Stella Maris Saldanha no espetáculo Puro lixo. Foto: Ana Aragão
Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade sustenta provocações desde o título. Atração e repulsão de unidades semânticas atravessadas por signos vindos das mais diversas origens. Conduz a ironia bem-comportada do dramaturgo Luís Augusto Reis em sua interpretação do mundo e de um período histórico que ele viu pela janela. E carrega o encantamento classe média do então jovem diretor com um tipo de teatro que jamais adotaria em sua estética. Fascínio idêntico comungado por alguns integrantes da trupe. Esses, também remediados, eram movidos pela busca por liberdade – materializada na exposição dos corpos nus ou seminus, na repetição de palavras de ordem, ou totalmente em desordem. Servidos como finas iguarias a uma sociedade ávida por consumir o exótico, o estranho, o diferente nas artes – o caranguejo da lama das cênicas – , supunham que chocavam.
A montagem nega sua própria nomeação. O que vemos no Teatro Hermilo Borba Filho – ou, no mínimo o que eu vi, numa sessão da temporada – foi uma encenação distante do que desperta a palavra vibrante – animada, eufórica, entusiasmada, extasiada. Ou pelo menos eu não fui afetada por essas ideias e sensações.
Em alguns momentos me pareceu algo glacial, como se fora arquitetado com essa intenção de distanciamento. De produzir uma crítica aos produtos e aos produtores que o tempo vai dando um jeito de embalar de várias formas. Não sei se o objetivo era expor com veemência a perda de todas as certezas. Inclusive a do lugar ocupado pelo Vivencial, da origem até suas facetas posteriores. Da coragem de cutucar o dragão até ser situado como praticamente um mainstream.
Paulo Castelo Branco, Marinho Falcão, Eduardo Filho, Samuel Lira, Gil Paz. Foto: Ana Aragão
O que é a verdade? A pergunta de Pilatos prossegue pulsante. Então, o que era de fato esse Vivencial, que depois de 30 anos vem recebendo as mais honrosas homenagens? O grupo que nasceu com o pé na lama, as mãos dispostas para a luta e para a fechação, o corpo ardente de desejos contraditórios, mas sempre disposto a provocar. O coração em chamas de alegria e esperança, porque sim, acreditavam no fundo que iriam mudar o mundo. O seu pedaço de mundo. E mudaram…
Não conheci o Vivencial autêntico. O que dele sei é por livros, artigos, entrevistas com ex-integrantes, conversas com amigos recentes que participaram do grupo. A minha composição dessa trupe é a partir da memória dos outros. Dos filtros dos outros.
Henrique Celibi, a mascote do bando, a figura que talvez melhor tenha incorporado e processado o sopro vital daquela época, porque continua a engendrar personagens e situações atesta: “nós, as vivecas éramos terríveis”. Não duvido mesmo!
E talvez a partir daí abram-se fendas entre o grupo celebrado, o Vivencial, e a montagem Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade, dirigida por Antonio Edson Cadengue.
O encenador elenca como alicerce nessa empreitada os anjos, enquanto o clima nos bastidores da trupe olindense não era nada angelical. Não vou entrar nos méritos das categorias de anjos; até porque não entendo de coisas celestiais. Bem que gostaria, confesso. Mas o embate com os humanos em toda sua complexidade já me suga demais o espírito.
Cenografia de Otto Neuenschwander remete ao palco e aos bastidores
Pós-tropicalista, sob a influência da contracultura, o Vivencial arrebentou com as tradições hegemônicas da Pernambucália. A trupe chegou para injetar novas ideias no território da cultura dominada pelo regionalismo e pelas convenções. A proposta era subverter o estabelecido. Desafiar a política, ir para o confronto. Sob a liderança de Guilherme Coelho, aspirante a abade que exaltava o profano, que contrabandeava as vocações da alma para concretizar nos prazeres de carnes trêmulas e tenras.
Esse bando inventava sua arte sem se importar com unidade dramática ou enredo. E virava as costas para estruturas aristotélicas. A falação sobre sexualidade ganhava aparência radical nas peças abarrotadas de ironias e deboche. Transgredir os valores vigentes – sociais e estéticos – era o habite se.
O então demolidor Jomard Muniz de Britto, cineasta, escritor, professor, tropicalista, autor do Inventário de um Feudalismo Cultural (1974) estava sempre por perto para incendiar com seus conselhos, indicando caminhos, fervendo o verbo.
Mas os tempos são outros. Se lá atrás, os atritos e confrontos eram combustíveis para tomar posicionamentos, hoje impera a apatia cuja face mais degradante é o confisco de 54 milhões de votos.
É!!! Os tempos são outros e as personalidades, todas são boazinhas. Caras, coroas e caveiras campeões em tudo. Nunca tiveram um ato ridículo, nunca sofreram enxovalho como no poema de Pessoa.
Enquanto eu fui ali em Marte pegar um fogo emprestado, ao voltar me deparei com antigos desafetos sorrindo para compor o mesmo quadro, brindando junto, gente que comenta horrores pelas beiras estavam a felicitar unido. Parecia uma repetição seriada do que ocorre no seio do poder. Mas talvez sejam delírios meus, logo agora que não consumo álcool há séculos; desvarios por abstinência às drogas que nunca consumi. Mas isso realmente não tem importância, pois somos todos “farinha do mesmo saco, da mesma marinha… Sob a mesma bandeira”, pelo menos os do teatro. É tudo ficção.
Iluminação de Luciana Raposo explora inclusive os reflexos de espelhos
Mas a peça é ou não uma homenagem ao Vivencial?
Sim, um tributo. Mas recheado de camadas de teóricos, de referências.
O potente laboratório de experimentação que foi o Grupo Vivencial é submetido a análises. É esquadrinhado, justaposto, invertido, devorado pelo tempo, vomitado junto com traumas e alegrias do caminho. E são muitas pinceladas de verniz.
O dramaturgo Luís Augusto Reis é muito hábil em vasculhar processos teatrais. Em celebrar essa arte fugidia, em perscrutar os seus sentidos.
É assim com A filha do teatro, que recebeu o Prêmio Funarte de Dramaturgia em 2003, pelo texto, e é narrada a partir de três pontos de vista diferentes. Perspectivas diversas, esses eixos explodidos também marcam a peça Puro lixo.
Para o ensaísta francês Maurice Blanchot, a narrativa deve ser compreendida como o próprio acontecimento. A filha do teatro confabula com essa ideia. As engrenagens são expostas na peça.
Em A Morte do Artista Popular, Luís Reis ergueu uma farsa sobre editais e concorrências de verbas públicas para a cultura e evidencia os bastidores desses processos, investigando os procedimentos teatrais. Reis tem facilidade em investir no metateatro de maneira criativa.
Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade encerra a trilogia Transgressão em 3 atos, iniciada em 2008. O projeto cultural, produzido pelos jornalistas e professores Alexandre Figueirôa, Claudio Bezerra e Stella Maris (também produtora e atriz), amealhou três importantes grupos pernambucanos que atuaram nos anos 1960, 1970 e início dos 1980: o Teatro Hermilo Borba Filho (THBF), o Teatro Popular do Nordeste (TPN) e, por fim, o Vivencial. As pesquisas originaram as encenações de Os fuzis da Senhora Carrar, de Bertolt Brecht (2010), com direção de João Denys; Auto do Salão do Automóvel, de Osman Lins (2012), com direção de Kleber Lourenço.
O texto-roteiro de Luís Augusto Reis foi composto a partir do artigo de João Silvério Trevisan, Vivencial Diversiones apresenta: frangos falando para o mundo, publicado pelo jornal Lampião da Esquina, em novembro de 1979, quando a trupe fundou em Olinda um espaço próprio chamado Vivencial Diversiones.
Engrenagens do teatro são expostas
A crônica de Trevisan é tomada como leitmotiv do espetáculo. Nessa história fracionada a prática do teatro ganha relevo. Cadengue proclama que a obra é um tributo e não uma reprodução. Faço ligação direta com René Magritte… Ceci n’est pas une pipe (Isto Não É um Cachimbo).
A peça segue os passos das montagens do Vivencial que lançava mão de crônicas, reportagens, contos, textos escritos não especificamente para o palco como matéria-prima, para recriar livremente em cena. O dramaturgo também aplica os atributos da obra vivenciana como reciclagem, colagem e superposição para cunhar uma cena em que os atores Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira e Stella Maris Saldanha atendem pelo próprio nome.
E Puro Lixo exibe uma série de engrenagens a serem elaboradas pelo espectador. O revezar do foco dramático robustece o “tempo” como representação.
O encenador que tem no seu currículo clássicos de vários matizes flerta com outro tipo de teatro de pesquisa, com o teatro contemporâneo. É um audaz deslocamento, mesmo que seja breve, e atesta que é difícil para essa arte tão efêmera ficar grudada às glórias do passado.
O discurso não reproduz a diversidade conflituosa daquele microcosmo. E, segundo o diretor, essa não era a intenção.
O espírito do grupo de teatro Vivencial é difícil de agarrar. Seria um erro mumificá-lo ou o reverenciar como um marco grandioso. Isso talvez ficasse mais próximo de uma apologia passadista. O Vivencial virou um “clássico” da cena brasileira, mas isso não pode apagar as contradições e impasses que o marcaram.
Antonio Edson Cadengue insiste que nessa dramaturgia estilhaçada e sem personagens bem delimitados cintilam flashes de cenas da trupe. Como exemplos o diretor elenca, no seu texto do programa, uma “estranha’ Marlene Dietrich, do filme Anjo azul; uma Janis Joplin drogada e bêbada; a disputa pelo protagonista na apresentação do show de variedades Bonecas… ou Frangos falando para o mundo entre Petrônio de Sena e a Marquesa (o ator Marcos Quenza), a cena Nem Tão Viúva, Nem Tão Honesta e menções a muitas vivecas como Lara Paulina, Paulete Godard, Luciana Luciene e Lee Marjories.
E de repente alguém do elenco tasca um oxe mainha. Essa referência mais largamente conhecida de Cinderela, a história que sua mãe não contou, da Trupe do Barulho, aponta para a criatividade febril de Henrique.
Mas tantas particularidades dificultam o espectador sem ampla bagagem, acho eu.
Cena de Nem tão viúva, nem tão honesta
A arte desse bando de vivecas se contrapunha ao expediente da indústria cultural, que dita o consumo, as necessidades, os desejos e os valores dessa massa.
Em princípio pensei que a encenação de Puro lixo talhava para o procedimento da cultura pasteurizada, nas suas dobras, e do espetáculo poderia submergir ao fazer alusão a um grupo feérico, mas que não pulsa no mesmo diapasão. Refiz a trilha do pensamento.
Esse Puro lixo não é palatável a grande massa de consumidores. É até difícil de consumir pensando na imagem da alegria esfuziante, sem uma lágrima de tristeza. A montagem parece que foi tateando, dizendo vem comigo, no caminho eu explico, porque também estava a descobrir. Expôs os nervos.
Parece que a obra criadora e crítica de Puro lixo persegue seu próprio destino radical para não se tornar apenas entretenimento, não ficar esvaziada de si mesma. Ao olhar o passado com generosidade e ter certeza que não é possível repetir a mesma força, o mesmo brilho, o mesmo frescor. E como se tornou árdua essa tarefa de celebrar esse grupo tão polifônico.
Cadengue insinua ampliar o sentido teatral da narrativa, com a compreensão de incluir até mesmo a plateia, que conheceu o grupo original, como recurso de encenação.
Gil Paz em primeiro plano, de fraque e cartola
Ao adentrar no Hermilo Borba Filho, um homem lindo, de dois metros de altura, ostenta um tabuleiro com bombons, cigarros e outras bugigangas. É Eduardo Filho, montado em uma plataforma, assim como outros colegas. Enquanto o público se acomoda, eles oferecem seus produtos.
O elenco se doa à encenação e há destaques para cada um deles, no revezamento do protagonismo da cena. Gil Paz ganha destaque na cena de protesto contra o racismo e uma dublagem de Elza Soares. Samuel Lira, de salto alto tocando sanfona. E eles vão revelando uns segredos dos bastidores. Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, todos ótimos atores. A cena não pulsa na mesma dicção e às vezes sentimos o beliscão avesso do riso largo.
Com a escolha de olhar de soslaio o vulgar, o baixo cômico, predominantes no Vivencial, a montagem de Puro Lixo se afasta da gana terrível e das picuinhas de bastidores. Faz falta porque afasta o riso do deboche, de uma maldadezinha muito comum nas coxias teatrais. Os demônios da pinta, da fechação, da frescura e da viadagem parecem contidos demais no desempenho dos atores.
Stella Maris Saldanha representa as integrantes mulheres do Vivencial. As figuras femininas do grupo tinham que dar o truque para ficar no centro dos holofotes, diante daquele bando de homens, bi, trans. Cada uma que se garantisse. Com charme, potência, garra, esperteza. É louvável a coragem de Stella ao encarar esse universo. Suas personagens são mais solenes, aqui e ali é que ganham um toque mais depravado.
Quanto às cenas dos protestos ausentes, da violência, da negritude, do feminicídio mesmo que não seja uma proposta original ou inovadora, mas é um artifício que provoca uma inquietação. Ou incômodo.
Figurinos de Manuel Carlos.
Os figurinos de Manuel Carlos são harmoniosos no seu conjunto. De uma beleza do luxo, mesmo as simples sungas dos rapazes. É um guarda-roupa prático para a troca de peças que os atores vão alternando. Valoriza o corpo dos atores e salienta as ambiguidades.
A derradeira música da trilha sonora original de Eli-Eri Moura corteja as vivecas originais, mas também paquera com figuras do teatro pernambucano. “O Magiluth eu comeria”. Intervenções sonoras e ruídos se ajeitam com saudações às músicas de filmes. O clima proposto é de cabaré dos anos 20 e 30.
A cenografia de Otto Neuenschwander materializa o aspecto metateatral, com camarim dos atores, palquinho, com cortina e uma boca enorme na parte de cima a convocar o espírito do Vivencial.
A iluminação de Luciana Raposo investe na dupla função de revelar e esconder as transformações dos atores, criando brilhos projetados nos espelhos, lâmpadas de toucador. Surpreendendo.
Puro lixo está em cartaz no Teatro Hermilo Borba Filho só até 4 de setembro de 2016. Sábados e domingos às 18h. Confira e tire suas próprias conclusões.
Serviço
Puro lixo, o espetáculo mais vibrante da cidade
Quando: De 13 de agosto a 4 de setembro, sempre aos sábados a partir às 18h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho
Quanto: R$ 20,00 (inteira) e R$ 10,00
Indicação: Para maiores de 16 anos
Ficha Técnica
Elenco: Eduardo Filho, Gil Paz, Marinho Falcão, Paulo Castelo Branco, Samuel Lira, Stella Maris Saldanha
Texto: Luís Augusto Reis
Consultoria: João Silvério Trevisan
Encenação: Antonio Cadengue