* A ação Satisfeita, Yolanda? no Reside Lab – Plataforma PE tem apoio do Sesc Pernambuco
“Como se faz com o nervosismo?”, pergunta o ator Paulo de Pontes, de cara lavada, enquanto aguarda o público para a sessão virtual no Festival Reside Lab – Plataforma PE, de Inflamável, um experimento cênico, com poemas de Alexsandro Souto Maior e direção de Quiercles Santana. “Estou sentindo o mesmo friozinho na barriga que sinto no teatro, a mesma ansiedade, é incrível”.
Dá o primeiro sinal!
“Uma loucura que está o mundo!”, exclama. “Mas continuamos resistindo, experimentando, provando que a gente está vivo”.
No camarim improvisado em sua casa, Paulinho ressalta suas crenças. “O que é mais importante é a vida. E o amor. A gente perdeu muita gente, família, amigos, colegas, conhecidos”.
Começa a se trocar.
“Tem muita gente resistindo, experimentando, continuando a fazer arte. Precisamos valorizar essas iniciativas. Eu parabenizo (nós também) Paula de Renor (diretora geral e curadora do Reside Festival BR – edição especial Reside LAB Plataforma PE)”.
Coloca a lente de contato. Anuncia os patrocinadores. E oferenda a experiência às pessoas que partiram por complicações da Covid-19. Fala que precisamos aprender com essa pandemia a compreender a voz do outro, “Viva a vida! E viva o teatro!”
Estamos enclausurados. Estamos enclausurados. Estamos enclausurados reverbera esse experimento cênico, onde a luz é pouca, o espaço é ínfimo e o efeito de claustrofobia nos atinge. Convivemos com o insuportável testemunho de perdas de milhões de vida e no Brasil essa sensação é agravada pela mão genocida que ocupa o mais alto cargo do Executivo.
A Sonata para Piano nº14 em Dó sustenido menor, Op. 27, nº 2, de Ludwig van Beethoven, – mais conhecida como Moonlight Sonata (Mondscheinsonate em alemão), a Sonata ao Luar, que ostenta características introspectivas, quase de uma marcha fúnebre, – dá o tom grave na peça logo no início.
Os três poemas escolhidos, do livro Inflamável, de Alexandre Souto Maior, lançado em 2019, elaboram profundas conexões com o mundo contemporâneo, como também conectam nossas feridas, do patriarcado, da exploração, da colonização.
O Homem do Pau Brasil, A Margem e Descolonizado trançam a dramaturgia que acessa o passado e tensiona o presente. “Esses homens que não são de folhas / que não são do pau-brasil / Gritam palavras de ordem / Ao som de coturnos e fuzis na mão / Querem mesmo me plantar enterrar”. Plantar no original do poema, enterrar na peça.
A Margem propõe um diálogo com um ausente que reivindica ser “… a palafita enlameada / De dejetos / Da casa grande” e “o porão de um navio / Cheio de gritos e gemidos”. Essas lamentações são entrecortadas por frases do Nero brasileiro, que alardeou: “Não sou coveiro”; “É muito mimimi”; “Eu prefiro filho morto…”; “Vocês reclamam demais”.
A presença incendiada de Paulo Pontes oscila entre a suavidade e a revolta com Descolonizado. Cochicha com doçura “Canto o que me sussurra um guanumbi / O que me conta uma cabocla / O que me confessa um rouxinol”, para insurgir feroz “Quando pisar nesta terra / Peça licença…”
Imagens projetam um Recife, cidade tão bela cortada por rios, mas que sangra. Seus artistas inquietos fazem o melhor para honrar a tradição aguerrida dessas terras. Encaram ainda a incompreensão política do papel da arte e da cultura no contexto de uma cidade, de um estado, de um país.
E, neste março, em que fez três anos do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, a pergunta ecoa na peça. Quem mandou matar Marielle e por quê? Só poderemos pensar que a justiça está atuando como justiça quando essas respostas forem respondidas. O Brasil insurgente das periferias, que desafia o “apartheid racial não oficial” e que enfrenta de peito aberto o patriarcado, exige respostas.
Por que matar uma vereadora eleita em exercício do mandato foi um anúncio de que esse país ficou mais covarde ao se tornar mais conivente com genocídios de negros, de indígenas, de mulheres. Por que um pouco do Brasil morreu em 17 de abril de 2016 com a abertura do impeachment de Dilma Rousseff, mais um pouco em 14 de março de 2018 com o assassinato de Marielle e Anderson, e mais um pouco com a administração do ódio de Bolsonero, que vem provocando uma tragédia sem precedentes. É muito eloquente o silêncio sobre quem ordenou o crime e por quais razões.
Paulo de Pontes é um ator militante. Desde que voltou ao Recife para fazer um trabalho pontual – isso já faz três anos – foi ficando e atuou em uma dezena de espetáculos – com grandes elencos, em dupla, em solo. Se envolveu com a política cultural da cidade do Recife e de Pernambuco, nas lutas com outros artistas e agentes culturais, desde a campanha pelo Teatro do Parque a articulações por editais e outras frentes. Um trabalho nem sempre visível.
Como ator, ele é intenso e totalmente entregue, daqueles artistas apaixonados e apaixonantes. Quando ocorre uma sinergia entre atuação, encenação e dramaturgia é um prazer vê-lo em cena; quando não, reconhecemos o seu esforço.
O experimento cênico junta muitos talentos, com a direção do sempre criativo Quiercles Santana, um dos encenadores mais febris de Pernambuco. O resultado causa uma suspensão reflexiva desse lugar em que pulsam vida e morte. Pelos discursos nômades, somos convocados a percorrer as entranhas do país com suas dores enraizadas nas injustiças sociais.
Feito com uma única câmera de celular, um projetor de imagens, uma janela antiga como cenário, um técnico para modular luz e som, e um ator altamente inspirado, que movendo-se em um exíguo espaço flameja em arte.
Inflamável é um breve poema de resistência. Ao expor os aspectos sombrios desses tempos em situação-limite, de abandono, do mundo paralisado por uma pandemia, atingido pela crise financeira e do Brasil em alta-tensão provocada pelos desmandos da política, a peça aponta para a carga de resistência, para a potência de combate. Não à toa a palavra adiconeg fecha a transmissão. Temos consciência, temos força e temos esperança de que esse jogo vai mudar.
Ficha Técnica:
Autor: Alexsandro Souto Maior
Diretor: Quiercles Santana
Atuação e produção geral: Paulo de Pontes
Direção de arte: Célio Pontes
Técnico de som, luz e vídeo: Fernando Calábria
Produção executiva: Márcia Cruz
Realização: Pontes Culturais