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Querido público pagante, sobrevivente de guerra
Crítica de Cabaré Coragem

Cabaré Coragem é o primeiro espetáculo do Galpão pós pandemia de covid-19. Foto: Humberto Araújo

Neste cabaré, “cantaremos, beberemos, dançaremos!”. Essa é a promessa feita por Singapura, personagem de Inês Peixoto em Cabaré Coragem, espetáculo do grupo Galpão, de Minas Gerais, que estreou no ano passado, já passou por alguns lugares do país, participa agora do Festival de Curitiba e começa temporada neste mês de abril em São Paulo, no Sesc Belenzinho. Mesmo que proponha diversão, Singapura nos lembra instantes adiante que é importante estarmos alertas: nem tudo é o que parece, as aparências enganam. No foyer do Guairinha, na noite do último dia 30, a garrafa de cachaça está à mão, mais disponível do que disputada, dos frequentadores do local.

Quando entramos, a música alta da picape do DJ embala as conversas enquanto as pessoas procuram seus lugares e aguardam que o espetáculo comece, digamos, oficialmente. Lembro de ouvir Marília Mendonça e João Gomes, só para ficar entre os meus preferidos. Algumas pessoas se balançam nas cadeiras e há quem aceite o convite para dançar no palco ou no corredor. Os artistas que logo mais se apresentam neste cabaré circulam pela plateia, conversam com as pessoas. Oferecem doses de cachaça ou de conhaque. No canto do palco, sentada numa poltrona, a atriz Teuda Bara, 81 anos, ostenta peruca loura, sombra azul, blush rosado e batom vermelho.

Teuda Bara é madame, a dona do cabaré do Galpão. Foto: Humberto Araújo

A noite é de festa, mas as contradições são estabelecidas desde o início. Estamos aqui para nos divertir e viver esse momento. Quem sabe, dependendo do empenho e da entrega daquele conjunto formado por quem está no palco e na plateia, gozar. Mas gozar é difícil rotineiramente; o que podemos dizer então sobre gozar de barriga vazia, estando faminto? Nesses instantes iniciais da encenação, o Galpão pavimenta o caminho para os espectadores, anuncia a que veio.

Há uma expectativa de celebração que paira na plateia: além da possibilidade da instauração no teatro desse inferninho do Galpão, o reencontro com o grupo criado em 1982, com 26 espetáculos ao longo de sua trajetória, era aguardado. A última peça, Outros, segunda direção de Marcio Abreu para o grupo depois da disruptiva Nós (2016), estreou no distante ano de 2018, antes da pandemia. Eles sobreviveram. Nós também. Esse já seria motivo suficiente para cantar, beber e dançar, mas essa primeira cena deixa evidente que o Galpão traz ao centro desse cabaré o alemão Bertolt Brecht (1898-1956), dramaturgo, poeta, encenador, para tomar uma cachacinha junto e explicitar a luta de classes. É um cabaré cujas referências foram forjadas nos cabarés franceses e alemães do começo do século XX, espaços para discussão política, experimentalismo e transgressões.

Nos últimos anos, de modo mais recorrente na última década, estamos num contexto em que o teatro de grupo no Brasil, de modo geral, está refletindo muito mais a partir das identidades e das dissidências, das questões de raça e de gênero: o teatro negro, o teatro feminista, o teatro queer. Alguns grupos continuam suas pesquisas insistindo na luta de classes, como a Companhia do Latão, de São Paulo, e o Coletivo de Teatro Alfenim, da Paraíba, mas essa não é mais a tônica dominante, como já foi por exemplo na década de 1960.

O Galpão resgata a temática da luta de classes utilizando a irreverência para desestabilizar o que de algum modo naturalizamos: as consequências do capitalismo, desigualdades, exclusões e injustiças. Roberto Schwarz, em seu texto Altos e baixos da atualidade de Brecht, no livro Sequências brasileiras: ensaios, diz que “Trata-se de entender, em suma, que na realidade como no teatro os funcionamentos são sociais e, portanto, mudáveis”, o que nos explica noutras palavras Singapura.

Singura (Inês Peixoto) nos dá as boas-vindas neste cabaré brechtiano. Foto: Humberto Araújo

As menções a Brecht estão espalhadas ao longo da peça, desde o título, Cabaré Coragem, referência a Mãe Coragem e Seus Filhos, texto de 1941. Mas nesse caso há também uma memória afetiva que vem do mineiro Guimarães Rosa (1908-1967), como afirmou Inês Peixoto na coletiva de imprensa sobre o espetáculo no Festival de Curitiba. De Grande Sertão: Veredas talvez seja esse justamente o trecho mais citado e bonito: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

Teuda Bara é a Madame, dona do cabaré, mas em seu número encarna a Mãe Coragem. A veterana fala sobre as consequências da guerra, o quanto teve coragem e, ao mesmo tempo, medo de perder os filhos, e depois engata os versos de Mamãe coragem, de Torquato Neto e Caetano Veloso, conhecida na voz de Gal Costa. Na música, que compõe o álbum coletivo Tropicália ou Panis Et Circencis (1968), considerado manifesto musical do Tropicalismo, um filho tenta consolar a mãe.

Espetáculo atualiza debate sobre luta de classes. Foto: Humberto Araújo

O espetáculo, aliás, quero colocar em letreiro neón, é do elenco feminino do Galpão: Inês Peixoto, Lydia Del Picchia, Simone Ordones e Teuda Bara. Gente, essas atrizes! No palco, principalmente Inês Peixoto e Lydia Del Picchia reforçam o estereótipo da figura da mulher no cabaré-inferninho brasileiro, performando em seus figurinos e caracterizações a mulher desejada por seu corpo, cujas formas são destacadas pelo brilho das roupas curtas e apertadas, pretas, de preferência, ao mesmo tempo em que trazem outras camadas ao feminino.

Lydia Del Picchia começa o espetáculo vestida com macacão de mecânico, bigode pintado, e se transforma no palco. “Vocês devem ter reparado na minha roupinha, um brilhozinho básico, vulgar sem ser sexy. Cansei de ser sexy, agora eu sou só vulgar!”, destacando o empoderamento e a liberdade no que se deseja ser, em se fazer desejante do modo que nos satisfaça a nós mulheres e não necessariamente aos outros.

Noutro momento mais adiante, Simone Ordones será transformada na mulher monstro defensora da moral e dos bons costumes, replicadora de memes e notícias falsas, que se acalma com as joias das Arábias. Em seu número musical que se segue à performance como mulher monstro, a música escolhida é Mulher limpa, de Juliana Perdigão, criada a partir do poema de mesmo nome de Angélica Freitas, que está no livro Um útero é do tamanho de um punho. Com toda ironia, Simone entoa e faz o público repetir os versos: “Uma mulher boa / é uma mulher limpa / se ela é uma mulher limpa / ela é uma mulher boa. Uma mulher brava / não é uma mulher boa / e se ela é uma mulher boa / ela é uma mulher limpa”.

Uma das camadas mais significativas quando pensamos no feminino retratado na peça é a idade dessas mulheres. São quase todos corpos de mulheres mais velhas, se bem que… o que é velho? Mas são corpos que não são enxergados comumente pela sociedade como desejáveis, como se a mulher tivesse um prazo de validade.

O espetáculo é atravessado pela questão da idade para além do feminino. Esse cabaré é um cabaré de idosos, maravilhoso! Em determinado momento, quando os artistas questionam as condições de trabalho, a falta de comida, a precariedade, Madame responde com deboche: “Quero ver quem é que vai dar emprego para um bando de artista velho que nem vocês…”.

O etarismo nosso de cada dia relega os mais velhos a posições escamoteadas. A imagem comumente associada ao cabaré é a da juventude. Mesmo que a arte seja mais gentil com quem envelhece do que outros campos, como pontuou Antonio Edson durante a coletiva de imprensa, os preconceitos permeiam a vivência da velhice, ignorando o fato de que a sociedade brasileira caminha rumo ao envelhecimento de sua população.

Nesse lugar que fica mais visível na velhice, mas existe em todas as fases da vida, de levar em consideração o que conseguimos ou não fazer, de respeitar os próprios limites, mas não deixar de tentar transgredi-los, o Galpão recria uma cena de acrobacia de Antonio Edson e Eduardo Moreira. Eles são atores e não acrobatas; e homens mais velhos. Mesmo assim, disponíveis ao jogo, levando os seus corpos a lugares possíveis e, nem por isso, menos dignos de celebração. A trajetória do Galpão é admirável por muitos motivos, inclusive por este: a capacidade que o grupo possui de se colocar disponível, de experimentar, de não deixar que os anos de trabalho engendrem uma marca pesada demais para carregar.

Discussão sobre etarismo permeia a encenação. Foto: Humberto Araújo

Voltando ao capítulo Brecht, sem nunca ter saído dele, o Galpão consegue espraiá-lo na montagem, de modo que algo vai te alcançar, você vai sair dali entendendo que a peça também é sobre luta de classes, sobre questionar a realidade “imutável” na qual estamos inseridos. Na cena do ventríloquo e da sua bonequinha, foi incorporada a fábula Se os tubarões fossem homens, de autoria do dramaturgo alemão. Explicando à bonequinha, num dos trechos, o ventríloquo diz: “Se os tubarões fossem homens, eles fundariam escolas onde os peixinhos aprenderiam a nadar para dentro da boca dos tubarões e a sempre acreditar nos tubarões, especialmente quando eles dizem que vão cuidar para que os peixinhos tenham um belo futuro”.

No número seguinte, Lydia Del Picchia faz referência ao nome do bar da peça, repetido algumas vezes, Gangorra´s Bar: “Eu conheço este sistema, é meu velho conhecido. Alguns poucos por cima, outros muitos em baixo”. Os versos da música soam baratos e vagabundos, mas é isso mesmo: “Analisando essa cadeia hereditária, quero me livrar dessa situação precária / Onde o rico cada vez fica mais rico e o pobre cada vez fica mais pobre / E o motivo todo mundo já conhece, é que o de cima sobe e o de baixo desce”.

Há ainda Antonio Edson cantando em alemão Die Moritat von Mackie MesserA balada de Mac Navalha, de A ópera de três vinténs, de Brecht e Kurt Weill. Há a versão Tango dos açougueiros felizes, da música Les Joueux, do francês Boris Vian (1920-1959). A música gravada por Cida Moreira, que trabalhou com o Galpão durante o processo de montagem, uma das artistas especialistas no cabaré brechtiano no país, resultou numa cena catártica. Há a música Singapura – Um copo de veneno, também de Cida Moreira, que dá nome à personagem de Inês Peixoto. E há a explicitação das contradições do sistema capitalista engendradas na própria arte: “Aqui, quanto mais você paga, mais a gente brilha”, “querido público pagante”.

Galpão, grupo mineiro, é um dos principais representantes do teatro de grupo brasileiro, em atuação há 42 anos. Foto: Humberto Araújo

A peça do Galpão nos lembra que somos sobreviventes de guerra. Há vários tipos de guerras. Mesmo que não traga o contexto político brasileiro ipsis litteris, também é sobre isso. Acompanhamos um golpe de Estado que tirou a primeira mulher presidenta do Brasil do poder, nunca esqueceremos. Vimos um político se tornar presidente da república rendendo louros a um torturador. Vivemos a pandemia, vivemos a pandemia com Bolsonaro na presidência. Tivemos uma tentativa de romper com a democracia. O fantasma da extrema direita vive a nos assombrar. Mas a garantia do direito à memória – e o Galpão é memória em cena e memória encenada – continua a ser um desafio para nosso país. Assistimos no mês passado ao cancelamento dos atos em repúdio aos 60 anos do Golpe civil militar e das barbáries praticadas pelos militares após decisão do presidente Lula.

O Galpão traz ao palco uma luta que não se restringe ao individual, um grupo de teatro que se mantém no Brasil há 42 anos apesar de todas as circunstâncias, sejam políticas, econômicas, de descaso com a política de Cultura no país. Eles são caminho percorrido e vislumbre de possibilidade com sua atuação pública e artística. Ver o Galpão em seu 26º espetáculo, no palco, é pensar “um pouco na realidade e muito na imaginação”, como diria Roberto Schwarz, que o futuro pode ser bonito.

O espetáculo Cabaré Coragem foi apresentado nos dias 30 e 31 de março de 2024 no Festival de Curitiba.

* Pollyanna Diniz escreveu críticas de espetáculos que participaram do Festival de Curitiba a convite do Festival. A crítica foi originalmente publicada no site do Festival de Curitiba.

O grupo de críticos que trabalhou no festival incluiu ainda Annelise Schwarcz, Guilherme Diniz (Horizonte da Cena) e Kil Abreu (Cena Aberta).

Cabaré Coragem no Festival de Curitiba 2024. Foto: Humberto Araújo

Ficha técnica:
Elenco: Antonio Edson, Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Simone Ordones e Teuda Bara
Direção: Júlio Maciel
Direção musical, arranjos e trilha sonora: Luiz Rocha
Diretor assistente: David Maurity
Cenografia e figurino: Márcio Medina
Dramaturgia: Coletiva
Supervisão de dramaturgia: Vinícius de Souza
Direção de cena e coreografia: Rafael Bacelar
Iluminação: Rodrigo Marçal
Adereços e pintura de arte: Marney Heitmann
Preparação corporal e do gesto: Fernanda Vianna
Preparação vocal: Babaya
Assistência de figurino: Paulo André e Gilma Oliveira
Assistência de cenografia: Vinícius de Andrade
Assessoria de iluminação: Marina Arthuzzi
Direção de experimentos cênicos: Ernani Maletta, Luiz Rocha e Cida Moreira
Colaboração artística: Paulo André e João Santos
Maquiagem e perucaria: Gabriela Dominguez
Assistente de maquiagem e perucaria: Ana Rosa Oliveira
Construção cenário: Artes Cênica Produções
Confecção de figurinos: Taires Scatolin
Técnico de palco: William Bililiu
Instalação de luminárias cênicas: Wellington Santos
Assessoria de imprensa: Polliane Eliziário (Personal Press)
Comunicação on-line: Rizoma Comunicação & Arte
Fotos: Mateus Lustosa
Registro e cobertura audiovisual: Alicate
Projeto gráfico: Filipe Lampejo e Rita Davis
Operação de luz: Rodrigo Marçal
Sonorização e operação de som: Fábio Santos
Assistente técnico: William Teles
Assistente de produção: Márcia Bueno e Idylla Silmarovi
Produção executiva: Beatriz Radicchi
Direção de produção: Gilma Oliveira
Produção: Grupo Galpão
Músicas Alabama Song, Moritat, Singapura e Tango dos Açougueiros Felizes a partir dos arranjos musicais de Ernani Maletta
Fragmento do Texto: “Discurso sobre Nada” de Marcio Abreu

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“Para onde vamos?”, pergunta o Grupo Galpão

Personagens do espetáculo NÓS são transpassado por temas contemporâneos como racismo, violência e intolerância. Foto: Guto Muniz

Personagens da peça NÓS são transpassados por temas contemporâneos como racismo, violência e intolerância. Foto: Guto Muniz

Conviver é um exercício constante de humanidade, de escuta, de abraçamento, de indulgência, de envolvimento, de inclusão, de autoconhecimento. Essa fascinante tarefa de estar junto faz suas exigências para afastar a apatia, a brutalidade das relações, a indiferença. O espetáculo Nós, do grupo mineiro Galpão investe nas relações humanas e, portanto, políticas. E questiona os posicionamentos no mundo enquanto coletivo, enquanto indivíduos inquietos diante da realidade brasileiro. A peça faz duas apresentações no Teatro Luiz Mendonça, do Parque dona Lindu, em Boa viagem, dentro da programação do 18º Festival Recife do Teatro Nacional.

Um encontro entre sete pessoas numa mesa de cozinha. Elas preparam uma sopa, num ritual de celebração e despedida. Partilham esperanças e aflições. Mergulham em conversas cotidianas, com frases repetidas e assuntos cruzados a partir dos seus testemunhos: um garoto negro humilhado por policiais, de meninas sequestradas, de escolas públicas que foram fechadas. 

Questões da atualidade são encaradas pelo grupo como alteridade, o que é público ou privado, democracia em tempos de intolerância, violência, crise da esquerda, tragédia em Mariana (MG). A trupe também lançou mão de referências em obras contemporâneas, como Ódio à Democracia, ensaio do francês Jacques Rancière.

São ecos das vozes das ruas, com destaque para a forma como as coisas são ditas

São ecos das vozes das ruas, com destaque para a forma como as coisas são ditas

O texto escrito pelo encenador convidado Marcio Abreu, da Companhia Brasileira de Teatro, e pelo ator Eduardo Moreira foi construída a partir dos improvisos com o elenco. E surgem personagens indefinidos e performáticos. Além de Moreira, estão no elenco Antonio Edson, Chico Pelúcio, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia,Paulo André e atriz Teuda Bara.

Desse jogo entre personalidades diferentes o Galpão ergue uma sinfonia cênica, com  justaposição de sons, ritmos, corpos e de reflexões diferentes que ora se harmoniza, coabitam ou se chocam.

A trilha musical e os efeitos sonoros dirigidos por Felipe Storino funcionam como importante elemento dramatúrgico, que se sobressaem nas pausas, nas tensões, nos solos e nas interpretações musicais coletivas como na canção Balada do lado sem luz, de Gilberto Gil.

As dramaturgias estão carregadas de analogias e metáforas formando um complexo quadro de personagens e de discursos. As questões políticas estão abertas a variadas interpretações. Os poderes que vigiam traduzidos em comportamentos. Em determinado momento uma personagem é expulsa do grupo contra sua vontade. E isso pode ser lido como uma alusão ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff ou os confrontos de ordem da micropolítica.

Os elementos podem não estar em estreita relação entre si, como a leitura do poema Agradecimento, da polaca Wisława Szymborska (1923-2012). Cada espectador pode ser atravessado por sensações provocadas pelas partituras do elenco. E construir seus sentidos do espetáculo.

SERVIÇO

NÓS, do Grupo Galpão, dentro do 18º Festival Recife do Teatro Nacional
QUANDO Quarta e quinta-feiras, 23 e 24/11, às 20h30
ONDE Teatro Luiz Mendonça, no Parque Dona Lindu, em Boa Viagem, Recife
QUANTO R$ 10 a R$ 5
CLASSIFICAÇÃO 16 anos

FICHA TÉCNICA DO ESPETÁCULO
Elenco
Antonio Edson
Chico Pelúcio
Eduardo Moreira
Júlio Maciel
Lydia Del Picchia
Paulo André
Teuda Bara
Equipe de criação
Direção: Marcio Abreu
Dramaturgia: Marcio Abreu e Eduardo Moreira
Cenografia: Play Arquitetura – Marcelo Alvarenga
Figurino: Paulo André
Iluminação: Nadja Naira
Trilha e Efeitos Sonoros: Felipe Storino
Assistência de Direção: Martim Dinis e Simone Ordones
Preparação musical e arranjos vocais/instrumentais: Ernani Maletta
Preparação vocal e direção de texto: Babaya
Colaboração artística: Nadja Naira e João Santos
Assistência de Figurino: Gilma Oliveira
Assistência de Cenografia: Thays Canuto
Cenotécnica e construção de objetos: Joaquim Pereira e Helvécio Izabel
Operação e assistência de luz: Rodrigo Marçal
Operação de som: Fábio Santos
Assistente técnico: William Teles
Assistente de produção: Cleo Magalhães
Confecção de figurino: Brenda Vaz
Técnica de Pilates: Waneska Torres
Fotos de divulgação: Guto Muniz
Fotos do programa: Fernando Lara, Gustavo Pessoa e Guto Muniz
Imagens escaneadas: Tibério França e Lápis Raro
Registro e cobertura audiovisual: Alicate
Projeto gráfico: Lápis Raro
Design web: Laranjo Design (Igor Farah)
Direção de produção: Gilma Oliveira
Produção executiva: Beatriz Radicchi
Produção: Grupo Galpão

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Para que serve a consciência de Till

Inês Peixoto (centro) interpreta Till com graça e humor. Foto: Ivana Moura

Inês Peixoto (centro) interpreta Till com graça e humor. Foto: Ivana Moura

X Festival de Teatro de Fortaleza

Já fazia dias, semanas até, que não caia uma gota de chuva em Fortaleza. Mas ontem, durante a apresentação do espetáculo Till, a saga de um herói torto, choveu o suficiente para interromper por duas vezes a exibição do grupo Galpão. O que poderia ser um desastre transformou-se num detalhe de congraçamento entre palco e plateia. O público buscou se proteger do aguaceiro colocando cadeiras na cabeça ou fugindo para qualquer abrigo ali por perto. Aquilo parecia provocação de São Pedro, talvez para assegurar o interesse dos espectadores. A plateia ficou por ali, e quando a chuva cessou pediu com palmas ao elenco para que voltasse para concluir a sessão. Foram momentos de comunhão do teatro, em ato encarado pelos presentes como algo precioso. Bonito de ver.

Till, a saga de um herói torto, abriu ontem a 10ª edição Festival de Teatro de Fortaleza (Ceará), ao ar livre no Estoril, na praia de Iracema. É uma montagem do Galpão de tradição mambembe, popular, de rua, fincada na comédia com doses cavalares de reflexões sobre questões contemporâneas – da necessidade de se pensar sobre a exclusão dos que já nascem enjeitados, à vontade da ressurreição das utopias para um mundo melhor. A encenação é de 2009, com direção de Júlio Maciel, um dos integrantes do grupo mineiro; e já rodou o mundo. E isso traz a vivência do palco, mas também um desgaste do que poderíamos chamar do frescor do espetáculo. Talvez por isso, o fator surpresa do vento, da chuva, e principalmente da reação do público agregou valor de experiência única à exibição.

O texto de Luís Alberto de Abreu resgata Till Eulenspiegel da cultura popular da Idade Média. Essa figura do folclore alemão conserva parecença com Gargantua e Pantagruel, personagens de François Rabelais (1493-1553), na crítica aos pequenos poderes e na referência ao grotesco e ao escatológico, mas sem a radicalidade do autor francês. A cena em que o anão escafandrista é enfiado dentro da mãe do protagonista para arrancar o preguiçoso Till lá de dentro é “tempero Rabelais”, mas as ações na sequência são suavizadas e suas estripulias o aproximam de João Grilo, do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna.

O diabo é sempre sedutor, defendido por Chico Pelúcio

O diabo é sempre sedutor, defendido por Chico Pelúcio

Till nasce de uma aposta entre o Demônio e Deus. O Belzebu joga que o humano é criação falida e que bastaria tirar algumas de suas qualidades para a criatura cair em perdição. Till é a cobaia. O coitado já chega desprovido de qualquer inteligência útil e perde sua Consciência numa negociação com o Demônio.

Nessa peleja entre o Altíssimo e o Diabo, só o segundo aparece. Ele está vestido de vermelho e porta chifres que acendem. É defendido por Chico Pelúcio com graça e humor. Entra e sai do Inferno com estardalhaço e os efeitos de gelo seco.

As interpretações são propositalmente exageradas, para destacar o teor grotesco das personagens. Inês Peixoto interpreta esse presepeiro encantador, com desenvoltura explorando as facetas de tolo/esperto, poético mas com doses escatológicas.

Os três cegos que peregrinam em busca de Jerusalém. Foto: Ivana Moura

Os três cegos que peregrinam em busca de Jerusalém. Foto: Ivana Moura

Paralelamente ao percurso de Till, na sua luta pela sobrevivência e seus encontros com o diabo, também é mostrada a história de três cegos andarilhos (Alceu, Borromeu e Doroteu) que sonham em chegar a Jerusalém. O elenco trabalha com mais de uma chave interpretativa, incluindo a narração, com quebra da ilusão no interior da cena com a exposição da artesania teatral e da tradição do teatro épico.

O cenário, de Márcio Medina, traz alçapões de onde sai o diabo, deslizam Till ou emerge o anão escafandrista. Isso provoca efeitos que dão ritmo e agilidade na movimentação, que conquistam a plateia. Mas toda a estrutura está fincada na relação frontal.

Da competência do elenco já sabemos e do domínio da arte da representação. Os atores compõem figuras hilárias, grotescas, mas com algum toque de dignidade. O figurino esfarrapado é de impacto e robustece a ambiência da história, associada à maquiagem pesada.

Com humor, a peça investe na necessidade da utopia. E indica quão frágil e pequeno é esse humano formado de corpo, alma e consciência. A ação do trio de cegos capricha nas fissuradas relações humanas com suas disputas por poder, onde cabem dependência, ciúme, inveja e falsa bondade, entre outras coisitas.

Foi uma noite memorável. A saga foi tão bem recebida em Fortaleza que até o Diabo, que teoricamente perdeu a batalha para Deus e teve que devolver a Consciência de Till, conseguiu uma voluntária para subir ao palco e conhecer o seu cantinho quente.

Teuda Bara, Mãe de Till

Teuda Bara, Mãe de Till

FICHA TÉCNICA
Elenco

Antonio Edson (Borromeu / Povo / Anão)
Arildo de Barros (Parteira / Juiz / Camponês / Carrasco / Padre / Miserável)
Beto Franco (Parteira / Português / Padre / Camponês / Miserável)
Chico Pelúcio (Demônio / Camponês / Voz do Soldado)
Eduardo Moreira (Doroteu / Povo)
Inês Peixoto (Till)
Lydia Del Picchia (Parteira / Consciência / Cozinheira / Menino)
Simone Ordones (Alceu / Povo)
Teuda Bara (Mãe / Miserável)
Direção: Júlio Maciel
Texto: Luís Alberto de Abreu
Cenografia e Figurino: Márcio Medina
Direção musical – arranjos, adaptações e composições: Ernani Maletta
Preparação corporal para cena: Joaquim Elias
Iluminação: Alexandre Galvão, Wladimir Medeiros
Caracterização: Mona Magalhães
Adereços: Luiza Horta, Marney Heitmann, Raimundo Bento
Sonorização: Alexandre Galvão
Cenotécnica e contra-regragem: Helvécio Izabel
Assistente de figurino: Paulo André
Assistentes de cenografia: Poliana Espírito Santo, Amanda Gomes
Preparação vocal: Babaya
Técnica de Pilates: Waneska Carvalho
Construção do palco: Tecnometal
Ajudante de cenotécnica: Nilson Santos
Costureiras: Taires Scatolin, Idaléia Dias
Fotos: Guto Muniz / Casa da Foto
Projeto gráfico: Lápis Raro
Consultoria de planejamento: Romulo Avelar
Assessoria de planejamento: Ana Amélia Arantes
Assessoria de comunicação: Paula Senna
Estagiários de comunicação: Ana Alyce Ly e João Luis Santos
Consultoria de patrocínio: Mauro Maya
Assistente de produção: Anna Paula Paiva
Produção executiva: Beatriz Radicchi
Direção de produção: Gilma Oliveira
Produção: Grupo Galpão
Patrocínio: Petrobras

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A labuta do Galpão

Grupo Galpão estreia Tio Vânia. Fotos: Pollyanna Diniz

“Tudo tem o seu tempo determinado. E há tempo para todo propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou. Tempo de matar e tempo de curar; tempo de derribar e tempo de edificar”. Os integrantes da família russa tema do espetáculo Tio Vânia (aos que vierem depois de nós), nova montagem do grupo Galpão que estreou na última sexta-feira, no Festival de Curitiba, parecem ter absorvido essas palavras “emprestadas” do livro bíblico de Eclesiastes. Embora o tempo que se sobressaia nesse caso seja o da labuta e, mais ainda, o da resignação advinda das possibilidades e escolhas feitas ao longo da vida.

O grupo Galpão, de Minas Gerais, completa 30 anos em 2012, mas nunca havia levado aos palcos um texto de Anton Tchékhov. Antes de Tio Vânia…, só tinham tido a experiência de mergulhar na obra do dramaturgo russo quando foram dirigidos por Enrique Diaz no processo de criação de As três irmãs, em 2008, que foi registrado pelo cineasta Eduardo Coutinho, e virou o documentário Moscou. Para uma companhia tão afeita às montagens de teatro de rua, às comédias, a fazer música nos próprios espetáculos, o soturno Tio Vânia… é um desafio.

Galpão se desafia ao montar texto psicológico

O enredo traz uma família que vive numa propriedade rural. Todos ali passaram anos trabalhando sem descanso, principalmente Vânia (Antonio Edson) e a sua sobrinha Sônia (Mariana Lima Muniz, atriz convidada pelo grupo para participar da montagem). Com a chegada do seu cunhado, o professor Serebriákov (Arildo de Barros), metido a intelectual, e da sua jovem esposa Helena (Fernanda Vianna), Vânia percebe que levou uma vida medíocre. Que os anos passaram. Sente-se frustrado e impotente. Helena desperta paixão tanto em Vânia quanto no médico Ástrov (Eduardo Moreira), esse último desejo do amor de Sônia. Ainda estão no elenco Teuda Bara e Paulo André.

Mariana Lima Muniz interpreta Sônia

Os próprios atores já tinham dito, durante entrevista, que montar a peça foi uma forma de revisitar as suas próprias vidas e carreiras. O papel do ator, a trajetória do grupo. A direção da montagem ficou sob a responsabilidade da também mineira Yara de Novaes, que tem mesmo um perfil de realizar um teatro mais psicológico (fez, por exemplo, Noites brancas, de Dostoiévski; e, durante um período em que morou no Recife e deu aulas na UFPE, montou A história do zoológico, de Edward Albee, em 2001). “Esses atores são todos operários do teatro, trabalhadores dedicados. E a peça é sobre trabalho”, dizia a diretora.

O tom de antiguidade e conflito foi alavancado pela cenografia da peça, um dos seus méritos. A concepção foi de Márcio Medina (que também é responsável pelo figurino), que trabalha com o grupo pela quarta vez. São imagens muito bonitas. Como que fotografias amareladas, em tom sépia. Logo no início, a família está reunida numa mesa de madeira, tendo ao fundo uma árvore seca e cinco grandes colunas. Elas são movimentadas pelos próprios atores nas transições de cena e podem tanto reprimir quanto aconchegar. A luz, pensada por Pedro Pederneiras, do grupo Corpo, e o figurino que não é datado, mas entende-se que é antigo, complementam a concepção do que é montar Tchékhov para o Galpão.

Protagonista ficou sob a responsabilidade de Antonio Edson

As atuações são, como pede o texto, mais contidas do que as habituais montagens do grupo, mas não perdem o vigor, a força. Sustentam um texto que fala de sonhos, ilusão, frustração, trabalho, desejo. Em cena, os atores mostram um ritmo que leva o espectador a digerir aos pouquinhos aquela dramaturgia. Claro que pode melhorar ainda mais no decorrer das apresentações, com o trato cotidiano no palco com a história e a encenação. Desafio pequeno para tantos talentos, lapidados em 29 anos de companhia. Menor ao menos do que foi fazer essa viagem ao passado, ao inconsciente do grupo, às “colunas” de sustentação (como aquelas que seguram a casa da família) desses atores, para enfrentar Tchékhov pela primeira vez.

Grupo disse que gostaria de participar do Festival Recife do Teatro Nacional

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