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A cidade é um corpo marginal , repleto de poesia
Crítica de Miró: Estudo nº 2

Estudo N°2 – Miró. Erivaldo Oliveira e Bruno Parmera. Foto: Ivana Moura

O Grupo Magiluth, um dos mais atuantes do Brasil, está celebrando 20 anos de trajetória e, por isso, tem apresentado nos últimos meses algumas das peças de seu repertório no Recife. A trupe tem se notabilizado pelas experimentações e busca de uma linguagem que pulse as inquietações destes tempos. Em seus dois últimos trabalhos, Estudo N°1 – Morte e Vida e Estudo N°2 – Miró, enfatiza a importância de “concretizar” na cena o estudo da prática teatral, expandindo sua linguagem singular que combina jogo cênico e crítica social, ironia e humor, pesquisa e performance. Na peça-palestra Miró – Estudo N°2, a trupe investiga a tênue e complexa fronteira entre inteprerte e personagem.

Uma cena exemplifica a transformação de um coadjuvante em protagonista: durante uma abordagem policial violenta, três jovens da periferia são interpelados, e um deles é agredido com um tapa no rosto por um dos policiais. Esse ato de violência faz com que o jovem se torne o protagonista da cena. E o que dizer disso tudo? O Magiluth dá um curto-circuito para de uma apatia social e apontar para o público, que assiste passivamente, sem esboçar reação.

Miró: Estudo N°2 é o 12º trabalho desse grupo e estreou em abril de 2023, no Itaú Cultural, em São Paulo. Mais do que uma biografia cênica, o espetáculo é uma experiência sensorial e poética que nos convida a perceber a cidade como um corpo vivo, feito de carne e concreto, sonhos e escombros. 

Miró da Muribeca, nome artístico de João Flávio Cordeiro da Silva (1960-2022), foi um poeta marginal do Recife, que fez das ruas da cidade seu palco, vendendo seus livros nas pontes e praças, declamando versos que falavam da realidade dura da periferia. Sua poesia, inicialmente lírica, ganhou contornos políticos ao denunciar a violência, o preconceito e a desigualdade que marcam a vida dos pobres e negros nas grandes cidades brasileiras.

No palco, os atores Giordano Castro, Erivaldo Oliveira e Bruno Parmera investigam o processo de criação de um personagem teatral, se revezam nos papéis de protagonista, antagonista, coadjuvante e figurante, numa estrutura que questiona as possíveis hierarquias do teatro e a relação entre arte, cidade e resistência, desestabilizando esses papéis com o protagonismo de um poeta que deu voz aos invisibilizados.

A encenação explora a linguagem híbrida que tem sido uma das marcas do Magiluth, conectando teatro, performance, música, vídeo e poesia. Essa pesquisa de linguagem do grupo é muito importante, e quem acompanha a trajetória dessa trupe percebe as tentativas de ampliar e aprofundar a linguagem própria do grupo. As cenas se sucedem num fluxo fragmentado, como lampejos de memória, evocando a trajetória de Miró e a história do Recife, com a cidade como personagem, revelando suas contradições e encruzilhadas.

Erivaldo Oliveira assume o papel de Miró, buscando uma comunhão com a essência inquieta e a criatividade febril do poeta, sem apagar o Erivaldo. Em cena, Miró ganha potência para denunciar a especulação imobiliária que destruiu o conjunto habitacional da Muribeca, onde viveu, para celebrar a palavra e para rir e chorar diante das grandezas e mazelas da vida na periferia.

O espetáculo nos provoca a repensar as relações entre centro e periferia, entre a cidade oficial dos cartões-postais e a cidade real dos becos e favelas. Miró é a encarnação poética dessa cidade à margem, ou dessa porção da urbe, feita de carne e sonho, que resiste e se reinventa a cada dia. Sua poesia é indissociável de que ele foi – poeta, negro, periférico, das ruas onde viveu e amou, das pontes onde declamou seus versos.

Giordano Castro. Foto: João Maria Silva Jr/ Divulgação

Com Miró, o Magiluth celebra a força da poesia como arma de combate num mundo cada vez mais prosaico e desencantado. 

A encenação fragmentada articula realidade e ficção, biografia e poesia. As rupturas e repetições na linguagem cênica podem ser lidas como metáforas dos ciclos de violência e resistência que marcam a experiência de quem vive à margem. Grita a dimensão política do espaço urbano e a necessidade de reinventá-lo a partir do periférico. 

Nesse sentido, a destruição do conjunto habitacional da Muribeca, onde Miró viveu, surge como símbolo dos processos de exclusão e apagamento que caracterizam o desenvolvimento urbano no Brasil. A especulação imobiliária aparece como força antagonista, que expulsa os pobres para os abismos da cidade e da cidadania, conectando-se com lutas históricas pelo direito à moradia e à cidade.

Conhecido por incorporar referências e citações de seus trabalhos anteriores em suas novas montagens, esse procedimento do Magiluth sugere uma compreensão do fazer teatral como um processo contínuo e interconectado, onde cada obra não é apenas uma resposta às questões e inquietações do mundo atual, mas também estabelece um diálogo com a própria trajetória artística do grupo. Ao revisitar e ressignificar elementos de suas obras passadas, o Magiluth cria uma narrativa metateatral,.

Na apresentação no Teatro do Parque, ontem, 20 de maio, durante o Festival Palco Giratório, no Recife, algumas falas dos atores foram perdidas, – seja por terem sido pronunciadas em volume baixo, sem projeção, ou por terem sido sobrepostas por músicas ou sons, ou por existir um problema de acústica no teatro -, o que dificultou o entendimento de algumas passagens. Como a poesia de Miró é um elemento central do espetáculo e deve ser ouvida pelo público, é importante que o grupo fique atento a essas questões pontuais para garantir a melhor experiência possível para a plateia.

Ficha Técnica:
Miró: Estudo nº2, do grupo Magiluth
Direção: Grupo Magiluth
Dramaturgia: Grupo Magiluth
Atores: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira e Giordano Castro
Stand in: Mário Sergio Cabral e Lucas Torres
Fotografia: Ashlley Melo
Design gráfico: Bruno Parmera
Colaboração: Grace Passô, Kenia Dias, Anna Carolina Nogueira e Luiz Fernando Marques
Realização: Grupo Magiluth

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