Na década de 1990, com internet limitada, e nem pensar nas redes sociais como existem hoje, euzinha, lá no Recife ansiava pelos dias em que eram publicadas as críticas de Mariangela Alves de Lima, no jornal O Estado de São Paulo. Seguia o ritual de ir à banca de revistas e lambuzar os dedos com aquela tinta típica. Ficava menos interessada com as outras sessões. Uma ou outra coisa chamava minha atenção dentro daquela estrutura de pensamento conservador.
Os textos da crítica, ensaísta e pesquisadora eram lareira que, para mim, se tornavam maiores que o próprio jornal. Eu que já trabalhava no Diario de Pernambuco, um centenário pernambucano, e além de reportagens, ensaiava minhas própria críticas.
Os artigos de Alves de Lima, na maioria sobre espetáculos de São Paulo, se alumiavam das páginas do matutino paulistano e alimentavam a minha imaginação, o amor pelo teatro, a vontade de aprender a ponto de ficar repleta de pulsações que gerassem análises seguindo o fluxo de reflexão e emoção plenas do meu próprio corpo. Meu desejo era, quem sabe um dia, escrever tão bem quanto ela, de um jeito transparente, com um diálogo acolhedor, sem lacração, traçando pontes. Desejos são desejos. E foram. O texto da Mariângela é único e inigualável.
Quando Mariângela foi demitida do Estadão, depois de 40 anos de ofício, ocorreram protestos – inclusive abaixo-assinado – por parte da classe artística, coisa incomum na prática da crítica teatral brasileira. Foi um choque a decisão administrativa do jornal, como registra o jornalista Valmir Santos, na reportagem a demissão de Mariangela Alves de Lima – 40 anos de critica no TeatroJornal. Esse movimento de defesa da crítica reafirmou o papel singular exercido por ela, como também os laços de afetos construídos com os artistas da cena e o público ao longo de sua trajetória.
Isso faz parte da história.
Mariangela Alves de Lima nasceu em 1947, em São Paulo. É da primeira turma da Escola de Comunicações e Artes da USP, onde estudou Artes Cênicas, especializando-se em Crítica Teatral.
Dentre seus mestres formadores destacam-se Sábato Magaldi, Jacó Guinsburg e Décio de Almeida Prado.
No jornal O Estado de S. Paulo se estabeleceu como uma das maiores críticas de teatro do Brasil.
Atuou no Estadão durante quarenta anos, de 1972 a 2011. Escreveu e publicou incontáveis textos, críticas e ensaios, com destaque para o livro que organizou com Jacó Guinsburg e João Roberto Faria: Dicionário do teatro brasileiro.
O livro Mariangela Alves de Lima: Na Plateia (Edições Sesc São Paulo) reúne 290 textos de sua autoria, escritos entre 1972 e 2011 e publicados no Estadão.
O lançamento oficial ocorre neste 17 de novembro, quinta-feira, às 19h, no Sesc Consolação. Está agendada uma conversa entre a autora da obra, o dramaturgo José Eduardo Vendramini, o ator e diretor teatral Alexandre Mate e o jornalista e crítico Valmir Santos.
“Com as expressões artísticas em constante procura por sensações e elementos novos, o certo é que a crítica continua tendo relevância para a evolução dos movimentos que surgem a todo o instante”.
Danilo Santos de Miranda
Os escritos traçam um panorama abrangente da produção de Mariangela e conta com organização de Marta Raquel Colabone, historiadora, psicanalista e gerente de Estudos e Desenvolvimento do Sesc SP, com colaboração de José Eduardo Vendramini, dramaturgo e professor emérito do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da USP. A Coleção Sesc de Críticas já lançou coletâneas de Sábato Magaldi, Macksen Luiz e Jefferson Del Rios.
O livro se ocupa da análise de uma parte importante da história do teatro brasileiro. Como Mariangela esteve na plateia das principais montagens teatrais – da década de 1970, no auge da ditadura militar, até o período de redemocratização e o novo século – a coletânea inclui críticas de vários períodos e criadores. Entre eles, espetáculos dirigidos por Eduardo Tolentino de Araújo, José Celso Martinez Corrêa, Antunes Filho, Fauzi Arap e Gerald Thomas, e escritos por Nelson Rodrigues, Oduvaldo Vianna Filho, Plínio Marcos e Luís Alberto de Abreu; com atuações de Cleyde Yáconis, Fernanda Montenegro, Marília Pêra e Marilena Ansaldi; além de espetáculos dos grupos Asdrúbal Trouxe o Trombone, Tapa, Galpão, Armazém Companhia de Teatro, Cia. dos Atores e Teatro de Vertigem; entre muitos outros importantes encenadores, atores e grupos.
“Exigente, generosa, questionadora, suas críticas revelam as contradições da produção teatral, o papel político que a profissão engendra. Criativa, por vezes atrevida, é uma espécie de repórter elucidativa das mudanças ocorridas no teatro nacional junto a mergulhos profundos no caráter específico de cada espetáculo”.
Marta Raquel Colabone e José Eduardo Vendramini
Valmir Santos, jornalista e crítico que assina a orelha do livro, lembra que Mariangela é a primeira mulher a figurar na Coleção Críticas das Edições Sesc SP, e que a perspectiva feminista é outra janela recorrente nos escrutínios da autora, “permeados ainda de humor, elogio ao potencial do silêncio em cena, sedução pela inteligência e convicção de que, no palco, como na poesia, o pouco vale muito”.
O professor-pesquisador da pós-graduação no Instituto de Artes da Unesp Alexandre Mate considera o trabalho de Mariangela “monumental”, nos sentidos quantitativo e, sobretudo, qualitativo. No seu prefácio, ele destaca que além de se deparar com “censuras e cerceamentos de toda ordem e monta”, Mariangela acompanhou “total mudança de consignas na produção teatral paulista, no âmbito das relações de produção, das temáticas das obras, dos paradigmas estéticos”.
Num artigo para a revista Camarim, de 2005, Alves de Lima ponderava que “são menos aguerridos os críticos de hoje, tratam mais da ressonância das obras do que de parâmetros judicativos. São talvez menos generosos porque declinaram da responsabilidade do devir do teatro. No entanto quando alguns deles, ainda invocando as tábuas da lei, separam as boas das más ovelhas, aquela parte da nossa subjetividade onde reside a história faz coro a uma personagem de Brecht: “a verdade é filha do tempo, e não da autoridade”.
Vamos ao bate-papo. Sempre temos algo aprender com a discreta Mariangela Alves de Lima, que alimenta a humidade das grades figuras humanas.
Serviço
Lançamento livro Na Plateia, bate papo com Mariangela Alves de Lima, José Eduardo Vendramini, Alexandre Mate e Valmir Santos e sessão de autógrafos
Quando: Dia 17 de novembro, quinta-feira, a partir das 19h
Entrada gratuita
Sesc Consolação: Dr. Vila Nova, 245 – Vila Buarque (https://www.sescsp.org.br/unidades/consolacao/)