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Cadengue deixa um vazio imenso no teatro

Encenador pernambuco estava remontando espetáculo Em Nome do Desejo. Foto: Reprodução do Facebook

Encenador pernambuco estava remontando espetáculo Em Nome do Desejo. Foto: Reprodução do Facebook

Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho
e os sonhos, sonhos são.
                                                 Calderón de La Barca

Antonio Edson Cadengue, um dos mais intensos encenadores brasileiros, morreu na madrugada desta quarta-feira (1). De forma súbita. Assim, de repente, como a morte chega e arrebata quem está muito ocupado com sua arte. O diretor, escritor e professor Cadengue preparava a nova montagem de Em Nome do Desejo, a partir da obra de João Silvério Trevisan. No fim de semana exibiu o primeiro ensaio aberto para o dramaturgo e passearam pelas praias de Pernambuco. Parecia feliz em levar de volta aos palcos seu maior sucesso, da década de 1990.

O que é a vida?, pergunta Calderón. Sabemos pouco. Antonio Edson deixa um vazio imenso e isso não é força de expressão. É real. A paixão pelo teatro exalava por seus poros; os olhos brilhavam. E como todo amante defendia sua arte com toda a força. Discordava, brigava. Nunca foi uma unanimidade. Colecionou afetos e alguns desafetos. Viveu profundamente as emoções, que articulava para os palcos.

Cadengue faleceu às 3h30, aos 64 anos. Levou uma queda em casa. Coisa que pode acontecer a qualquer um. Um acidente doméstico. Foi internado na unidade médica do Hospital Hapvida, no Recife. Complicou e chegou a óbito. “Infarto agudo secundário a uma arteriosclerose coronariana, que levou a um edema agudo do pulmão” é o que diz o laudo oficial como causa da morte.

O Teatro Valdemar de Oliveira será o palco para as despedidas, a partir das 8h de quinta (2). É uma merecida homenagem, já que o pesquisador escreveu sua tese de doutorado sobre o Teatro de Amadores de Pernambuco – TAP, do qual o Teatro Valdemar de Oliveira é sede. No livro ele avalia cinco décadas da história do longevo grupo teatral recifense. O trabalho foi publicado em dois volumes pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe).

O sepultamento será no Cemitério de Santo Amaro, às 15h desta quinta-feira.

Antônio Cadengue nasceu em Lajedo, no Agreste de Pernambuco. Foi um dos fundadores da Companhia Práxis Dramática, nos anos 1970, e criou no início da década de 1990 a Companhia Teatro de Seraphim.

Montou clássicos, como Sonho de uma Noite de Verão, de Shakespeare, muitas peças de Nelson Rodrigues – Toda Nudez Será Castigada, Senhora dos Afogados, Viúva, Porém Honesta e Doroteia e textos contemporâneos como os de Luís Reis: A filha do teatro, A morte do artista popular e Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade e de Aimar Labaki: Vestígios.

Mas qualquer palavra, essas palavras, tudo isso é muito pouco para falar de um artista tão brilhante, quer se goste ou não da arte que ele fazia. Ele deixa um vazio imenso. O teatro pernambucano está de luto.

Abaixo, um vídeo com um trecho da peça A Morte do Artista Popular, o merengue do Cadengue. Siga na luz.

 

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Puro Lixo diz até já

Stella Maris Saldanha na cena de plateia. Foto: Ana Araujo /Divulgação

Stella Maris Saldanha em cena de plateia. Foto: Ana Araujo /Divulgação

O espetáculo Puro Lixo, O Espetáculo Mais Vibrante da Cidade encerra sua primeira temporada no Teatro Hermilo Borba Filho, no Recife Antigo, neste domingo, com duas sessões: uma às 18h e outra às 20h. A peça estreou em 13 de agosto, com casa lotada em todas as apresentações, no teatro configurado para ter capacidade média de 90 espectadores. Cerca de mil pessoas foram conferir à montagem. Mas a peça se expande para além do palco. Campanhas eficientes nas redes sociais dão conta de iluminar teoricamente alguns aspectos da encenação, com o reforço dos ensaios que constam no programa e outras escrituras. Ficamos gratos com tanta generosidade intelectual. E garanto, isso não é uma ironia.

Algumas vivecas que foram à estreia comentaram que naquela noite não se sentiram identificadas com a cena, com o luxo e riqueza, com a calculada frieza da montagem. Mas o teatro alimenta esse caráter efêmero, mas dinâmico: cada sessão é única. E cada leitura depende tanto do dia de quem a recebe, das suas subjetividades e circunstâncias. Portanto… cada obra é singular na construção pelo espectador.

Clima de cabaré. Foto: Ana Aragão

Clima de cabaré. Foto: Ana Araujo

Montagem encerra o ciclo de investigação cultural, Transgressão em 3 Atos, voltada aos grupos teatrais pernambucanos Teatro Popular do Nordeste (TPN), Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e Vivencial. O trabalho foi desenvolvido em coautoria com Alexandre Figueirôa, Claudio Bezerra e Stella Maris Saldanha e publicada no livro Transgressão em 3 Atos – nos abismos do Vivencial, pela Prefeitura do Recife/Fundação de Cultura Cidade do Recife, em 2011.

Também foram erguidos os espeáculos Os fuzis da Sra. Carrar, de Bertolt Brecht, e O auto do salão do automóvel, de Osman Lins, em celebração ao Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e ao Teatro Popular do Nordeste (TPN), respectivamente.

A herança do Grupo de Teatro Vivencial, coletivo pernambucano que causou furor em Olinda/Recife entre 1974 a 1982  aportou em Puro Lixo, O Espetáculo Mais Vibrante da Cidade. O texto é assinado por Luís Augusto Reis, inspirado no artigo Vivencial Diversiones Apresenta: Frangos Falando para o Mundo, de João Silvério Trevisan, publicado no Lampião da Esquina (Rio de Janeiro, ano 2, n. 18, p. 15, nov. 1979). E tem direção de Antonio Edson Cadengue.

Os figurinos são de Manoel Carlos. Foto: Ana Araujo

O figurino, assinado por Manoel Carlos investe na criatividade dentro do universo manufaturado. Materiais novos, em combinação de cores, tecidos, apelo visual e praticidade na troca de artigo de roupa dos atores. As fotografias de Ana Araujo- que essas sim ficam para interpretações futuras -, são imagens de relevância estética. Na composição, na tonalidade, na apreensão de minúcias dramaticamente teatrais, na parcela de humanidade da valorização do teatro.

No elenco homens lindos: Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira. Que se fazem de macho, que se fazem de fêmea, que se fazem de trans. Eles se inventam e transitam entre papeis. De salto alto, eles deslizam pelo palco melhor do que muitas mulheres. Desfilam entre o glamour, o protesto, o deboche, a crítica de tudo isso.

Sabemos que não é fácil andar naquelas plataformas (quase diria pernas de pau). Tem gente que disse que comeria todos eles, numa referência à derradeira canção do espetáculo. Uma música no encalço do corrosivo, que brinca com ação de tributo aos transgressores do passado/presente deitando-os também como objeto de consumo. Do espelho do camarim até o público vira simulacro de si mesmo.  E os atores denunciam cultura na cadeia de produção em série; nem sempre são bem compreendidos.

Ator Gil . Foto: Ana Aragão

Ator Gil Paz no trecho da canção Meu Guri. Foto: Ana Araujo

O ator Gil Paz festeja Elza Soares com o trecho da canção de Chico Buarque Meu Guri . Está estreitamento vinculado à outra cena de exaltação da negritude plasmada contra o preconceito na passagem “seja herói, seja marginal. E a do Meu Sobrado no seu Mocambo, que expõe feridas atávicas do passado escravocrata.

Soube que a montagem esquentou. O elenco se apropriou dos espaços reais do teatro e fictícios da peça. Stella Maris Saldanha representa as mulheres do Vivencial. Representa as deusas daquele teatro debochado feito de sucata e brilhos tirados da alma.

Com uma elegância que a caracteriza Stella dá pinta do seu jeito, dá bronca, canta, erotiza o humor.  É uma interpretação apolínea. Mesmo que estivesse blasfemando ou dizendo todos os palavrões acho que manteria essa postura altiva/contida. Isso não é bom nem ruim. Eu aplaudo a elegância de Stella. Acho bonito. Nos Fuzis, no Automóvel, em Puro lixo.

“Nem anjos nem demônios, os atores de Puro Lixo, o Espetáculo Mais Vibrante da Cidade, têm no corpo e na alma os riscos próprios a esse ofício que exige conhecimento de si e do outro”, escreveu o encenador Cadengue nas redes sociais.

Que Puro lixo volte logo para uma próxima empreitada.

Marinho Falcão na cena de As Criadas. Foto: Ana Aragão

Marinho Falcão na cena de As Criadas. Foto: Ana Araujo

Essa entrevista com Stella Maris Saldanha foi feita nas horas tensas que antecederam à estreia. Por troca de mensagens. Outros textos foram postados. Faltava esse.

Sobre Puro Lixo, o Espetáculo Mais Vibrante da Cidade nós publicamos Uma festa para o Vivencial, no dia 11 de agosto de 2016.

Desbunde, transgressão e poesia do Vivencial, no dia 13 de agosto de 2016.

“A liberdade era vivida na imediatez daqueles tempos”, uma entrevista com o encenador Antonio Edson Cadengue, publicada em 15 de agosto de 2016.

As nervuras do luxo, crítica ao espetáculo publicada no dia 28 de agosto de 2016, mas que parece que ninguém gostou.

E viva o teatro!

Entrevista: Stella Maris Saldanha

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Stella Maris Saldanha. Reprodução do Facebook

“Não adianta fazer ou assistir teatro sem considerarmos as características do tempo em que vivemos. O teatro é o reflexo das realidades de uma época e não um fenômeno isolado cujas dificuldades sejam exclusivamente suas, mas de todo um processo criativo em crise.” Gostaria que você comentasse.

Sim, o teatro é filho do seu tempo, pois dialoga com o que lhe é contemporâneo. Mesmo fazendo uma viagem temporal, quer dramatúrgica, quer de linguagem, o tempo presente, como dizia o poeta, é sua matéria. Vejamos o caso do projeto Transgressão em 3 Atos, que rememora o Teatro Popular do Nordeste (TPN), o Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e o Vivencial. Trazê-los à cena atual, entre outras coisas, se justifica porque na sua contemporaneidade, ou seja, no momento em que atuavam, falavam do seu próprio tempo estando em desacordo com ele. Aliás, esta é a chave da contemporaneidade: o desacordo, porque ele propõe o alargamento contínuo de fronteiras.

Quando levamos ao palco as três montagens do projeto – Os fuzis da senhora Carrar (2010), Auto do salão do automóvel (2012) e agora Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade – não estamos apenas apresentando ao público de hoje estética e repertório do passado, mas fazendo ver que aquela história toda tem seus tentáculos no presente que nos incomoda. É disso que se trata. Ou seja; neste caso o que foi de ontem ainda é chama ardente.

Qual a dor e a delícia de cada um dos personagens da trilogia?

Comecemos pela personagem da primeira montagem do projeto, a Senhora Carrar. Bem, eu a havia interpretado aos 18 anos de idade. Uma aposta corajosa de Marcus Siqueira nas minhas possibilidades como atriz. Era, à época, a segunda peça da qual eu participava e a primeira em teatro adulto. Sou imensamente grata a Marcus Siqueira por ter me proposto esse desafio, quase um desatino. Então, voltar à mesma personagem 32 anos depois foi outro presente, e outro desafio. Eu tenho um caso de amor com a Senhora Carrar desde que a interpretei pela primeira vez em 1978. A expressão é esta mesma: um caso de amor.

Em Auto do Salão do automóvel, a delícia foi, primeiro, a estatura literária do texto de Osman Lins e, como falávamos antes, a sua contemporaneidade. É um texto quase profético. Em 1969 Osman Lins já enxergava o esmagamento do humano nos grandes centros urbanos do país, o avanço predatório do capitalismo sobre os espaços públicos. Agora, verdade seja dita, não foi fácil. Dar-me àquela experiência teatral com narrativa literária exigiu certa dose de desconstrução de tudo o que estava posto até ali. Foi um processo criativo em nada indolor.

E agora em Puro Lixo, outra experiência radical. Veja só: aos 18 anos – no momento do desbunde geral, da nudez, da politização do corpo – eu interpretava a Senhora Carrar, uma viúva de pescador lutando para manter os filhos vivos em plena guerra civil espanhola. Agora, aos 56, eu mergulho no universo ruidoso, transbordante e tropicalista do Vivencial, inclusive, com nudez. Parece um desafio invertido, né? Mais uma vez dou-me à vertigem.

Espetáculo Puro Lixo foi escrito a partir da matéria “Vivencial Diversiones apresenta frangos falando para o mundo”, publicada em 1979 por João Silvério Trevisan. Qual a estrutura e abordagem?

O texto de Luís Reis, no meu entendimento, conduz, à perfeição, à proposta primeira do projeto Transgressão em 3 Atos: uma interlocução entre a memória e o contemporâneo. Sim, porque não se trata de reproduzir uma experiência do passado, mas alinhavá-la às inquietações do presente. Usando como referência o que João Silvério Trevisan testemunhou sobre o Vivencial àquela época, Luís fragmenta e intercala lembranças, apelos sociais, irreverência, brincadeiras, ardências, atrevimento. Tudo à moda do Vivencial, mas à luz de reflexão e fruição de hoje.

Outro detalhe sobre o texto é que ele nos foi apresentado como uma obra aberta. Sujeito, portanto, às interferências decorrentes da rotina de ensaios e do processo criativo do grupo. O espetáculo apresentado ao público revela esse texto-processo, amálgama da carne viva do Vivencial de outrora e do testemunho que agora bradamos, com afeto, sobre tudo aquilo existido e existindo. Mas, para além da dramaturgia proposta por Luís Reis, gostaria de dizer ainda que tanto a montagem de Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade, como as duas montagens antecedentes do projeto Transgressão em 3 Atos, não representam um testemunho saudosista. Aos desavisados de plantão informo que tanto o Vivencial, como o Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e o Teatro Popular do Nordeste (TPN) foram por nós focados como experiências pertencentes à esfera pública, às quais, à bem da criticidade e da memória, devemos observância. Fico, pois, com as palavras de Eric Hobsbawm em suas reflexões sobre o século XX: “os acontecimentos públicos são parte da textura de nossas vidas”.

Foto: Ana Aragão / Divulgação

Cena final de Puro Lixo.Foto: Ana Araujo / Divulgação

Serviço
Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade
Quando: Domingo, dia 4 de setemro, às 18h e 20h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho
Quanto: R$ 20,00 (inteira) e R$ 10,00
Indicação: Para maiores de 16 anos

Ficha Técnica
Elenco: Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira, Stella Maris Saldanha
Texto: Luís Augusto Reis
Consultoria: João Silvério Trevisan
Encenação: Antonio Cadengue

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As nervuras do luxo

Stella Maris Saldanha no espetáculo Puro lixo. Foto: Ana

Stella Maris Saldanha no espetáculo Puro lixo. Foto: Ana Aragão

Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade sustenta provocações desde o título. Atração e repulsão de unidades semânticas atravessadas por signos vindos das mais diversas origens. Conduz a ironia bem-comportada do dramaturgo Luís Augusto Reis em sua interpretação do mundo e de um período histórico que ele viu pela janela. E carrega o encantamento classe média do então jovem diretor com um tipo de teatro que jamais adotaria em sua estética. Fascínio idêntico comungado por alguns integrantes da trupe. Esses, também remediados, eram movidos pela busca por liberdade – materializada na exposição dos corpos nus ou seminus, na repetição de palavras de ordem, ou totalmente em desordem. Servidos como finas iguarias a uma sociedade ávida por consumir o exótico, o estranho, o diferente nas artes – o caranguejo da lama das cênicas – , supunham que chocavam.

A montagem nega sua própria nomeação. O que vemos no Teatro Hermilo Borba Filho – ou, no mínimo o que eu vi, numa sessão da temporada – foi uma encenação distante do que desperta a palavra vibrante – animada, eufórica, entusiasmada, extasiada. Ou pelo menos eu não fui afetada por essas ideias e sensações.

Em alguns momentos me pareceu algo glacial, como se fora arquitetado com essa intenção de distanciamento. De produzir uma crítica aos produtos e aos produtores que o tempo vai dando um jeito de embalar de várias formas. Não sei se o objetivo era expor com veemência a perda de todas as certezas. Inclusive a do lugar ocupado pelo Vivencial, da origem até suas facetas posteriores. Da coragem de cutucar o dragão até ser situado como praticamente um mainstream.

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Paulo Castelo Branco, Marinho Falcão, Eduardo Filho, Samuel Lira, Gil Paz. Foto: Ana Aragão

O que é a verdade? A pergunta de Pilatos prossegue pulsante. Então, o que era de fato esse Vivencial, que depois de 30 anos vem recebendo as mais honrosas homenagens? O grupo que nasceu com o pé na lama, as mãos dispostas para a luta e para a fechação, o corpo ardente de desejos contraditórios, mas sempre disposto a provocar. O coração em chamas de alegria e esperança, porque sim, acreditavam no fundo que iriam mudar o mundo. O seu pedaço de mundo. E mudaram…

Não conheci o Vivencial autêntico. O que dele sei é por livros, artigos, entrevistas com ex-integrantes, conversas com amigos recentes que participaram do grupo. A minha composição dessa trupe é a partir da memória dos outros. Dos filtros dos outros.

Henrique Celibi, a mascote do bando, a figura que talvez melhor tenha incorporado e processado o sopro vital daquela época, porque continua a engendrar personagens e situações atesta: “nós, as vivecas éramos terríveis”. Não duvido mesmo!

E talvez a partir daí abram-se fendas entre o grupo celebrado, o Vivencial, e a montagem Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade, dirigida por Antonio Edson Cadengue.

O encenador elenca como alicerce nessa empreitada os anjos, enquanto o clima nos bastidores da trupe olindense não era nada angelical. Não vou entrar nos méritos das categorias de anjos; até porque não entendo de coisas celestiais. Bem que gostaria, confesso. Mas o embate com os humanos em toda sua complexidade já me suga demais o espírito.

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Cenografia de Otto Neuenschwander remete ao palco e aos bastidores

Pós-tropicalista, sob a influência da contracultura, o Vivencial arrebentou com as tradições hegemônicas da Pernambucália. A trupe chegou para injetar novas ideias no território da cultura dominada pelo regionalismo e pelas convenções. A proposta era subverter o estabelecido. Desafiar a política, ir para o confronto. Sob a liderança de Guilherme Coelho, aspirante a abade que exaltava o profano, que contrabandeava as vocações da alma para concretizar nos prazeres de carnes trêmulas e tenras.

Esse bando inventava sua arte sem se importar com unidade dramática ou enredo. E virava as costas para estruturas aristotélicas. A falação sobre sexualidade ganhava aparência radical nas peças abarrotadas de ironias e deboche. Transgredir os valores vigentes –  sociais e estéticos – era o habite se.

O então demolidor Jomard Muniz de Britto, cineasta, escritor, professor, tropicalista, autor do Inventário de um Feudalismo Cultural (1974) estava sempre por perto para incendiar com seus conselhos, indicando caminhos, fervendo o verbo.

Mas os tempos são outros. Se lá atrás, os atritos e confrontos eram combustíveis para tomar posicionamentos, hoje impera a apatia cuja face mais degradante é o confisco de 54 milhões de votos.

É!!! Os tempos são outros e as personalidades, todas são boazinhas. Caras, coroas e caveiras campeões em tudo. Nunca tiveram um ato ridículo, nunca sofreram enxovalho como no poema de Pessoa.

Enquanto eu fui ali em Marte pegar um fogo emprestado, ao voltar me deparei com antigos desafetos sorrindo para compor o mesmo quadro, brindando junto, gente que comenta horrores pelas beiras estavam a felicitar unido. Parecia uma repetição seriada do que ocorre no seio do poder. Mas talvez sejam delírios meus, logo agora que não consumo álcool há séculos; desvarios por abstinência às drogas que nunca consumi. Mas isso realmente não tem importância, pois somos todos “farinha do mesmo saco, da mesma marinha… Sob a mesma bandeira”, pelo menos os do teatro. É tudo ficção.

Puro lixo

Iluminação de Luciana Raposo explora inclusive os reflexos de espelhos

Mas a peça é ou não uma homenagem ao Vivencial?

Sim, um tributo. Mas recheado de camadas de teóricos, de referências.

O potente laboratório de experimentação que foi o Grupo Vivencial é submetido a análises. É esquadrinhado, justaposto, invertido, devorado pelo tempo, vomitado junto com traumas e alegrias do caminho. E são muitas pinceladas de verniz.

O dramaturgo Luís Augusto Reis é muito hábil em vasculhar processos teatrais. Em celebrar essa arte fugidia, em perscrutar os seus sentidos.

É assim com A filha do teatro, que recebeu o Prêmio Funarte de Dramaturgia em 2003, pelo texto, e é narrada a partir de três pontos de vista diferentes. Perspectivas diversas, esses eixos explodidos também marcam a peça Puro lixo.

Para o ensaísta francês Maurice Blanchot, a narrativa deve ser compreendida como o próprio acontecimento. A filha do teatro confabula com essa ideia. As engrenagens são expostas na peça.

Em A Morte do Artista Popular, Luís Reis ergueu uma farsa sobre editais e concorrências de verbas públicas para a cultura e evidencia os bastidores desses processos, investigando os procedimentos teatrais. Reis tem facilidade em investir no metateatro de maneira criativa.

Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade encerra a trilogia Transgressão em 3 atos, iniciada em 2008. O projeto cultural, produzido pelos jornalistas e professores Alexandre Figueirôa, Claudio Bezerra e Stella Maris (também produtora e atriz), amealhou três importantes grupos pernambucanos que atuaram nos anos 1960, 1970 e início dos 1980: o Teatro Hermilo Borba Filho (THBF), o Teatro Popular do Nordeste (TPN)  e, por fim, o Vivencial. As pesquisas originaram as encenações de Os fuzis da Senhora Carrar, de Bertolt Brecht (2010), com direção de João Denys; Auto do Salão do Automóvel, de Osman Lins (2012), com direção de Kleber Lourenço.

O texto-roteiro de Luís Augusto Reis foi composto a partir do artigo de João Silvério Trevisan, Vivencial Diversiones apresenta: frangos falando para o mundo, publicado pelo jornal Lampião da Esquina, em novembro de 1979, quando a trupe fundou em Olinda um espaço próprio chamado Vivencial Diversiones.

Engrenagens do teatro são expostas

Engrenagens do teatro são expostas

A crônica de Trevisan é tomada como leitmotiv do espetáculo. Nessa história fracionada a prática do teatro ganha relevo. Cadengue proclama que a obra é um tributo e não uma reprodução. Faço ligação direta com René Magritte… Ceci n’est pas une pipe (Isto Não É um Cachimbo).

A peça segue os passos das montagens do Vivencial que lançava mão de crônicas, reportagens, contos, textos escritos não especificamente para o palco como matéria-prima, para recriar livremente em cena. O dramaturgo também aplica os atributos da obra vivenciana como reciclagem, colagem e superposição para cunhar uma cena em que os atores Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira e Stella Maris Saldanha atendem pelo próprio nome.

E Puro Lixo exibe uma série de engrenagens a serem elaboradas pelo espectador. O revezar do foco dramático robustece o “tempo” como representação.

O encenador que tem no seu currículo clássicos de vários matizes flerta com outro tipo de teatro de pesquisa, com o teatro contemporâneo. É um audaz deslocamento, mesmo que seja breve, e atesta que é difícil para essa arte tão efêmera ficar grudada às glórias do passado.

O discurso não reproduz a diversidade conflituosa daquele microcosmo. E, segundo o diretor, essa não era a intenção.

O espírito do grupo de teatro Vivencial é difícil de agarrar. Seria um erro mumificá-lo ou o reverenciar como um marco grandioso. Isso talvez ficasse mais próximo de uma apologia passadista. O Vivencial virou um “clássico” da cena brasileira, mas isso não pode apagar as contradições e impasses que o marcaram.

Antonio Edson Cadengue insiste que nessa dramaturgia estilhaçada e sem personagens bem delimitados cintilam flashes de cenas da trupe. Como exemplos o diretor elenca, no seu texto do programa, uma “estranha’ Marlene Dietrich, do filme Anjo azul; uma Janis Joplin drogada e bêbada; a disputa pelo protagonista na apresentação do show de variedades Bonecas… ou Frangos falando para o mundo entre Petrônio de Sena e a Marquesa (o ator Marcos Quenza), a cena Nem Tão Viúva, Nem Tão Honesta e menções a muitas vivecas como Lara Paulina, Paulete Godard, Luciana Luciene e Lee Marjories.

E de repente alguém do elenco tasca um oxe mainha. Essa referência mais largamente conhecida de Cinderela, a história que sua mãe não contou, da Trupe do Barulho, aponta para a criatividade febril de Henrique.

Mas tantas particularidades dificultam o espectador sem ampla bagagem, acho eu.

Cena de Nem tão viúva, nem tão honesta

Cena de Nem tão viúva, nem tão honesta

A arte desse bando de vivecas se contrapunha ao expediente da indústria cultural, que dita o consumo, as necessidades, os desejos e os valores dessa massa.

Em princípio pensei que a encenação de Puro lixo talhava para o procedimento da cultura pasteurizada, nas suas dobras, e do espetáculo poderia submergir ao fazer alusão a um grupo feérico, mas que não pulsa no mesmo diapasão. Refiz a trilha do pensamento.

Esse Puro lixo não é palatável a grande massa de consumidores. É até difícil de consumir pensando na imagem da alegria esfuziante, sem uma lágrima de tristeza. A montagem parece que foi tateando, dizendo vem comigo, no caminho eu explico, porque também estava a descobrir. Expôs os nervos.

Parece que a obra criadora e crítica de Puro lixo persegue seu próprio destino radical para não se tornar apenas entretenimento, não ficar esvaziada de si mesma. Ao olhar o passado com generosidade e ter certeza que não é possível repetir a mesma força, o mesmo brilho, o mesmo frescor. E como se tornou árdua essa tarefa de celebrar esse grupo tão polifônico.

Cadengue insinua ampliar o sentido teatral da narrativa, com a compreensão de incluir até mesmo a plateia, que conheceu o grupo original, como recurso de encenação.

Gil Paz em primeiro plano, de fraque e cartola

Ao adentrar no Hermilo Borba Filho, um homem lindo, de dois metros de altura, ostenta um tabuleiro com bombons, cigarros e outras bugigangas. É Eduardo Filho, montado em uma plataforma, assim como outros colegas. Enquanto o público se acomoda, eles oferecem seus produtos.

O elenco se doa à encenação e há destaques para cada um deles, no revezamento do protagonismo da cena. Gil Paz ganha destaque na cena de protesto contra o racismo e uma dublagem de Elza Soares. Samuel Lira, de salto alto tocando sanfona. E eles vão revelando uns segredos dos bastidores. Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, todos ótimos atores. A cena não pulsa na mesma dicção e às vezes sentimos o beliscão avesso do riso largo.

Com a escolha de olhar de soslaio o vulgar, o baixo cômico, predominantes no Vivencial, a montagem de Puro Lixo se afasta da gana terrível e das picuinhas de bastidores. Faz falta porque afasta o riso do deboche, de uma maldadezinha muito comum nas coxias teatrais. Os demônios da pinta, da fechação, da frescura e da viadagem parecem contidos demais no desempenho dos atores.

Stella Maris Saldanha representa as integrantes mulheres do Vivencial. As figuras femininas do grupo tinham que dar o truque para ficar no centro dos holofotes, diante daquele bando de homens, bi, trans. Cada uma que se garantisse. Com charme, potência, garra, esperteza. É louvável a coragem de Stella ao encarar esse universo. Suas personagens são mais solenes, aqui e ali é que ganham um toque mais depravado.

Quanto às cenas dos protestos ausentes, da violência, da negritude, do feminicídio mesmo que não seja uma proposta original ou inovadora, mas é um artifício que provoca uma inquietação. Ou incômodo.

Figurinos de Manuel Carlos.

Figurinos de Manuel Carlos.

Os figurinos de Manuel Carlos são harmoniosos no seu conjunto. De uma beleza do luxo, mesmo as simples sungas dos rapazes. É um guarda-roupa prático para a troca de peças que os atores vão alternando.  Valoriza o corpo dos atores e salienta as ambiguidades.

A derradeira música da trilha sonora original de Eli-Eri Moura corteja as vivecas originais, mas também paquera com figuras do teatro pernambucano. “O Magiluth eu comeria”. Intervenções sonoras e ruídos se ajeitam com saudações às músicas de filmes. O clima proposto é de cabaré dos anos 20 e 30.

A cenografia de Otto Neuenschwander materializa o aspecto metateatral, com camarim dos atores, palquinho, com cortina e uma boca enorme na parte de cima a convocar o espírito do Vivencial.

A iluminação de Luciana Raposo investe na dupla função de revelar e esconder as transformações dos atores, criando brilhos projetados nos espelhos, lâmpadas de toucador. Surpreendendo.

Puro lixo está em cartaz no Teatro Hermilo Borba Filho só até 4 de setembro de 2016. Sábados e domingos às 18h. Confira e tire suas próprias conclusões.

Serviço
Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade
Quando: De 13 de agosto a 4 de setembro, sempre aos sábados a partir às 18h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho
Quanto: R$ 20,00 (inteira) e R$ 10,00
Indicação: Para maiores de 16 anos

Ficha Técnica
Elenco: Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira, Stella Maris Saldanha
Texto: Luís Augusto Reis
Consultoria: João Silvério Trevisan
Encenação: Antonio Cadengue

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“A liberdade era vivida na imediatez daqueles tempos”

Puro lixo. Foto: Rodrigo Monteiro

Puro lixo – o espetáculo mais vibrante da cidade celebra o Vivencial. Foto: Rodrigo Monteiro

Puro Lixo – O Espetáculo Mais Vibrante da Cidade, a derradeira parte do projeto Transgressão em Três Atos,  estreou no fim de semana no Teatro Hermilo Borba Filho, onde fica em cartaz aos sábados e domingos até 4 de setembro. O projeto Transgressão foi iniciado em 2008 e rendeu as encenações Os fuzis da Senhora Carrar, de Bertolt Brecht (2010), com direção de João Denys, em homenagem ao Teatro Hermilo Borba Filho (THBF); e Auto do salão do automóvel, de Osman Lins (2012), com direção de Kleber Lourenço, que celebrou o Teatro Popular do Nordeste (TPN). O programa leva a assinatura dos jornalistas e professores Alexandre Figueirôa, Claudio Bezerra e Stella Maris (também produtora e atriz).

Desta vez a ode é ao Grupo Vivencial – que entre precariedades e purpurinas dava seu grito de liberdade em plena ditadura militar. De cara o dramaturgo Luís Reis e o diretor Antonio Cadengue chegaram ao consenso de que a encenação não iria tentar reproduzir a experiência do Vivencial.  “Os tempos são outros, então o que queremos é pensar o Vivencial hoje, refletindo também sobre o papel do teatro”, destaca o encenador.

A base para a dramaturgia foi o artigo Vivencial Diversiones apresenta: Frangos falando para o mundo, de João Silvério Trevisan, publicado no jornal Lampião da Esquina, em novembro de 1979, quando a trupe inaugurou sua sede nos limites entre Recife e Olinda, o Vivencial Diversiones.

No elenco de Puro lixo estão os atores Eduardo Filho, Gilson Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira e Stella Maris Saldanha.

Puro lixo. Foto: Rodrigo Monteiro

Gilson Paz, em primeiro plano, e Stella Maris Saldanha em Puro lixo. Foto: Rodrigo Monteiro

A estrutura da peça mostra uma noite num cabaré, onde são apresentados experimentos cênicos, flashes das memórias dos artistas nos bastidores, e a defesa de posicionamentos, como o de dar pinta como recurso do fazer político. Cadengue diz que a montagem expõe feridas da nossa sociedade e que toca em questões fortes da teoria queer, de gênero, de raça.

“A conjunção de todas as cenas resulta em algo muito sofisticado (você pode perceber que uma fala dita por um personagem em off no início da peça, vai reverberar em carnadura noutra cena mais adiante)”, pontua Cadengue.

Com a palavra, o encenador.

Entrevista // ANTONIO EDSON CADENGUE

Foto: Yeda Bezerra de Melo

Foto: Yeda Bezerra de Melo

O grupo Vivencial é apontado como um oásis de liberdade naquele tempo de ditadura. Que diabo de liberdade era essa?

Tenho a vaga lembrança que a liberdade não era “uma calça suja e desbotada”, mas algo por vir, algo que se conquistava no exato momento em que se realizava, algo vivido na imediatez daqueles tempos. Talvez a isto se chame oásis. Mas isso não era simples: viviam-se amores e perdições, vivia-se com felicidade a incerteza, porque não interessava, a mim parece hoje, o futuro, mas o presente.

Como é a peça Puro lixo? São quadros justapostos? Revelando os bastidores? As luzes da ribalta?

A dramaturgia de Luís Reis, a partir da reportagem de João Silvério Trevisan, agrupou outras cenas que trouxeram aos dias de hoje algo inusitado, mesmo quando parecem serem meras paródias: a conjunção de todas as cenas resulta em algo muito sofisticado (você pode perceber que uma fala dita por um personagem em off no início da peça, vai reverberar em carnadura noutra cena mais adiante). A peça não revela os bastidores: ela é a revelação da associação íntima entre a cena e a plateia.

Tive ontem (sábado), na estreia, a sensação de que já havia, antes de fazer a peça, um diálogo muito animado com Karl Valentin e Frank Wedekind. Uma sensação esquisita, mas pulsante: cheguei a pensar que Brecht estava assistindo ao Puro Lixo, completamente entusiasmado ou entediado. É que Valentin e Wedekind foram admirados por Brecht e ele poderia estar considerando uma heresia eu ter-me utilizado de procedimentos epicizantes como aqueles que estão presentes em O Despertar da Primavera.

Ou no caso do cômico Karl Valentin, de quem recebeu influências determinantes para a elaboração de muitas de suas obras, onde a ironia e o grotesco estão em sintonia e se abrem a uma educação dos sentidos, uma leitura crítica, sem didatismos. Melhor: tendo-se uma atitude racional e crítica perante o mundo, para não dizer que não falei de flores. Não tive como esquecer os cabarés alemães do pré-guerra, que produziu, dentre outras obras no cinema, Anjo Azul, fantasmal na montagem (escute a bela trilha de Eli-Eri Moura…) e… Quanto à ribalta, neste caso, perdeu seu chão, há tempo: preferi que ela se espalhasse pelos ares, por isso Luciana Raposo nos deu a luz que foi possível em tão precárias condições.

Equipe de Puro lixo: Samuel,Paulo,Stella Eduardo, Marinho e Gil: Manoel, Antonio e Igor. Foto Yeda Bezerra de Melo

Equipe de Puro lixo: Samuel,Paulo,Stella, Eduardo, Marinho, Gil; Manoel, Antonio e Igor. Foto: Yeda Bezerra de Melo

Como funcionam esses personagens anjos?

Como digo no programa da peça, são anjos que têm luz própria por serem anjos erráticos, cambiantes: “Por vezes, os atores Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira e Stella Maris Saldanha são eles mesmos; outras vezes, desfazem a si próprios: esse é o movimento desta peça em fragmentos. Os intérpretes têm consigo a incompletude de seus personagens. Há um fluxo de vozes que se cruzam no palco, como se um coro fizesse uma narração em que reverbera um esgarçado diálogo, um comentário fingido, uma citação identificável e, ao mesmo tempo, tudo atravessado. Neste ato de criação, neste jogo, há um prazer infindo. Poder-se-ia dizer que, nesse aspecto, nesse ponto, paira sobre o trabalho dos que compõem o elenco, uma espécie de gozo, pelo desdobramento de tantos seres alheios a cada um deles. Gozo pela vivência dos atos de criação, gozo coletivo, não solitário. Gozo por tomar figuras que devem ser tomadas como suas, mesmo que por pequenos átimos.” Nada a acrescentar ao que foi dito e trabalhando em cena. Arduamente.

A precariedade do Vivencial serviu de trampolim para criar uma estética de desbunde, da irreverência e da transgressão? Como isso chega ao espetáculo Puro lixo?

Chegamos a uma configuração estética por meio da transcendência (se isso é possível) ao desbunde, já tendo ele se firmado na cultura brasileira e especialmente no Recife. O desbunde e a irreverência estão enraizados em nós, como o Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, mas agora sob novas dimensões. Sob nova dentição.

Foi noticiado que o ator Gilson Paz protagoniza um manifesto contra o racismo no espetáculo? Como é isso? Há outros manifestos?

É tudo verdade e mentira. Como no teatro. É o momento mais evidentemente político do espetáculo, uma fratura na representação.

Você afirmou que “Os personagens e situações evocados são narrados, comentados, representados, sobretudo tratados com jocosidade e, ao mesmo tempo, pertinência, no que concerne à sexualidade e à realidade brasileira”. Gostaria de saber como entra essa jocosidade. Esse procedimento, que desperta ambiguidade, pode ser considerado tipo veneno, mensagem subliminar com endereço certo?

Não há perversidade alguma no que fazemos, mas celebração ao teatro de ontem, de hoje e de sempre. E, em se tratando de teatro, lá se espraiam a jocosidade, a seriedade, a sexualidade… E tudo isso no contexto em que vivemos: o Brasil.

“Não adianta fazer ou assistir teatro sem considerarmos as características do tempo em que vivemos. O teatro é o reflexo das realidades de uma época e não um fenômeno isolado cujas dificuldades sejam exclusivamente suas, mas de todo um processo criativo em crise.” O que dizer sobre isso?

Este era um texto-chave que o Grupo de Teatro Vivencial usou e abusou em várias de suas montagens. É o texto de uma época que ainda ressoa hoje, com certeza. Mas penso que todo processo criativo está em permanente crise, senão torna-se impossível viver sem estar em crítica permanente. Crise-Crítica. De raiz.

Sabemos que o Vivencial não nasceu unanimidade. Foram muitos embates e tensões enfrentadas pelo grupo, inclusive com a rivalidade de outros coletivos “mais sérios” da época. O tempo, como sempre, trata de canonizar pessoas, grupos etc. Como apontou João Silvério Trevisan, o Vivencial foi uma das experiências mais fascinantes e originais na transfiguração do lixo em beleza. Mas “Um dia o Vivencial acabou. Sua ambiguidade se esgotara, sua originalidade também. Não sei até que ponto o sucesso foi responsável por seu fim. Arrisco a dizer que o Vivencial não conseguiu sobreviver porque se aproximou demais dos centros de poder e, com isso, abandonou a difícil arte da corda bamba que a marginalidade lhe permitia. Secou. Ao absorver sua proposta, a sociedade cooptou o grupo e transformou-o num modismo rapidamente exaurido. Assim confiscou-lhe o passaporte para a poesia”.

Poderia comentar… os apontamentos de Trevisan?! O poder acaba com a irreverência e a poesia?

O próprio João Silvério Trevisan, responde de maneira enviesada (porque não trata agora do Vivencial), a questão maior que você levanta: se é possível hoje haver transgressão, em meio à sociedade do espetáculo. Copio o texto de Trevisan publicado no e-book do SESC Pernambuco (2016): “Nas circunstâncias atuais da sociedade espetacular e de cultura narcísica ser transgressivo (ou maldito) pode se reduzir a uma grife para conquistar mídia e mercado. Criou-se uma fórmula narcisista para aparecer graças à condição transgressiva. Hoje existem muitos artistas autointitulados marginais que cultivam a “maldição” como instrumento de marketing e, em consequência, de poder. Lembro de um personagem como o cantor Mano Brown, do grupo musical Racionais MCs. Ostenta há anos um discurso político cheio de chavões de rebeldia, bota pose de machão marrento em fotos de coluna social e chega a frequentar eventos burgueses para celebrar… a periferia. Chegou-se ao nível do mais autêntico radical chic (na expressão americana) ou revolucionário de algibeira. Em outras palavras, um maldito para alto consumo.”

Mas o que mais chama atenção no texto de Trevisan são algumas de suas considerações finais (infelizmente não pudemos publicá-lo no programa, por razões de ordem econômica): “Cabe aqui a pergunta: o conceito de transgressão perdeu o sentido e se esvaiu? Se transformado em fórmula para consumo, sim, sua força se esvaiu. Mas se levada até a última instância, a transgressão continua incomodando. Afinal, transgredir é próprio da criação, da poesia, da invenção que está na base de toda arte. Trata-se, tão somente, de subverter a subversão. A desmistificação do conceito de transgressão leva necessariamente à subversão do próprio conceito mistificado – e tem potencial para renovar a transgressão. O componente “maldito” permanece apesar e contra as aparências e obviedades, desde que mantenha sua transgressividade viva. Ao invés de consumir o rótulo de “maldito” como uma grife, é preciso lembrar que a transgressão não se confunde com um musical cheio de glamour, tal como faz crer a cooptação dentro da sociedade do espetáculo. Simplesmente não há glamour na vida que se põe à margem. O quotidiano na realidade de quem a sociedade coloca o rótulo de maldito acarreta, quase necessariamente, incompreensão, injustiça e dor, na medida mesma das punições impostas a quem diverge das regras impostas.” Tenho dito.

No que concerne à cena, muitos procedimentos adotados pelo Vivencial e que eram considerados sujeira ou falta de rigor formal, são adotados na produção da cena contemporânea. Poderia comentar?!

Muito do que hoje se considera “arte” pode ser qualquer coisa. Ali, havia uma necessidade estética e ideológica que permitia um rigor formal da sujeira. Hoje, não sei.

Qual a sua ligação com o Vivencial, além da montagem de Viúva, porém Honesta, de 1977, e do relacionamento com Beto Diniz?

Uma ligação próxima e, ao mesmo tempo distante com Guilherme Coelho e com todos os que eu pude conviver à época de Sobrados e Mocambos. Especialmente quando o grupo morava em Santa Teresa, em Olinda, e eu praticamente me mudei para lá. Mas havia, sobretudo, um encantamento por tudo que estava longe de meu horizonte de expectativas: aquela cena era tudo que eu admirava, mas jamais a faria como reprodução, por ter outra formação estética (no entanto, homenageei o Vivencial em um espetáculo que fiz na Universidade Federal da Paraíba, em junho de 1980: Soy loco por ti latrina e no programa escrevi algo assim: sem a estética do Vivencial, este espetáculo não teria sido viável). Amava a “sujeira” dos espetáculos do grupo, sua “precariedade”, mas era um encantamento para mim mesmo, deleite pessoal sem que reverberasse na minha cena.

Stella Maris Saldanha. Foto:

Stella Maris Saldanha. Foto: Rodrigo Monteiro

SERVIÇO
Puro Lixo – O Espetáculo Mais Vibrante da Cidade
Quando: de 13 de agosto até 4 de setembro, sempre aos sábados às 18h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho (Cais do Apolo, s/n, Bairro do Recife)
Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia-entrada)
Classificação: 16 anos
Informações: (81) 3355-3320

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Desbunde, transgressão e poesia do Vivencial

Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade. foto: Ana Araújo

Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade. Foto: Ana Araújo

A trajetória do grupo de teatro Vivencial é um caleidoscópio de múltiplas vozes. É uma história contada por muitos. Nasceu mambembe, marginal, transgressor, político-anárquico, com marcas tropicalismo e sede de liberdade. Neste sábado (13/08) estreia Puro Lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade, no Teatro Hermilo Borba Filho. A trupe começou como um trabalho da pastoral com a juventude, ligado à Arquidiocese de Olinda e Recife. Mas se superou e chega ao presente com aquela aura mítica dos times que desafiaram seu tempo.

Escrita por Luís Reis e dirigida por Antônio Cadengue, a peça celebra o Vivencial, que de 1974 a 1983 alimentou os anseios de soberania e emancipação. No seu quadro conviviam artistas marginalizados por suas opções sexuais, políticas, estéticas.  Em meio à precariedade, as vivecas erguiam coletivamente montagens  desbundantes para criticar as repressões política e sexual da época.

O tempo tratou de criar e alimentar os mitos. De Guilherme Coelho, menino prodígio que um dia quis ser abade à teatralização de vivências desses jovens. Transexuais, homossexuais, bissexuais, que sofriam de violência, vítimas de drogas, massificação e da ignorância. A proposta era tirar essas criaturas do lugar de invisibilidade, permitindo que eles assumissem o protagonismo de suas cenas, na vida e no palco.

“O grupo deixou de ser mambembeiro para se instalar numa casa de taipa de taipa que adquiriu em Salgadinho, numa área alagada e desvalorizada, por um preço insignificante de Cr$ 20 mil, em 1978. Ali, instalou sua oficina de trabalho e foi levantando as paredes da casinha, adaptando-a a um salão de funções teatrais. Os integrantes do conjunto passaram, Inclusive,a residir no local, temporariamente, até quando estivesse pronto seu trabalho”, escreveu o jornalista e crítico teatral Valdi Coutinho, para o Diario de Pernambuco, no artigo O Teatro Pernambucano à procura de caminhos alternativos em 1980.

Com elenco formado por Eduardo Filho, Gilson Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira e Stella Maris Saldanha, o espetáculo encerra a trilogia Transgressão em 3 atos, iniciada em 2008. O projeto cultural, desenvolvido pelos jornalistas e professores Alexandre Figueirôa, Claudio Bezerra e Stella Maris (também produtora e atriz), debruçou-se sobre três importantes grupos pernambucanos que atuaram nos anos 1960, 1970 e início dos 1980: o Teatro Popular do Nordeste (TPN), o Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e, por fim, o Vivencial.

Renderam as montagens Os fuzis da Senhora Carrar, de Bertolt Brecht (2010), com direção de João Denys; Auto do salão do automóvel, de Osman Lins (2012), com direção de Kleber Lourenço.

Montagem faz 10 apresentações no Teatro Hermilo Borba Filho

Montagem faz 10 apresentações no Teatro Hermilo Borba Filho

Puro Lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade estreia neste sábado e terá apresentações todos os sábados e domingos, às 18h, até o dia 4 de setembro, no Teatro Hermilo Borba Filho. E, no último final de semana, com sessões às 18h e 20h. Os ingressos custam R$ 10 (meia) e R$ 20 (inteira).

ator Gilson Paz distribui manifesto contra o racismo

Ator Gilson Paz distribui manifesto contra o racismo

“Esboçamos uma encenação em que relampejam, aqui e ali, pequenos flashes de cenas que, de alguma forma, trazem de volta figuras do Grupo de Teatro Vivencial. Por exemplo: em determinado momento, temos uma “estranha’ Marlene Dietrich, do filme Anjo azul, quase extraída dos Ensaios espontâneos, uma realização de Beto Diniz; em outro momento uma Janis Joplim drogada e bêbada, que vai deixando seringas pelo chão, fisgada do espetáculo Bonecas falando para o mundo, que vai à cena pelas mãos de Guilherme Coelho”, discorre Antonio Cadengue no progrma da peça.

“Também se pode presentificar, de maneira fantasmal, figuras arquetípicas como a do ator Petrônio de Sena, que disputava com a Marquesa (o ator Marcos Quenza) a primazia de apresentar o show de variedades Bonecas… ou Frangos falando para o mundo, assim como esparsas menções a Lara Paulina, Paulete Godard, Luciana Luciene e até mesmo Lee Marjories. Mas é Henrique Celibi que, por meio de Cinderela, a história que sua mãe não contou, da Trupe do Barulho, fornece-nos um diálogo transverso com sua inegável herança do Vivencial”, prossegue Cadengue.

O texto-roteiro de Luís Augusto Reis, foi escrito a partir do artigo de João Silvério Trevisan, Vivencial Diversiones apresenta: frangos falando para o mundo, publicado pelo jornal Lampião da Esquina, em novembro de 1979, quando o conjunto inaugurara espaço próprio nos limites entre Recife e Olinda, o Vivencial Diversiones.

Trevisan constata que a experiência mais fascinante de tomar a homossexualidade como alavanca para uma criação transgressora ocorreu no Vivencial.”Os personagens e situações evocados são narrados, comentados, representados, sobretudo tratados com jocosidade e, ao mesmo tempo, pertinência, no que concerne à sexualidade e à realidade brasileira”, explica Cadengue.

O cenário é um café-concerto. Com cores, as plumas e seus alegres travestis. Mas além da purpurina, Puro lixo também toca em questões urgentes. O ator Gilson Paz, por exemplo, protagoniza um manifesto contra o racismo dentro da peça. O espetáculo insere problemática como o preconceito contra homossexuais, contra a mulher e o abuso de poder.

Puro lixo segue os passos das montagens do Vivencial que utilizava de crônicas, reportagens, contos, textos escritos não especificamente para o palco como matéria-prima, para recriar livremente em cena. Na encenação, a “reportagem” de Trevisan é tomada como leitmotiv do espetáculo, posiciona Cadengue no programa do espetáculo. O tratamento cênico do texto vai dando voz não dramática aos personagens que, hoje, ganham o nome dos próprios atores que interpretam a peça.

Alegria e debohe são ingredientes da montagem. Foto: Ana Araújo

Serviço
Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade
Quando: De 13 de agosto a 4 de setembro, sempre aos sábados a partir às 18h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho
Quanto: R$ 20,00 (inteira) e R$ 10,00
Indicação: Para maiores de 16 anos
Recursos de áudio-descrição: espetáculos encenados nos dias 20 e 21

Ficha Técnica
Elenco: Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira, Stella Maris Saldanha
Texto: Luís Augusto Reis
Consultoria: João Silvério Trevisan
Encenação: Antonio Cadengue
Dramaturgismo e Assistência de Direção: Igor de Almeida Silva
Figurinos, Adereços e Maquiagem: Manuel Carlos de Araújo
Consultoria de Figurinos: Anibal Santiago
Cenografia: Otto Neuenschwander
Trilha Sonora Original e Gravação: Eli-Eri Moura
Música ao vivo (acordeão): Samuel Lira
Voz Off 1: Valdir Oliveira
Voz Off 2: Cássio Uchôa
Voz Off 3: José Mário Austregésilo
Técnico de som (gravação e edição): Francisco Rocha
Iluminação: Luciana Raposo (Coletivo Lugar Comum)
Coreografias, Direção de Movimentos e Preparação Corporal: Paulo Henrique Ferreira>
Preparação Vocal: Leila Freitas
Programação Visual: Claudio Lira
Fotos para o Programa: Yêda Bezerra de Mello
Fotos para Registro e Divulgação: Ana Araújo
Filmagem e Fotografias (Registro): Antônio Rodrigo Moreira
Cenotécnica: Israel Marinho e Ernandes Ferreira
Confecção dos Figurinos: Helena Beltrão
Confecção de Adereços: Jerônimo Barbosa, Charly Jadson e Tarcísio Andrade
Operação de Som: Igor de Almeida Silva
Operação de Luz: Luciana Raposo e Sueides Leal
Contrarregra e Camareira: Madelaine Eltz
Maquinaria: Gaguinho
Audiodescrição: COM Acessibilidade Comunicacional
Roteiro: Liliana Tavares e Túlio Rodrigues
Narração: Liliana Tavares
Consultoria: Roberto Cabral
Técnico dos aparelhos de AD: Eduardo Eugênio
Assistência de Produção Executiva: Antonio Cadengue, Manuel Carlos de Araújo
Produção Executiva: Clara Angélica e Jô Conceição
Produção: Stella Maris Saldanha

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