“Somos muitas, somos ótimas”, é quase um mantra da atriz e pesquisadora Manuela Castelo Branco, a palhaça Matusquella de Brasília. É verdade. Você são sim, Manu. E o PalhaçAria – Festival Internacional de Palhaças do Recife esbanjou exemplo dessa comicidade feminina tão rica e variada, cheia de nuances e de atitudes. Ser palhaça é assumir uma luta permanente contra preconceito de gênero, contra todos os retrocessos e contra a invisibilidade. Ser palhaça é um exercício político de liberdade e em combate a todas as violências contra a mulher. Mas tudo isso com graça e inteligência que derruba resistências, ganha adesão e cumplicidade no riso e nas linhas tênues que aproximam cômico do trágico, a essência humana e suas facetas grotescas e sublimes.
A terceira edição do Festival Internacional de Palhaças do Recife compõe um mosaico do trabalho desenvolvido por essas mulheres. No Fórum Palhaças do Mundo, Manuela Castelo Branco apresentou um pouco do percurso, dessa história de anônimas que são resgatadas como as pesquisas e no fortalecimento de uma rede para robustecer a voz desse mulherio.
Existem muitas palhaças espalhadas por esse mundão de Deus. A primeira palhaça de Portugal, Teresa Ricou, é a homenageada do festival. Além de uma trajetória de enfrentamentos e conquistas individuais ela também criou um espaço que treina novos artistas na Escola Chapitô, em Lisboa.
Um festival de cinco dias e de muita emoção, de talentos consolidados e em evolução. E de muita pulsação de vida.
O programa começou na quarta-feira (13/09) com o cortejo da trupe paulista Sampalhaças, 10 artistas com gramáticas e afinações variadas a arrancar o riso com uma performance cheia de personalidade. Com paradas em três estações (área de convivência do Apolo-Hermilo, no hall e no palco do Hermilo Borba Filho) elas fizeram a festa com variações de quadros circenses tradicionais e invenções do próprio grupo.
A atriz-palhaça Letícia Vetrano se apresentou como María Peligro, uma garota órfã, meio paralisada pela morte dos pais. No dia do aniversário promove uma festa para si em busca de uma revolução. O espetáculo Fuera! é calcado nas ações físicas da artista, destrezas corporais, exposições ridículas. Além da apropriação crítica de gestual masculino.
Aloprada, melancólica e solitária essa personagem dialoga com o púbico, joga bolo para plateia e busca afeto, abraço coletivo e até um companheiro que compreenda sua esquisitices.
Juliana Balsalobre e Marina Quinan, as clownescas Bifi e Quinam vieram para o festival com três montagens Divagar e Sempre, O Dia Da Caça e SemiBreve. Inspirados na pesquisa realizada no Norte do Brasil, elas buscaram levar o universo amazônico para a cena.
Um dos pontos altos do Palhaçaria foi o Cabaré Varieté. De tudo um pouco. Com a bandinha Sampalhaças a esquentar e acelerar o ritmo do riso. Acrobacias, contorcionismo, piadas, dançarinas virtuosas, números cômicos e um humor contagiante. A energia circulou pelo Teatro Hermilo Borba Filho numa comunhão de artistas com o público encantado e cúmplice. Foi uma noite incrível.
Metro Y Medio, outro destaque internacional, com Maku Fanchulini, criação da atriz, malabarista, clown e artista de rua Maria Eugenia Favale. Baixinha, franzina, mas com uma força incrível, Maku colocou o público no bolso, ou na mão, se preferirem. Com um carisma espantoso.
Sem palavras, nesse espetáculo acrobático a comunicação cômica se estabelece em momentos técnicos, lúdicos e explosivos. Com a cumplicidade da plateia, as apuradas habilidades circenses da artista garantem ações surpreendentes. A palhaça se arrisca o tempo todo e isso nos assombra. É humor Hardcore, num jogo que vai do lúdico e beira o horror.
Depois de alguns números delirantes e admiráveis, Maku convoca do público dois assistentes para participar dos números. Em um deles, ela sobe nos ombros para suprersa de todos. Tira sarro do outro quando ele tenta assobiar e não consegue. Ou mostra como é hábil do jogo quando o assistente tenta passar a perna na palhaça. A terceira convidada do público, uma garota, também entrou na brincadeira até o açúcar na testa.
Entre gags e acrobacias, números de equilíbrio e malabares excêntricos, o espetáculo termina explosivo, depois de ter percorrido muitas nuances emotivas da arte da vibrante Maku.
Valdorf é uma comédia cruel. Porque reflete os porões sombrios do humano. E tem uma dramaturgia instigante e divertida. É um humor inteligente e cáustico. Uma peça de palhaça que toca o drama de um menino de seis anos, que sofre com a negligencia dos adultos, o atraso da mãe, a rejeição dos colegas e sua proporia imaginação fertilíssima.
Sozinha no palco, a gaúcha Aline Marques, da Casa de Madeira Produções Artísticas, expõe o universo interior dessa criança que se projeta presa no fraco de pepino e quando se liberta conta sua história, com uma franqueza desconcertante.
Ele é um menino mimado e carente, que exerce sua perversidade masculina com a coleguinha de classe, com o melhor amigo e até mesmo com a mãe desleixada.
A dramaturgia e a direção também são assinadas por Aline. Ela explora bem os erros gramaticais e equívocos de nomenclaturas, suscitando o riso que as crianças despertam quando falam errado. Sua caracterização do menino Valdorf é incrível e desperta variados sentimentos.
Vestida com um macacão marrom fraco, blusa verde, sapatos azuis, meias vermelhas, peruca e óculos, ela trabalha uma queixadura para a frente e os lábios salientes. Esse conjunto da obra compõe a imagem de um menino meio nerd, meio tabacudo e com atitudes autoritárias, agressivas. Mas também convoca para um mundo de afetos e carências.
Sua movimentação no palco destila o grotesco desse pequeno ser excêntrico e transparente nas suas narrativas. As imagens que desperta dos episódios contados pelo guri são bem envolventes. E personagem tem potência grande de virar filme, peça de campanha publicitária, série de Tv.