A montagem do texto de Nelson Rodrigues (1912-1980), A mulher sem pecado, da Cia Arlecchino de Belo Horizonte (MG) explora com maestria os dois lados da situação de um ciumento compulsivo, que exercita tortura psicológica para saber se sua mulher é fiel ou não. Olegário é extremamente possessivo e morre de ciúmes de Lídia. Ele coloca seus empregados para vigiar Lídia, e exige que ela cuide da sogra doente. Ele tem ciúmes até do irmão da mulher. Mas isso é todo o dia, o dia todo. Tem quem aguente?
A imaginação doentia do protagonista rende alucinações e imagens interessantes na encenação. Sua desconfiança de que está sendo traído piora quando ele fica paralítico.
Dirigido por Kalluh Araujo, A mulher sem pecado apresenta um clima enevoado e sinistro, que destaca as desgraças psicológicas dos personagens, mas por trás disso também investe no tom novelesco e folhetinesco do texto, o que rende algumas gargalhadas com as frases de efeitos de Nelson Rodrigues. Coisas que parecem tão distantes e tão próximas. O machismo exarcebado, que gera a cegueira, a temida traição e a morte.
A mulher sem pecado marcou a estreia de Nelson nos palcos, em meio à consagrada carreira de romancista e cronista. Ainda não existe a sofisticação do dramaturgo maduro, mas sua essência já está lá. O diretor já é um conhecido do universo rogrigueano: encenou antes A serpente e Perdoa-me por me traíres.
O ator Paulo Rezende, que interpreta o maníaco Olegário com tiques e sutilezas, é para se aplaudir. O cínico e dissimulado Umberto é vivido por Alexandre Vasconcelos em boa atuação assim como Ana Luiza Amparado no papel de Lídia,que também faz movimentos de dança para revelar o tumulto interior.
A atriz Magdale Alves está bem e faz dois papeis opostos, a criada Inézia e D. Márcia, ex-lavadeira e mãe de Lídia. Lógico que gostaríamos de ver nossa querida Magdale em papel maior, mas reparem nos detalhes desses pequenas performances para perceber a grandeza do talento da intérprete.
Eliana Esteves faz D. Aninha (doida pacífica, mãe de Olegário) e passa a peça inteira no alto torcendo seus paninhos, ignorada ou sendo maltratada pela nora. Marcos Eurélio Pereira faz o empregado de Olegário. Dirlean Loyola faz primeira esposa de Olegário, já falecida e dá suporte em algumas cenas. A atuação de Diego Krisp como o irmão de criação virgem de Lídia é pouco convincente. As aparições da menina Ludmilla Cristine me pareceram dispensáveis.
Além de dirigir, Kalluh Araújo assina iluminação, sonoplastia, figurinos e cenários. Os cenários são um grande trunfo da montagem, com várias escadas que não vão a lugar nenhum. Esse cenário foi inspirado na obra do artista holandês Maurits Cornelis Escher (1898-1972), que criou imagens com grande poder de ilusão de ótica, representando construções impossíveis, explorações do infinito e metamorfoses.
Na peça, além das escadas, Kalluh criou calabouços de onde surgem personagens e outras entradas e saídas surpreendentes.
A iluminação sombreada como num folhetim policial, e com seus focos de luzes nos personagens atravessado o palco, faz o jogo de revelações em doses homeopáticas. Já a sonoplastia é rasgada e entrega quando toca.
Os figurinos apontam para a década de 1940, com suas peças sóbrias. Um detalhe importante e revelador são os forros das roupas das personagens (assim como sapatos) de tecido vemelho, que indicam que por trás da do cotidiano sem grandes emoções, e até maçante, existe um vulcão sensual disposto a explodir.
É um bom Nelson.
A filha do dramaturgo, Maria Lúcia Rodrigues, estava aqui e recebeu flores do grupo.
Serviço:
A mulher sem pecado
Quando: hoje, 19h
Onde: Teatro de Santa Isabel
Duração: 1h50