A atriz e diretora Maria Alice Vergueiro integrou o Teatro Oficina, foi professora de artes cênicas na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e fundou na década de 1970 o legendário Grupo Ornitorrinco, ao lado de Cacá Rosset e Luiz Roberto Galízia. Já interpretou Brecht, Shakespeare, Molière, Chico Buarque, Gerald Thomas e muitos outros. Tem carisma e forte presença cênica. É enfim uma personalidade importante da história do teatro brasileiro.
Mas ficou famosa na web com o vídeo Tapa na Pantera, em que interpreta uma senhora maconheira.
No espetáculo As três velhas a atriz reforça marcas do autor ao criticar a faceta pós-moderna das celebridades instantâneas.
O tom final da peça parece que tem mais pitadas de Maria Alice Vergueiro do que do dramaturgo, cineasta e quadrinista chileno Alejandro Jodorowsky. Uma crítica esfuziante ao sistema de patrocínios, à mercadoria que domina a vida das pessoas e ao próprio capitalismo que tem preço para tudo.
A propaganda é investida de algo cruel. De nobres (ou pseudonobres) elas passam a propagandistas dos refrescos Lulu e com isso consomem o lixo contemporâneo e alimentam a cadeia.
O cenário com tapetes gastos pendurados e um retrato da figura do Conde lembra as glórias do passado e indica uma atmosfera sombria e decadente. A pouca iluminação também remete para um cenário de terror. O exagero da maquiagem e do figurino insiste que o clima é de horror, mas não é para ser levado muito a sério.
Num casarão mal-assombrado três criaturas vivem aquele dia da mudança, das revelações. A ruína familiar está exposta em toda parte, inclusive nos diálogos das três criaturas carcomidas pelo tempo e pela fome: duas marquesas octogenárias (Luciano Chirolli e Danilo Grangheia) e a centenária criada Garga (Maria Alice Vergueiro).
Absurdo e o fantástico se misturam nessa fábula bizarra e excessiva, propositalmente kitsch. As irmãs octogenárias Melissa e Graça são marquesas com título de nobreza e sem um tostão. Catam restos e brigam por um único vestido e uma dentadura. São vigiadas por Garga, que pontua e dá nota a tudo, presa em uma cadeira de rodas.
Delirantes, as gêmeas ainda sonham com um casamento para se salvarem da miséria. A criada exerce a função de fio terra para conter a insanidade, mas também funciona como demônio contribuindo para corroer ainda mais o frágil universo combalido.
Falta tudo na mansão e, como nos contos de fadas, vai ocorrer uma festa. Mas só há uma dentadura e um vestido. Então, apenas uma das gêmeas pode comparecer. Vai Graça, a irmã que sempre ganha nas disputas, mas volta estropiada, vítima de um assalto após o baile, onde sonhava reinar como rainha.
A outra que fica, Melissa, delira com o fantasma do pai. O pai castrador de possíveis prazeres, pedófilo, tirano incestuoso que violentava as filhas. Ela também protagoniza um fellatio explícito num cavaleiro mascarado, que sugere um ser mítico, um Exu do candomblé.
O grotesco faz rir. Talvez faça pensar.
O elenco se entrega com paixão aos seus papeis. Com a peça, inclusive, Luciano Chirolli conquistou o Prêmio Shell 2011 de melhor ator.
Não é uma experiência fácil. O menu oferecido ao público não é muito digestivo: ritual de antropofagia, incesto, zoofilia, hipocrisia.
Temas da velhice, perdas, desamparo e solidão poderiam criar um drama denso. Mas não é nada disse que faz Jodorowsky. Ele usa a pilhéria e o grotesco para criar sua fábula. É verdade que no final há um olhar de compaixão, até generoso, sobre essas figuras.
Na encenação, a inevitável falência do corpo humano não recebe uma visão estreita. Tudo é mais complexo. E Maria Alice Vergueiro incorpora o mal de Parkinson que sofre como vigor da personagem.
Jodorowsky é filho de judeus russos. Ele conta em A Jornada Espiritual de Alejandro Jodorowsky que foi concebido com ódio. O pai comerciante teria sido traído pela mãe Sara Felicidade. O pai Jaime espancou e estuprou a mulher Sara e daí nasceu Alejandro.
Ele estudou na França e mudou-se de vez para Paris aos 26 anos. Foi orientado por um budista, viajou com o LSD e hoje confia mais no tarô. Além de dramaturgo e cineasta se autointitula psicomago. Enfim, tem uma sensibilidade esotérica. Fundou, com Roland Topor e Fernando Arrabal, o Moviment Panique, em Paris, no ano de 1962, grupo multimídia, que homenageava o deus grego Pan.
Sua obra é transgressora e mescla símbolos místicos com imagens surreais. Sua obra cinematográfica foi lançado em DVD, pela Tartan Vídeo de Londres – uma coleção de seis discos com os três primeiros filmes de Jodorowsky: Fando e Lis (1968(O Topo, 1970) e The Holy Mountain (A Montanha Sagrada, 1973). Os filmes estão repletos de banhos de sangue e são povoados por personagens mutilados.
Terror e humor é mais que uma rima na arte de Jodorowsky.
Assim também é em As três velhas. Pelo menos as duas gêmeas carregam traumas instigados por fantasmas da infância.
O texto da peça é de 2003. Maria Alice Vergueiro disse que ele só recebeu uma montagem, na Bélgica, com marionetes.
É lógico que lembramos de As Criadas, de Genet, principalmente nos delírios quanto aos papeis na sociedade.
As marquesas decrépitas ganham mais comicidades por serem interpretadas por dois homens travestidos (Maria Alice, inclusive, não queria estar em cena; queria só dirigir. Procurou um terceiro homem para fazer a centenária, mas não conseguiu e entrou no elenco). A troca de ofensas, as ironias, as cortadas , insultos e provocações provocam risos da plateia. Assim foi nas duas sessões apresentadas no Teatro de Santa Isabel, dentro do Janeiro de Grandes Espetáculos. A plateia flertou com a transgressão.