: Humberto Araújo

Ficha técnica:
Elenco: Antonio Edson, Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Simone Ordones e Teuda Bara
Direção: Júlio Maciel
Direção musical, arranjos e trilha sonora: Luiz Rocha
Diretor assistente: David Maurity
Cenografia e figurino: Márcio Medina
Dramaturgia: Coletiva
Supervisão de dramaturgia: Vinícius de Souza
Direção de cena e coreografia: Rafael Bacelar
Iluminação: Rodrigo Marçal
Adereços e pintura de arte: Marney Heitmann
Preparação corporal e do gesto: Fernanda Vianna
Preparação vocal: Babaya
Assistência de figurino: Paulo André e Gilma Oliveira
Assistência de cenografia: Vinícius de Andrade
Assessoria de iluminação: Marina Arthuzzi
Direção de experimentos cênicos: Ernani Maletta, Luiz Rocha e Cida Moreira
Colaboração artística: Paulo André e João Santos
Maquiagem e perucaria: Gabriela Dominguez
Assistente de maquiagem e perucaria: Ana Rosa Oliveira
Construção cenário: Artes Cênica Produções
Confecção de figurinos: Taires Scatolin
Técnico de palco: William Bililiu
Instalação de luminárias cênicas: Wellington Santos
Assessoria de imprensa: Polliane Eliziário (Personal Press)
Comunicação on-line: Rizoma Comunicação & Arte
Fotos: Mateus Lustosa
Registro e cobertura audiovisual: Alicate
Projeto gráfico: Filipe Lampejo e Rita Davis
Operação de luz: Rodrigo Marçal
Sonorização e operação de som: Fábio Santos
Assistente técnico: William Teles
Assistente de produção: Márcia Bueno e Idylla Silmarovi
Produção executiva: Beatriz Radicchi
Direção de produção: Gilma Oliveira
Produção: Grupo Galpão
Músicas Alabama Song, Moritat, Singapura e Tango dos Açougueiros Felizes a partir dos arranjos musicais de Ernani Maletta
Fragmento do Texto: “Discurso sobre Nada” de Marcio Abreu

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