“Caros caras:
Não sou anormal. Somos. Logo, não somos. É diferente. Um anormal é anormal. Dois anormais são normais. Tanto mais se unidos. Muito poucos fazem muito. De minoria em minoria, a maioria enfia a viola no saco, e a violação no cu.”
“Não adianta fazer ou assistir teatro sem considerarmos as características do tempo em que vivemos. O teatro é o reflexo das realidades de uma época e não um fenômeno isolado cujas dificuldades sejam exclusivamente suas, mas de todo um processo criativo em crise.”
O Grupo Vivencial Diversiones foi um furacão, uma perversão, o salto-alto no mangue, o teatro em movimento. E ele mesmo se “explicou” em alguns textos. Esses foram reunidos e publicados por Lúcia Machado no livro A modernidade no teatro, Ali e aqui, Reflexos estilhaçados. Foi lá no Vivencial que o cineasta Hilton Lacerda bebeu. E Tatuagem está surgindo…
Visitei o set e escrevi uma matéria para o Diario de Pernambuco, publicada no último sábado e reproduzida aqui:
“O nosso show vai estrear / Mas não se engane / Nós somos perigosas / Bem gostosinhas e amorosas”. A irreverência dos versos cantados por marinheira, bailarina, um diabo provocante se propagava no jardim daquele casarão antigo nas ladeiras históricas de Olinda na quinta-feira passada. O lugar serve como locação do primeiro longa de Hilton Lacerda – Tatuagem, que será filmado até o dia 28 deste mês.
A cena que estava sendo gravada era, na realidade, “um filme dentro do filme, já que um dos personagens grava um Super-8. Era o baile da trupe Chão de Estrelas, uma “referência afetiva” ao grupo de teatro Vivencial Diversiones, que existiu no Recife nas décadas de 1970 e 1980 sob influência da contracultura. “Não queria fazer um documentário, me desagrada o fato de adaptar o real para a ficção. Mas tem essa inspiração”, explica o diretor.
O filme se passa em 1978, mas não está preso ao passado. “Não me interessa fazer um filme fora do que a gente vive. Nesse Super-8 que está sendo gravado no filme, os atores dizem que o futuro será incrível e todos os preconceitos seriam abolidos. Seria uma revolução filosófica e não tecnológica. Mas 1978 era o ano em que o Brasil ia dar certo e acho que estamos passando por isso novamente”, avalia Lacerda.
O protagonista do filme é Irandhir Santos, que começou no teatro aqui em Pernambuco, mas despontou mesmo no cinema em longas como Tropa de Elite 2 e Besouro. Santos faz o líder da trupe tão questionadora quanto polêmica e inventiva; mas que está envolvido numa relação com o lado oposto, um soldado, interpretado pelo também pernambucano Jesuíta Barbosa. O diretor explica que o projeto tem pelo menos cinco anos e que sempre pensou em Irandhir para o papel principal. Os dois já trabalharam juntos – Lacerda como roteirista – em Febre do rato (que teve pré-estreia dentro do Janela de Cinema) e Baixio das bestas. “Adoro fazer roteiros e isso fez com que eu demorasse a dirigir”, complementa.
O longa tem um orçamento de R$ 2,5 milhões, recursos da Petrobras, Eletrobras e Funcultura. 70 pessoas estão na equipe. “Desde setembro temos o elenco, tanto atores quanto não-atores, mas pessoas envolvidas com arte, que, às vezes, são até mais naturais”, conta Rutílio de Oliveira, produtor de elenco. É assim, por exemplo, que Júnior Black faz o DJ Tonho do Som. Ou alguém que trabalhava na arte acabou em cena vestida de bailarina. “Meu personagem fuma um monte para poder criar. Como muitos, saiu de casa por algum motivo. Acho que hoje haveria espaço para um grupo como o Vivencial, mas não sei se com o mesmo nível de provocação”, diz o ator Erivaldo Oliveira, vestido de Marquinhos Odara.
Que diabos é essa liberdade?
A sede “político-anárquica” do Vivencial Diversiones ficava no Complexo de Salgadinho, numa área de mangue. “Quando eu era ator do Grupo de Cultura de Caruaru, com Vital Santos, nós nos apresentamos no Vivencial. Era meio mangue, me lembro bem, fim da década de 1970”, recorda o diretor Cláudio Assis, que estava acompanhando as gravações de Tatuagem – e iria até entrar em cena. Se a casa do Vivencial ficava no mangue, a da trupe Chão de Estrelas é construída no Nascedouro de Peixinhos, com referências ao tropicalismo e, claro, à liberdade.
O filme ainda terá a participação de alguns atores que integraram o Vivencial, como Auricéia Fraga, que entra na última etapa de gravação, em Bonito. Para a pesquisa, Hilton conversou com nomes como Guilherme Coelho, criador do Vivencial que hoje mora em Brasília, e com o diretor de teatro Antônio Edson Cadengue. “Na realidade, eu queria fazer um filme sobre o personagem Túlio Carella, do livro Orgia. Tinha até um nome…O homem da ponte. Estava conversando com João Silvério Trevisan, que era meu vizinho, e foi ele quem levantou essa ideia do Vivencial, que eu não cheguei a frequentar”, conta.
O filme tem até uma referência ao próprio Hilton. No filme, o personagem de Irandhir Santos tem um filho de 13 anos, mesma idade que Lacerda tinha em 1978. “Convivi com Cadengue, Jomard Muniz. Teatros mais marginais existiam em vários lugares do Brasil. E o filme discute que diabos é essa liberdade que temos hoje”, diz.