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Ser Tão Teatro combina Tchekhov com bolo na cara
Crítica a partir da peça Alegria de Náufragos

Os atores de Alegria de Náufragos: Rafael Guedes, Cely Farias e Thardelly Lima. Foto: Rafael Passos/ Divulgação

Digamos que você, espectador, chegue ao cais para embarcar no espetáculo Alegria de Náufragos, sem ter muita informação sobre a peça. No primeiro momento, você pode ficar um pouco perdido. Afinal, há uma profusão de citações e referências. Eu também fiquei atordoada no começo.

Alegria de Náufragos é uma montagem intrigante. De cara, vemos os atores vestidos de pijamas, às voltas com as aflições e delírios do professor Nicolai Stiepánovitch, que ostentou por décadas os símbolos de prestígio, de sucesso, enfim de felicidade, agora vivendo um pesadelo contínuo. O protagonista contracena com outras figuras e com os seus fantasmas. 

Adaptado livremente do conto Uma história enfadonha – das memórias de um homem idoso, de Anton Tchekhov (1860-1904), a encenação, produzida pelo grupo Ser Tão Teatro da Paraíba, é resultado de um processo colaborativo do grupo com outros artistas nordestinos. Com dramaturgia assinada por César Ferrario, Giordano Castro e o coletivo, e direção compartilhada entre Ferrario e Castro, a peça busca estabelecer conexões entre a obra de Tchekhov e situações contemporâneas.

A montagem combina um tratamento poético de Ferrario, conhecido por seu trabalho com os Clowns de Shakespeare, e a perspectiva de Castro, do grupo Magiluth, que enfatiza a presença cênica do ator, sua potência de performance. Essa junção de estilos resulta em um espetáculo crítico e cômico, marcado por uma atuação física intensa.

A direção explora a desconstrução das personagens e evidencia a interação entre atores e público, quebrando a quarta parede e criando um ambiente de cumplicidade. O humor ácido satiriza instituições sociais e convenções culturais, expondo sua superficialidade e hipocrisia, ao mesmo tempo em que provoca risos e reflexões, subvertendo o peso de determinados valores.

Com uma estrutura não linear e fragmentada, a peça opta por uma encenação mais experimental. A história do professor Nicolai Stiepánovitch é contada através de uma série de cenas que se entrelaçam, que vão do deboche à reflexão filosófica.

Os atores Cely Farias, Rafa Guedes e Thardelly Lima interpretam várias personagens. Para as mudanças, o elenco faz pequenas alterações nos figurinos, concebidos por Vilmara Georgina, como a adição de um acessório ou a troca de um elemento de vestuário. Essa dinâmica ágil e a constante alternância de papéis, esse embaralhamento de figuras e a vertigem verborrágica podem confundir. Mas não se preocupe. Siga firme.

Ter algum conhecimento prévio sobre a obra de Anton Tchekhov talvez ajude a compreender algumas das referências ou temas abordados. Mas, se não tiver, tudo bem. Estar aberto a formas não convencionais de narrativa e performance é fundamental para se divertir com as nuances da peça, que desafia as expectativas tradicionais do teatro, exigindo disposição e uma mente aberta e curiosa. Faça as associações que lhe pareçam significativas.

Na idade madura, o protagonista questiona o sentido de prestígio, fama, poder.

Nicolai Stiepánovitch é um professor emérito, reconhecido por seu currículo impecável e suas contribuições significativas no campo da Medicina. Aos olhos da sociedade, alcançou o ápice do sucesso profissional e pessoal, enfim, a felicidade. Ele é respeitado, condecorado e visto como um exemplo de vida bem-sucedida. No entanto, aos 62 anos, Nicolai enfrenta uma dolorosa crise existencial. Ele começa a questionar as escolhas que fez ao longo de sua vida, percebendo a superficialidade e a pateticidade das instituições que antes valorizava. Gradualmente, suas conquistas e honrarias perdem o sentido para ele, que se vê como um náufrago em sua própria existência.

Para enriquecer a discussão sobre Nicolai Stiepánovitch, podemos trazer as ideias do sociólogo Zygmunt Bauman sobre a modernidade líquida e a vida líquida. Bauman argumenta que, na modernidade líquida, as estruturas sociais e as instituições são instáveis e em constante mudança. Essa fluidez gera incertezas e inseguranças, afetando a identidade e a busca por significado dos indivíduos.

Stiepánovitch é um exemplo de um indivíduo que, apesar de suas conquistas, se sente perdido em um mundo líquido. Sua crise existencial reflete a dificuldade de encontrar estabilidade e propósito em uma sociedade onde tudo é efêmero e mutável. As reflexões de Nicolai sobre a futilidade das instituições e o vazio interior ecoam as ideias de Bauman sobre a fragilidade das relações humanas e a busca incessante por validação.

A representação do envelhecimento em Alegria de Náufragos merece uma reflexão crítica sob a ótica contemporânea. Retratar Nicolai, aos 62 anos, como um homem no ocaso de sua carreira e de sua vida, restrito por limitações físicas e mentais, pode reforçar estereótipos e preconceitos relacionados à idade. Essa abordagem não condiz com a realidade de muitas pessoas na faixa dos 60 anos no século 21, que, graças aos avanços da medicina, da qualidade de vida e da consciência sobre a saúde, mantêm uma vitalidade e uma energia notáveis.

Exemplos de artistas como Madonna e Sting, que aos 64 e 71 anos, respectivamente, seguem criando, se apresentando e cativando o público com sua arte e presença cênica vibrante, acentuam que a idade não é um fator determinante para a vitalidade e a paixão pela vida.

No que diz respeito à personagem Cátia, que ocupa um lugar especial na vida do protagonista, ela de fato representa um contraponto significativo ao desalento e ao vazio interior de Nicolai. Sendo uma jovem artista plena de sonhos e paixão pela vida e pela arte, Cátia personifica a esperança e a busca incessante por sentido. Sua luta para viver da arte, mesmo quando enfrenta fracassos e decepções, ressoa com a própria experiência dos atores do Ser Tão Teatro e os desafios de muitos grupos espalhados pelo Brasil.

Montagem paraibana participa do circuito do Palco Giratório nacional. Foto: Eunilo Rocha / Divulgação

Os elementos cênicos, retirados de uma caixa central no palco, ganham estatura na encenação. Objetos simples como flâmulas, troféus, cabos de vassoura e medalhas são utilizados para construir a imagem do professor Nicolai e sua trajetória.

É um mérito do grupo trabalhar com temas profundos como a ruína interior, os valores mundanos das instituições e a crise existencial na chave da comicidade e do deboche, agregando o interesse de plateias mais jovens. Afinal, a peça também fala disso: não se leve tão a sério, não leve a vida tão a sério.

Quem é do teatro ama a porção metateatral, com a incorporação de elementos autobiográficos dos atores e reflexões sobre a própria prática e seus perrengues, adicionando uma camada extra de complexidade.

Os atores utilizam gestos exagerados, expressões faciais e movimentos corporais para criar momentos cômicos. A peça expõe as dificuldades enfrentadas pelo povo do teatro, como a corrida por editais, a burocracia envolvida na obtenção de financiamento para projetos e a necessidade de complementar a renda com papéis de figurantes, animações de festas infantis, oferecendo uma visão da precariedade e incerteza da vida de artista.

O uso de ações cômicas como tapa na cara, bolo na cara, talco, água e açúcar na cara se mostrou uma estratégia eficaz para criar momentos de humor físico. Esses recursos intensificam a comicidade e criam um ambiente de caos controlado.

O Ser Tão Teatro, fundado em 2007 por alunos e profissionais das artes cênicas da UFPB, é um grupo de pesquisa teatral de João Pessoa, Paraíba, que tem se destacado no cenário nacional e regional. Com Alegria de Náufragos – que estreou em março de 2016, em João Pessoa, e foi financiado pelo Fundo Municipal de Cultura (FMC) – a trupe está em circulação pelo Brasil, através do projeto Palco Giratório do SESC Nacional. Estão previstas apresentações em Natal (RN) no dia 07/08; São Paulo (SP) nos dias 13/08, com a realização do Pensamento Giratório, e 14/08; Rio de Janeiro (RJ) no dia 15/08, com uma apresentação no Polo Educacional; Florianópolis (SC) no dia 22/08; São Luís (MA) no dia 18/09; e Porto Velho (RO) no dia 26/09.

A peça estreou na época do # fora Temer. Foto: Eunilo Rocha / Divulgação

Ficha técnica:
Direção: César Ferrario e Giordano Castro
Dramaturgia: César Ferrario, Giordano Castro e Ser Tão Teatro
Elenco: Cely Farias Rafa Guedes Thardelly Lima Polly Barros (stand in) Paulo Philipe (stand in)
Direção musical e música original: Marco França
Desenho de luz:: Ser Tão Teatro
Produção: Rafa Guedes, José Hilton
Iluminador: Fabiano Diniz
Operador de som: Polly Barros
Figurino: Vilmara Georgina
Cenografia e adereços: Maria Botelho
Direção de palco e contrarregragem: José Hilton e Daniel Torres

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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Um festival inteiro pagando quanto puder

Magiluth promove festival de artes. Foto: Renata Pires

Magiluth promove festival de artes. Foto: Renata Pires

Quantas vezes você ouviu alguém dizer que não vai ao teatro porque é muito caro? A desculpa – que pode ser desconstruída rapidamente – perde completamente o sentido no IV Festival Pague Quanto Puder de Artes Integradas, promovido pelo grupo Magiluth deste sábado (6) ao dia 18 de agosto. Na realidade, a questão mais importante aqui é a ideia de delegar ao público a tarefa de decidir quanto deve (ou pode) pagar para assistir a um espetáculo. E, aliada a isso, a proposição de um festival que inclua as várias linguagens, música, dança, teatro, performance, artes visuais, cinema.

Em 2013, o Magiluth realizou o primeiro projeto Pague quanto puder, uma mostra de repertório no Teatro Marco Camarotti, que tinha o apoio do Funcultura. Desde então, algumas constatações ficaram mais claras ao grupo: “Percebemos que, financeiramente, o retorno era muito parecido ao de uma temporada normal, com os preços que cobramos habitualmente. E, ao mesmo tempo, os teatros estavam sempre lotados”, comenta o ator Giordano Castro. Um dos resultados dessa prática parece ser exatamente a atração de público. “Quem ia ver algum espetáculo, acabava voltando ao teatro e trazendo mais gente”, complementa Castro.

Além da mostra de repertório, durante as mostras Pague Quanto Puder, realizadas consecutivamente, o grupo sempre teve convidados, como o Coletivo Lugar Comum, a bailarina e performer Flávia Pinheiro, e o elenco de uma oficina que o próprio Magiluth ofereceu (que acabou montando o espetáculo War Nam Nihadan ou Qual o nome do suco?); mas não havia o conceito de festival. Para Giordano Castro, esse movimento tem muita relação com a instalação da sede do grupo no Edifício Texas, no Pátio de Santa Cruz, na Boa Vista, desde o ano passado. “Começamos a dialogar mais com outras influências. Sempre fomos consumidores, mas nunca tivemos um diálogo tão direto, por exemplo, com muita gente de banda”.

Sem patrocínio (o projeto está concorrendo ao edital do Funcultura) e sem uma proposta curatorial delineada de fato, o Festival Pague Quanto Puder de Artes Integradas foi sendo montado a partir das relações que se estabeleceram no entorno do Texas (alguns shows, por exemplo, já estariam na programação do bar) ou nas andanças do grupo pelo país. É o caso, por exemplo, de Carolina Bianchi, de São Paulo, que o Magiluth conheceu no Cena Brasil Internacional, no Rio de Janeiro. A artista de São Paulo participa com a oficina “Manifesto de um corpo delirante”. Outro convidado é Marcelo Castro, um dos integrantes do Espanca!, de Belo Horizonte, que também dá uma oficina e apresenta uma performance. Detalhe: todos os convidados de fora estão arcando com as passagens.

A abertura do Pague Quanto Puder será com duas apresentações de O ano em que sonhamos perigosamente, espetáculo mais recente do Magiluth, no Teatro Barreto Júnior. Todo o restante da programação acontece no Edifício Texas e no Largo de Santa Cruz.

Mesmo as oficinas são no esquema “pague quanto puder”. Para se inscrever, é preciso mandar carta de intenção e currículo para o e-mail oficinasmagiluth@gmail.com .

As apresentações de O ano em que sonhamos perigosamente já fazem parte da circulação nacional contemplada pelo prêmio Myriam Muniz de Teatro – Funarte. Além do Recife, o espetáculo também poderá ser visto em Porto Alegre, Belo Horizonte, Florianópolis e Salvador.

IV FESTIVAL PAGUE QUANTO PUDER DE ARTES INTEGRADAS

Sábado (6) e domingo (7):

O ano em que sonhamos perigosamente / Grupo Magiluth (PE)
Teatro Barreto Júnior | 20h

Domingo (7):

Dia de Brincar, com Gabriela Vasconcellos (PE)
Edf. Texas – Rua | 14h-17h

Contação de histórias, com a Cia Agora Eu Era (PE)
Edf. Texas – Rua | 16h

Segunda (8):

Oficina de Dramaturgia Nem tudo o que falei foi pensado, com Giordano Castro (PE)
Edf. Texas, 1º andar | 14h-17h

Terça-feira (9):

Oficina de Dramaturgia Nem tudo o que falei foi pensado, com Giordano Castro (PE)
Edf. Texas, 1º andar | 14h-17h

Oficina Manifesto de um corpo delirante, com Carolina Bianchi (SP)
Edf. Texas, 3º andar | 14h-17h

Performance Grupo Magiluth e Ex-Exus – Grupo Magiluth e EX-Exús (PE) –
Edf. Texas, 3º andar | 20h

Pernalonga. A banda de um homem só – Show
Edf. Texas (Bar) | 22h

Quarta-feira (10)

Oficina de Dramaturgia Nem tudo o que falei foi pensado, com Giordano Castro (PE)
Edf. Texas, 1º andar | 14h-17h

Oficina Manifesto de um corpo delirante, com Carolina Bianchi (SP)
Edf. Texas, 3º andar | 14h-17h

Espetáculo Elégun – Um corpo em trânsito
Com Jorge Kildery (PE)
Edf. Texas, 3º andar | 20h

Show com Publius
Edf. Texas (Bar) | 22h

Quinta-feira (11):

Oficina de Dramaturgia Nem tudo o que falei foi pensado, com Giordano Castro (PE)
Edf. Texas, 1º andar | 14h-17h

Oficina Manifesto de um corpo delirante, com Carolina Bianchi (SP)
Edf. Texas, 3º andar | 14h-17h

Espetáculo 1 TORTO
Grupo Magiluth – Solo de Giordano Castro
Edf. Texas, 3º andar | 20h

Festa Vodalevu
Edf. Texas (Bar) e Mundo Novo | 22h

Sexta-feira (12):

Espetáculo Alegria de Náufragos
Ser Tão Teatro (PB)
Edf. Texas, 3º andar | 20h

Alegria de Náufragos, do grupo Ser Tão Teatro. Foto: Divulgação

Alegria de Náufragos, do grupo Ser Tão Teatro. Foto: Rafael Passos

Festa Hellcife Sound System
Edf. Texas (Bar) | 22h

Sábado (13):

Abertura de exposição
Com Java Araújo, Priscila Lins, Raoni Assis, Nathália Queiroz, Hugo Castro.
Edf. Texas, 1º Andar | A partir das 18h e continuando ao longo da semana.

Espetáculo Alegria de Náufragos
Ser Tão Teatro (PB)
Edf. Texas, 3º andar | 20h

Tatuagem com Hugo Castro
Edf. Texas, 1º Andar | 18h

Semenre de vulcão – Show
Texas Café Bar | 19h

Forró na Caixa – Show
Texas Café Bar | 22h

Segunda-feira (15):

Oficina Suzuki, com Luciana Brandão (BH)
Edf. Texas, 3º andar | 9h – 12h

Terça-feira (16):

Oficina Suzuki, com Luciana Brandão (BH)
Edf. Texas, 3º andar | 9h – 12h

Espetáculo Leve cicatriz
Cia TEMO com Luciana Brandão (BH)
Edf. Texas, 3º Andar | 20h

Leve cicatriz, com Luciana Brandão. Foto: Divulgação

Leve cicatriz, com Luciana Brandão. Foto: Divulgação

Show com Juvenil Silva
Edf. Texas (Bar) | 22h

Quarta-feira (17):

Oficina Suzuki, com Luciana Brandão (BH)
Edf. Texas, 3º andar | 9h – 12h

Oficina Estranha Resistência, com Marcelo Castro (BH)
Edf. Texas, 3º Andar | 14h – 17h

Espetáculo Leve cicatriz
Cia TEMO com Luciana Brandão (BH)
Edf. Texas, 3º Andar | 20h

Aninha Martins – Show
Texas Café Bar | 22h

Quinta-feira (18):

Oficina Estranha Resistência, com Marcelo Castro (BH)
Edf. Texas, 3º Andar | 14h – 17h

Performance Ruído
De Marcelo Castro (BH)
Edf. Texas (Bar) | 17h

Cinema e Debate / Fincar: Narrativas experimentais
Curadoria de Maria Cardoso e Mariana Porto
Edf. Texas, 3º Andar | 19h

Festa de encerramento
Edf. Texas, Texas Café Bar | 22h

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