Arquivo da tag: 7ª edição Mirada – Festival Ibero Americano de Artês Cênicas de Santos

Macbeth mexicano
Crítica do espetáculo Mendoza

Plateia participa na cena dos fantasmas. Foto: Cultura UDG / Divulgação

Rosario e Mendoza. Foto: Fernanda Luz / Divulgação

Mendoza, peça do grupo mexicano Los Colochos Teatro, é uma adaptação ousada de Macbeth de William Shakespeare, transposta para o contexto da Revolução Mexicana. Dirigida por Juan Carrillo, com dramaturgia de Antonio Zúñiga e Carrilo, a obra integrou a programação do 7º MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, após uma década de sucesso em temporadas e festivais internacionais. Estreada em 2014, Mendoza faz parte de uma pentalogia shakespeariana desenvolvida pelos Los Colochos, que inclui adaptações de Romeu e Julieta, Otelo, Rei Lear e Tito Andrônico

O grande trunfo dessa montagem é a intimidade criada com o público, que fica sentado ao redor do palco em quatro bancadas. A disposição cênica e o jogo dos atores permitem que a plateia se sinta testemunha ou até parte da história, com momentos de interação direta, como segurar utensílios ou usar máscaras para encarnar fantasmas.

Assim como Macbeth, José Mendoza, inicialmente um leal escudeiro do Comandante Montaño (análogo ao Rei Duncan), encontra-se com uma santera enigmática, que incorpora as três bruxas originais. Nessa reimaginação, Lady Macbeth reencarna em Rosario Mendoza, Banquo transforma-se em Aguirre, e Macduff assume a identidade de García.

O espetáculo seduz pelo impacto visual e pela força interpretativa do elenco. O cenário minimalista, composto por mesas e cadeiras desmontáveis com logotipo da cerveja Corona e outros artefatos, é utilizado criativamente para criar diversos ambientes.

Marco Vidal interpreta Mendoza com energia e vigor; Mónica del Carmen, por sua vez, brilha nos papéis de Rosario e da santera. O elenco, formado por Erandeni Durán, Leonardo Zamudio, Martín Becerra, Germán Villarreal, Ulises Martínez, Alfredo Monsivais, Roam León e Yadira Pérez, demonstra uma sinergia extraordinária, com cada intérprete complementando o trabalho do outro de forma estratégica. Suas interpretações são marcadas por uma grande entrega emocional.

A peça é permeada por uma energia masculina intensa, com violência e brutalidade palpáveis em cada cena. A ação física é manifestada através de movimentos bruscos e confrontos intensos, coreografados com precisão. A proximidade do público amplifica essa experiência, permitindo que os espectadores vejam de perto o suor, o esforço e a dor nos rostos dos atores.

Mesas e cadeiras desmontáveis com logotipo de cerveja compõem o cenário. Foto: Fernanda Luz / Divulgação

Ao analisar a peça sob uma perspectiva feminista, emergem problematizações sobre a representação de gênero, poder e violência.

Duas cenas específicas chamaram minha atenção por sua aparente demonstração de machismo, desnecessário e equivocado no contexto. A primeira ocorre quando Rosario insiste na trama da ambição, e Mendoza, perdendo a paciência, desafivela o cinto e ameaça agredi-la. Embora não concretize o ato, o gesto em si é bastante perturbador. A segunda, que se segue imediatamente, mostra Rosario abraçando Mendoza para acalmá-lo após o ápice da tensão, uma ação que parece normalizar o comportamento agressivo anterior.

Penso na Lady Macbeth, uma figura emblemática do século 16, que encapsula as tensões e contradições da sociedade elisabetana, projetando as complexidades do reinado de Elizabeth I. Elizabeth, uma monarca poderosa em uma sociedade patriarcal, adotou a imagem de “Rainha Virgem” e se declarou “casada com a nação”, utilizando retórica masculina em seus discursos públicos para afirmar sua autoridade. Esse paradoxo ressoava em uma era onde as normas de gênero eram rígidas e as mulheres geralmente subordinadas aos homens. Lady Macbeth, com sua ambição desmedida e manipulação astuta, desafia essas expectativas femininas. Através dela, Shakespeare oferece uma crítica às limitações impostas às mulheres, analisando indiretamente o reinado de Elizabeth I. Assim, Lady Macbeth materializa as contradições de seu tempo, explorando as nuances do poder feminino e as consequências de desafiar as expectativas sociais.

Então, não reclamo que a personagem de Lady Macbeth/Rosario em Mendoza não esteja atualizada à altura das demandas do século 21. No entanto, é importante notar que houve mudanças consideráveis na representação do feminino no teatro e nas artes em geral nos últimos dez anos. Desde a estreia da peça em 2014, testemunhamos mudanças significativas, entre outras coisas, uma perspectiva mais crítica dos estereótipos de gênero. Essas transformações traduzem movimentos sociais importantes e uma crescente conscientização sobre questões de gênero nas artes vivas. Embora Mendoza não incorpore essas tendências mais recentes, sua interpretação pode ser compreendida dentro do contexto histórico que retrata e do momento em que foi criada.

Mónica del Carmen no papel da santera. Foto: Fernanda Luz / Divulgação

Yadira Pérez e Mónica del Carmen (deitada). Foto: Fernanda Luz / Divulgação

Há, pelo menos, dois momentos que apontam para a perenidade da violência na manutenção do poder: uma referência ao desaparecimento dos 43 estudantes no México em 2013, e a celebração final que tematiza a história oficial com ironia.

O desfecho apresenta uma variação culturalmente relevante: García (Macduff) opta por um método institucionalizado de justiça, ordenando a execução de Mendoza por fuzilamento. A cena final se transforma em uma celebração vibrante, com os personagens sobreviventes entoando uma ranchera ao redor da mesa de Corona. O elenco distribui cervejas ao público. Mas me vem uma inquietação: o que exatamente estamos comemorando? Sabemos? Essa celebração parece refletir as complexas dinâmicas de poder e as trocas de mãos na liderança, um aspecto preocupante nas estratégias de manipulação de massas.

 

 

A jornalista Ivana Moura viajou a convite do Sesc São Paulo

 

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

 

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Uma jornada irônica pelo feminismo contemporâneo
Crítica: “¿Dónde están las feministas? Conferencia performática de una falsa activista”

Liliana Albornoz Muñoz, em sua peça ¿Dónde están las feministas? Foto: Rocío Farfán / Divulgação

O título ¿Dónde están las feministas? Conferencia performática de una falsa activista , peça escrita, dirigida e atuada pela peruana Liliana Albornoz Muñoz já diz muito sobre a obra. A artista, com sua forte presença cênica, estremece a perspectiva confortável sobre o assunto E apresenta um encenação provocativa e pessoal que desafia as expectativas sobre o feminismo e a identidade feminina no contexto peruano e latino-americano. Na peça, o humor funciona como um mecanismo de defesa (e de ataque) contra a realidade opressiva.

A montagem é dividida em sete cenas e um epílogo, cada uma explorando diferentes facetas dessa experiência feminina e feminista. Albornoz habilmente utiliza suas vivências pessoais para questionar a estrutura patriarcal que continua exigindo posturas irrepreensíveis das mulheres, mesmo em meio a um cenário de profundas desigualdades estruturais. 

A artista inicia declarando suas inúmeras atividades – atriz, produtora, divulgadora, etc – , para destacar o contexto econômico precário que força as mulheres a assumirem muitas tarefas não por vaidade, mas por pobreza. Na sequência dos pequenos atos, ela protagoniza a líder de uma assembleia feminista fictícia, que, em tom satírico, critica exigências extremas dentro do movimento. Se coloca no lugar da  “Outra”, ao explorar o papel de amante, confrontando julgamentos sobre sua identidade feminista. Revela sua relação com a família, especialmente com o pai, explorando as complexidades das dinâmicas familiares patriarcais. Expõe vulnerabilidades pessoais, humanizando a figura da “feminista perfeita”. Aponta as deficiências estruturais do Peru. Critica a romantização do sobretrabalho feminino. E no epílogo, responde à pergunta do título.

Ela emprega a ironia para expor contradições dentro do movimento feminista e da sociedade em geral. ¿Dónde están las feministas? se insere no cenário do feminismo de abordagem interseccional, com ênfase no empoderamento e inclusão, mas com chave no humor inteligente e até debochado.

Tem muitas variedades de batatas no Peru. E elas significam muitas coisas. Foto: Rocío Farfán / Divulgação

O espetáculo reflete os desafios enfrentados pelas mulheres peruanas, incluindo a  sobrecarga de trabalho doméstico não remunerado; o aumento da violência de gênero; a precariedade econômica, com muitas mulheres trabalhando no setor informal; a luta contra setores políticos ultraconservadores que se opõem às demandas feministas.

Liliana Albornoz pergunta “onde estão as feministas?” como um pretexto para entender e questionar as relações sexuais, afetivas e familiares. Ela, que é fundadora do coletivo ativista feminista Collera Red y Marea Roja, se expõe publicamente sobre as inconsistências pessoais que poderiam deslegitimá-la como feminista, salientando como todes nós, em uma sociedade cheia de erros, carregamos incoerências. Para falar sobre feminismo, a artista escolheu falar sobre si mesma, tocando em pontos como rebelião, inconformismo, fraudes amorosas e o clã de mulheres, com dose de humor ambíguo para enfrentar a seriedade dos temas.

O espetáculo utiliza projeções de imagens, vozes gravadas e a participação de duas colaboradoras brasileiras, Kelly Santos e Alma Luz Adélia. Concebido durante a Sala de Parto 2022/23, um programa de Nova Dramaturgia Peruana promovido pelo Teatro La Plaza, o projeto foi dirigido por Alejandro Clavier e Claudia Tangoa, com orientação do dramaturgo chileno Bosco Cayo desde a fase de escrita. 

A atriz troca de figurino a cada quadro, começando com um modelito preto composto por short brilhante, blusa decotada e bota de cano alto, e depois usa vestido longo, traje escuro e traje claro. Os cenários e adereços também mudam conforme a cena, incluindo cadeira, mesa, microfone e balões. Pelos materiais apresentados, parece uma produção de baixo custo, mas feita com muita paixão e honestidade. 

Ao final, nos agradecimentos, Liliana Albornoz falou da difícil situação que o Peru enfrenta atualmente e dos desafios dos artistas na luta por sobrevivência. Nós, brasileiros, que passamos há tão pouco tempo por um governo negacionista e perseguidor da cultura, sentimos uma preocupação maior com esses artistas que vivem em condições similares na América Latina.

FICHA TÉCNICA
Direção, dramaturgia e performance: Liliana Albornoz Muñoz
Assistência de direção: Lorena Lo Peña
Em cena: Kelly Santos e Alma Luz Adélia
Assessoria de dramaturgia: Bosco Cayó
Desenho sonoro e coordenação técnica: Gabriela Paredes Rodríguez
Desenho audiovisual: Daniel Lauz Huihua
Operação de luz: Juliana Jesus
Desenho de arte: Karen Bernedo
Figurino: Alonso Núñez, Gloria Andrés e Gabriela Soto
Assessoria de figurino: Sandra Serrano
Produção: Lorena Lo Peña e Liliana Albornoz Muñoz
Produção no Brasil: Movimentar Produções

 

A jornalista Ivana Moura viaja a convite do Sesc São Paulo

 

 

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Bote a mão na consciência desde criança
Crítica de “O Estado do Mundo…”
7ª edição MIRADA

O ator Edi Gaspar manipula pequenos objetos com projeção na tela. Foto: Divulgação

O Estado do Mundo (Quando Acordas), uma produção do grupo português Formiga Atômica, flerta com  a tradição do teatro engajado, utilizando a arte como meio de conscientização social. Focada principalmente no público infantojuvenil, a encenação aborda a urgente crise climática, mostrando-se ousada, oportuna e necessária no contexto atual. A obra dialoga em algum grau com o movimento projetado por Greta Thunberg, reconhecendo o poder dos jovens na luta contra as mudanças climáticas.

O espetáculo propõe uma análise sobre a situação do mundo em seus diversos aspectos: natural, político, geográfico, social, histórico, econômico e humano. O ator Edi Gaspar desenvolve um monólogo progressivamente envolvente, situado em uma esfera gigante que representa um meteorito ou um planeta, concebida pelo cenógrafo Eric da Costa. Ao lado, uma tela de projeção circular permite ao público visualizar em detalhes – através de uma câmera operada por Edi – todas as miniaturas que ilustram grandes catástrofes ambientais: o desmatamento da Amazônia, o mar de plástico na Malásia, a poluição atmosférica na China, entre outras. 

O texto de Inês Barahona e Miguel Fragata mescla o cotidiano com o fantástico. A jornada de Edi, o protagonista de 8 anos, serve como dispositivo narrativo para abordar conceitos complexos de forma acessível.

O Estado do Mundo (Quando Acordas) explora a responsabilidade ambiental e o impacto global dede ações cotidianas. O espetáculo joga com a relação entre pequena e grande escala, entre o individual e o coletivo, lembrando do papel de objetos comuns em potenciais catástrofes naturais. A encenação investiga questões cruciais, como a extensão da influência de itens do dia a dia em desastres ambientais de larga escala e como nossas ações locais repercutem em regiões distantes do planeta. 

O T-Rex surge como símbolo de resistência, convocando as crianças para uma guerrilha simbólica. O meteorito, com aberturas articuladas, revela diferentes geografias protagonizadas por outras crianças ao redor do mundo.

A peça colocar em cena relações de causa-efeito entre gestos aparentemente insignificantes e suas amplas consequências. Foto: Divulgação

Embora a peça apresente uma abordagem criativa e eficaz para simplificar questões socioambientais complexas, é importante reconhecer que esta simplificação pode resultar em uma visão excessivamente otimista da realidade. A ideia de responsabilidade compartilhada entre indivíduos, empresas e Estados merece um escrutínio mais aprofundado, considerando as intricâncias do sistema capitalista global e os interesses econômicos enraizados. Essa perspectiva subestima o poder de grupos de interesse, lobbies corporativos e dinâmicas geopolíticas que frequentemente se sobrepõem aos desejos da população em geral.

Mesmo que Brasil e Portugal compartilhem a mesma língua oficial, as variações linguísticas entre o português brasileiro e o português europeu podem ser substanciais. Essas diferenças não se limitam ao vocabulário, mas incluem pronúncia, entonação, ritmo e até construções gramaticais. Isso pode resultar em barreiras de compreensão, especialmente em contextos onde a clareza e a imediaticidade da comunicação são cruciais, como no teatro.

Isso aconteceu apresentação do espetáculo do Grupo Formiga Atômica. A quantidade de texto, a velocidade da fala do ator e seus acentos lusitanos criaram dificuldades de entendimento para as plateias brasileiras. Qual seria a solução para uma situação dessas? Utilizar legendas projetadas em português brasileiro durante a apresentação? Não tenho respostas, mas perguntas. O que aconteceu foi uma dispersão do público infantil nos momentos mais textuais.

Montagem do grupo português Formiga Atômica. Foto: Divulgação

As ações e, principalmente, as execuções dos jogos com as miniaturas filmadas mostrando as catástrofes magnetizaram a plateia. A incorporação de projeções de vídeo e filmagem ao vivo, procedimento utilizado em algumas encenações contemporâneas, enriquece visualmente a montagem e ressalta a velocidade digital em que vivemos. Esse recurso reflete um mundo onde eventos globais são transmitidos em tempo real, funcionando de maneira eficaz no contexto desta montagem.

O Estado do Mundo (Quando Acordas) demonstra como o teatro infantil pode abordar temas complexos de forma acessível e envolvente. Apesar dos desafios linguísticos e de alguma simplificação, a peça consegue plantar sementes importantes para a conscientização ambiental, estimulando o pensamento crítico e o engajamento do público infantojuvenil.

 

FICHA TÉCNICA
Encenação: Miguel Fragata
Texto: Inês Barahona e Miguel Fragata
Interpretação: Edi Gaspar
Cenografia: Eric da Costa
Figurinos: José António Tenente
Música original: Fernando Mota
Desenho de luz: José Álvaro Correia
Vídeo: João Gambino
Adereços: Eric da Costa, José Pedro Sousa, Mariana Fonseca e Rita Vieira (design gráfico)
Maker: Guilherme Martins
Construção de cenografia: Gate7
Direção técnica: Renato Marinho
Consultoria: Henrique Frazão
Produção executiva: Luna Rebelo e Ana Lobato
Produção: Formiga Atómica
Produção no Brasil: Sendero Cultural | Adryela Rodrigues
Assistente de produção no Brasil: Robson Emílio
Assessoria jurídica no Brasil: Carnide, Rodrigues e Souza Sociedade de Advogados
Coprodução: LU.CA – Teatro Luís de Camões, Comédias do Minho, Materiais Diversos e Théâtre de la Ville  

A Formiga Atómica é uma estrutura apoiada pelo Ministério da Cultura | Direção-Geral das Artes  

www.formiga-atomica.com | @formiga.atomica.ac

 

A jornalista Ivana Moura viaja a convite do Sesc São Paulo

 

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Ilusões perdidas
Crítica do espetáculo “Esperanza”
7ª edição MIRADA

A visualidade da cena é sombria, soturna. Foto: Paola Vera / Divulgação

Esperanza, uma colaboração entre a diretora Marisol Palacios e o dramaturgo Aldo Miyashiro, propõe-se a ser um retrato crítico da sociedade peruana dos anos 1980, focalizando uma família de classe média em Lima. Fico a pensar de qual ou de quais esperanças eles estão se referindo desde o título. Da a ideia da “esperança concreta”, uma força motriz para a mudança social e política inspirada em Ernst Bloch? Uma chama que ilumina a escuridão, uma energia que sustenta a luta pela justiça e pela liberdade, poetizada por Pablo Neruda? Ou a crítica de Nietzsche, que considera a esperança uma ilusão que prolonga o sofrimento? Ou mesmo numa interpretação livre do termo, uma expectativa matemática, que pode ser referida como “valor esperado” ou “esperança matemática”, da Teoria das Probabilidades, de William Feller? Ou nos voltamos para as articulações de Paulo Freire, que faz uma distinção entre “esperança” (passiva) e “esperançar” (ativa)? Para Freire, a esperança passiva é uma espera por algo que pode ou não acontecer, enquanto “esperançar” é uma ação ativa, uma prática que envolve luta e transformação social.

O núcleo da trama gira em torno da visita iminente de um candidato a prefeito, evento que o patriarca vê como sua chance de salvação. Essa personagem encarna a busca por uma saída individualizada diante de uma situação que atinge a população de seu país – de violência e miséria econômica. . Sua obsessão em oferecer um banquete, quando a família mal tem o que comer no dia a dia, exemplifica como a busca por “salvar a pele” pode cegar alguém para as necessidades reais e imediatas.

O espetáculo teatral se desenrola no interior dessa casa de classe média em Lima, Peru, ao longo de um único dia. No cenário vemos mesa e cadeiras, ao fundo a cozinha, uma televisão de tubo, sofá, telefone, uma escada que leva ao primeiro andar, uma porta. A motiv-ação, a força que faz o dia caminhar e esse almoço organizado pelo pai da família para um político aguardado em vão. O pai, empolgado com a perspectiva ilusória de ascensão social, não percebe o caos que consome e deteriora as relações familiares.

O clima tenso dentro de casa reflete um período histórico específico marcado por expectativas de dias melhores, às voltas com a carestia e uma crescente violência no país. Os gestos largos do pai são confrontados com os gestos pequenos da mãe e dos filhos. Enquanto o pai se perde em seus delírios de grandeza, forçando sua esposa a situações humilhantes para conseguir ingredientes fiado nos armazéns da vizinhança, um drama silencioso permeia o lar: o filho caçula está desaparecido. 

A esposa projeta cenas românticas que vê na televisão. Foto: Divulgação

Esperanza, uma peça que prometia mergulhar nos complexos tecidos sociais e familiares do Peru dos anos 80, mas não chega como uma análise penetrante das suas dinâmicas. Apesar de momentos de insight e ambições louváveis, a peça frequentemente se mostra esticada, como se tivesse vocação para um conto e foi apresentada como romance.

Mesmo com um elenco talentoso e afiado, formado por Lucho Cáceres, Julia Thays, Diego Pérez e Brigitte Jouannet, o jogo teatral não aparece pleno. Enquanto as atuações são competentes, os personagens muitas vezes se sentem unidimensionais, limitados por um roteiro que não lhes permite desenvolver plenamente.

O patriarca é retratado de maneira quase caricatural, servindo como uma demonstração exagerada de masculinidade tóxica. Esta escolha, embora possa visar a crítica social, acaba por reforçar as normas de gênero prejudiciais, sem oferecer uma reflexão crítica ou alternativas.

A luta da esposa pela sobrevivência da família seria um ponto de partida promissor para discutir a resistência feminina. No entanto, a peça relega essa personagem a um papel secundário, negligenciando a profundidade de sua experiência e a complexidade de sua resistência. A esposa projeta cenas românticas que vê na televisão, mas sua história não é explorada em profundidade.

As personagens da peça parecem presas numa espera passiva por mudanças, mesmo que haja tentativas frustradas de ação, como os esforços da família para lidar com o desaparecimento do caçula, ou nas investidas anuladas do filho ou da filha de ir embora. O desaparecimento do filho mais novo, um evento potencialmente catalisador para uma crítica social profunda, é minimizado pela obsessão do pai com a visita do político. 

Embora Esperanza capture efetivamente a estética dos anos 80, essa escolha parece inclinar-se para uma nostalgia restaurativa, que busca reconstruir o passado perdido sem questionar na cena suas convulsões sociais e políticas. A direção de Marisol Palacios enfrenta o desafio de tecer juntos os diversos fios temáticos e narrativos de Esperanza. Em alguns momentos, a peça brilha, oferecendo vislumbres do poder que poderia ter se esses elementos fossem mais habilmente entrelaçados.

No entanto, a coesão geral sofre devido a uma abordagem que, em alguns pontos, parece hesitante ou inconsistente. Esperanza é uma obra que, apesar de suas boas intenções e momentos de clareza temática, luta para realizar plenamente seu potencial. A peça se encontra em uma encruzilhada entre a ambição de abordar questões de grande peso social e político e a capacidade de fazê-lo de maneira que ressoe verdadeiramente e com pontes com o presente também sombrio.

FICHA TÉCNICA
Dramaturgia: Marisol Palacios e Aldo Miyashiro
Direção: Marisol Palacios
Elenco: Lucho Cáceres, Julia Thays, Diego Pérez e Brigitte Jouannet
Direção de arte: Micaela Cajahuaringa
Música e design de som: Manolo Barrios e Wicho García
Coordenação de comunicação: Gabriela Zenteno
Coordenação técnica: Juan Escudero
Coordenadora de teatro: Melissa Ramos
Produção geral: Centro Cultural PUCP
Produção executiva: Mariana Baumann
Fotografia cênica: Paola Vera
Operação de luz e som: Christopher Choton e Ari Gume Escobar
Técnica: Richard Sermeño e Baldemiro Negreros
Design gráfico: Shessira Villalobos
Coordenação técnica no Brasil: Melissa Guimarães
Equipe técnica no Brasil: Elaine Batista Silva, Maria Rosa Cangelle Lopes e Sibila Gomes dos Santos
Cenotecnia: Divadlo Produções | Julio Dojcsar
Produção Executiva no Brasil: Jennifer Souza e Jéssica Turbiani   
Direção de Produção no Brasil: SIM! Cultura | Daniele Sampaio 

 

A jornalista Ivana Moura viaja a convite do Sesc São Paulo

 

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MIRADA 2024:
Um Palco para as Urgências da Ibero-América

El teatro es un sueño, montagem peruada, abre o MIRADA na rua. Foto de Ramiro Contreras / Divulgação

Esperanza, do Peru, país homenageado da edição, começa a maratona teatral no palco. Foto: Paola Vera 

  • A jornalista Ivana Moura viaja a convite do Sesc São Paulo

Vozes da Ibero-América ecoam através das artes cênicas em Santos, cidade litorânea paulista situada a 72 km da capital. O MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas transforma a Baixada Santista em um vibrante palco internacional, já consolidado em sua sétima edição como um dos principais eventos teatrais do Brasil. Idealizado pelo Sesc São Paulo, o festival bienal ocorre de 5 a 15 de setembro de 2024, ocupa os espaços tradicionais de teatro e se espalha por diversos locais da cidade e seu entorno, incluindo ruas, praças e edifícios históricos.

O MIRADA 2024 apresenta uma programação com 33 espetáculos de 10 países (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Espanha, México, Peru, Portugal e Uruguai), promovendo debates sobre identidade, realidades sociais e crises políticas. além de shows e atividades formativas, uma instalação imersiva e o Mirada Pro – um encontro que reúne programadores e diretores de festivais de artes cênicas tanto do Brasil quanto do exterior.

O festival propõe reflexões sobre temas contemporâneos e urgentes, encarados nas diversas montagens, como questões indígenas, perspectivas decoloniais, relações com a natureza, diversidade e representatividade, deslocamentos humanos e suas implicações sociais.

 Este ano, o festival homenageia o Peru, país que tem demonstrado vitalidade cultural frente a desafios políticos e sociais. Serão apresentados onze trabalhos peruanos, incluindo oito peças teatrais e três performances musicais. A abertura do evento, com El Teatro Es un Sueño, do Grupo Cultural Yuyachkani, leva às ruas de Santos um espetáculo que testemunha a força do teatro comunitário e político. Inspirada no ensaio Notas sobre una Nueva Estética Teatral do poeta peruano César Vallejo, esta produção utiliza música ao vivo, personagens mascarados e interações. 

Também na noite inaugural, Esperanza, do dramaturgo peruano Abel González Melo, transporta o público para o início dos anos 1980 em Lima, período turbulento que sucedeu o regime ditatorial naquele país. Dirigida por Marisol Palacios e Aldo Miyashiro, produzida pela Compañía de Teatro La Plaza, a peça é ambientada no microcosmo de uma residência de classe média e desenrola-se ao longo de um único dia, quando uma família prepara um almoço estratégico para um candidato à prefeitura, visando garantir um cargo ao patriarca. A trama revela as tensões e expõe o contraste entre as aspirações de ascensão social e a realidade caótica do cenário político.

A instalação sinestésica Florestania, concebida pela artista Eliana Monteiro, convida o público a romper com a rotina urbana e mergulhar na experiência sensorial da Amazônia. A obra, que estreou na 15ª Quadrienal de Praga, apresenta 13 redes confeccionadas em fibras de buriti por mulheres indígenas da Amazônia brasileira e peruana. Os visitantes são convidados a se deitar nas redes enquanto escutam, através de fones de ouvido, os sons ambientes de um dia na floresta amazônica. Fica em cartaz durante todo o festival.

La vida em otros planetas foca na educação pública no Peru. Foto: Marina García Burgos / Divulgação

Quemar el bosque contigo adentro. Foto: Paola Vera / Divulgação

Monga, com Jéssica Teixeira. Foto de Ligia Jardim / Divulgação

Existe uma forte presença de obras que exploram a questão feminina sob diversas perspectivas. Dirigido por Mariana de Althaus, La Vida en Otros Planetas traça um panorama da educação pública no Peru pelos olhos de professores e alunos. Inspirada no livro Desde el Corazón de la Educación Rural de Daniela Rotalde, a peça incorpora relatos reais de educadores e testemunhos pessoais do elenco. Em um cenário que remete a uma sala de aula, os intérpretes se alternam entre personagens – docentes, estudantes e familiares – e apresentam dados históricos sobre o ensino no país, esse “outro planeta” desassistido pelo sistema. A dramaturgia de Althaus ilumina a precariedade do sistema educacional e questiona o papel da mulher nesse contexto, muitas vezes invisibilizada e subvalorizada.

Outra obra de Mariana de Althaus, Quemar el Bosque Contigo Adentro, reflete sobre as violências de gênero a partir de um universo simbólico que entrelaça natureza e relações sociais. Em um ambiente rodeado de folhas secas e galhos de eucalipto, a montagem expõe a história de três mulheres – avó, mãe e filha – que vivem numa zona rural peruana marcada por abusos contra meninas. A chegada do pai da garota, há anos distante, desvenda feridas silenciadas e traumas profundos. A montagem estabelece uma analogia entre o abuso do corpo feminino e a depredação da natureza.

Já a diretora chilena Paula Aros Gho apresenta Granada, uma releitura do mito grego de Perséfone que investiga a origem da violência patriarcal. Motivada pelas mobilizações feministas da quarta onda no Chile, Gho emprega o mito para abordar a luta contra a violência de gênero. A obra tem um caráter biográfico e contextual, refletindo sobre as experiências pessoais da diretora como professora universitária durante as manifestações de 2018.

¿Dónde Están las Feministas? Conferencia Performática de una Falsa Activista, de Liliana Albornoz Muñoz é uma conferência performática que mergulha nas complexidades e desafios do feminismo contemporâneo. A peça explora, através de sete capítulos e um epílogo, diversos aspectos da vivência feminista, desde estereótipos até incoerências nas atitudes de quem se identifica com o movimento.

Estratagemas Desesperados, concebida e dirigida por Amanda Lyra, é uma abertura de processo fundamentada em escritoras latino-americanas que investigam o horror e a violência em narrativas onde a mulher é o sujeito da ação. O espetáculo examina as manifestações da raiva feminina na sociedade contemporânea, explorando o contraponto entre a passividade do espaço doméstico ancestral e o desejo de um revide violento no âmbito social. Lyra, em sua primeira direção, traz à tona personagens que criam estratagemas desesperados para sobreviver e inverter a lógica de poder, desafiando os padrões morais e culturais de feminilidade.

Em Monga, Jéssica Teixeira continua a pesquisa iniciada em seu primeiro solo, E.L.A., utilizando seu corpo como matéria para a construção dramatúrgica. O trabalho revisita a história de Julia Pastrana, frequentemente referida como “mulher macaco” e transformada em atração de freak shows. Monga traz à tona o gênero do terror psicológico para questionar as normalizações do corpo feminino e derrubar mitos, na perspectiva de construir outros imaginários possíveis.

Yo soy el monstruo que os habla, do filósofo Paulo B. Preciado. Foto: Enric Rubio / Divulgação

Tierra gira em torno da morte da mãe do autor Sergio Blanco. Foto: Nairí Aharonián / Divulgação

Paul B. Preciado destaca-se no âmbito da filosofia e dos estudos sobre identidade e sexualidade, sendo reconhecido por sua abordagem pioneira na teoria queer e por questionar incessantemente as normas convencionais de gênero e sexualidade. A peça Yo Soy el Monstruo que os Habla é uma adaptação teatral de um discurso que Preciado proferiu em 2019 para 3.500 psicanalistas em Paris. O título, Eu Sou o Monstro que Vos Fala, já indica o tom desafiador e provocativo da obra. Preciado, como homem trans e pessoa não-binária, coloca-se na posição do “monstro” – aquele que a sociedade e a ciência tradicionalmente patologizaram.

A produção teatral busca ampliar o impacto do discurso original ao colocar em cena cinco performers trans e não-binários. Estes “monstros” são convidados a sair da “jaula” metafórica em que foram colocados pelas normas sociais vigentes. A peça critica a violência que a psicologia tradicional exerce sobre corpos dissidentes, convida a uma reformulação radical do pensamento sobre gênero e identidade.

Conhecido por sua exploração da autoficção no teatro, o dramaturgo e diretor franco-uruguaio Sergio Blanco tem consistentemente borrado as linhas entre realidade e ficção em suas obras. Tierra (Terra) é uma peça profundamente pessoal que gira em torno da morte da mãe de Blanco, Liliana Ayestarán, uma respeitada professora de literatura. A obra se passa numa quadra esportiva escolar, com a escrivaninha de sua mãe, criando um espaço que é ao mesmo tempo íntimo e ressonante.

Neste contexto, Blanco “entrevista” três personagens fictícios que foram alunos de sua mãe. Cada um traz consigo uma história íntima de perda, criando um mosaico de experiências sobre o luto e a memória. Essa configuração possibilita a Blanco investigar tanto sua própria dor quanto o aspecto universal do luto e seu impacto em nossas vidas.

Essa abordagem questiona a natureza da narrativa e da representação teatral, coisa que Blanco já fez em obras como Tebas Land, La Ira de Narciso e El Bramido de Düsseldorf.

Produção argentina A Velocidade da Luz. Foto: Kazuyuki Matsumoto / Divulgação

Montagem Palmasola, sobre o sistema prisional boliviano. Foto: David Campesino / Divulgação

Duas produções site-specific (espaços urbanos transformados em palcos vivos para a exploração de temas sociais complexos) que se destacam no cenário teatral contemporâneo e que estão presentes no MIRADA são A Velocidade da Luz e PALMASOLA – uma cidade-prisão. Essas obras utilizam espaços urbanos para criar experiências provocativas.

A Velocidade da Luz, dirigido pelo argentino Marco Canale, com duração de 180 minutos, é um espetáculo itinerante que convida o público a embarcar em uma jornada pelas ruas da cidade. A peça entrelaça histórias reais de moradores locais com uma trama fictícia. Durante uma residência de quatro semanas, Canale trabalhou com idosos da região para coletar suas memórias e experiências. Esses relatos pessoais foram incorporados à performance, permitindo que os próprios moradores participassem como atores, muitos sem experiência teatral prévia.

Os espectadores são guiados por diferentes locais da cidade, incluindo as casas dos participantes e um local considerado “sagrado” para a comunidade. Em cada parada, histórias são compartilhadas, canções são entoadas, e uma cartografia emocional do território é gradualmente construída.

Criado pelo grupo suíço KLARA-Theaterproduktionen em parceria com artistas bolivianos, PALMASOLA – uma cidade-prisão promete proporcionar uma experiência teatral impactante. Transformando a Casa da Frontaria Azulejada em Santos numa réplica da penitenciária Palmasola em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, a obra se aprofunda na realidade alarmante desse local. Ali, detentos e seus familiares compartilham um cotidiano sob regras próprias, em meio a desigualdades sociais e econômicas marcantes.

A trama avança a partir da ficção de um viajante estrangeiro capturado por tráfico de cocaína. Com encenação de Christoph Frick, diretor artístico da KLARA, a obra mescla elementos ficcionais e documentais, apresentando as realidades brutais do sistema prisional. A produção incorpora elementos multimídia, com vídeos que provavelmente ampliam a sensação de imersão e fornecem contexto visual adicional. A música investe na construção da atmosfera e tensão dramática.

A montagem paulista Parto Pavilhão, com Aysha Nascimento em destaque, sob a direção de Naruna Costa e texto de Jhonny Salaberg, lança um olhar crítico sobre o sistema prisional feminino no Brasil, com foco especial nas mulheres negras e mães.

O Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona traz à cena Esperando Godot. Nesta interpretação da clássica peça de Samuel Beckett, que serve como uma metáfora para a desolação pós-conflitos bélicos, o grupo propõe uma ruptura com a noção de messianismo, incentivando uma postura ativa e um apreço pelo viver o momento. 

O Grupo MEXA prossegue com sua exploração em torno do teatro baseado na realidade e do documentário teatral através de Poperópera Transatlântica. Este trabalho tece uma conexão entre as vivências pessoais dos membros do elenco e o poema épico Odisseia, de Homero. 

O Estado do Mundo (Quando Acordas), de Portugal. Foto: Manuel Lino / Divulgação

Vila Socó rememora tragédia de bairro operário. Foto: Sander Newton / Divulgação

Contra Xawara, com Juão Nyn. Foto: Bruna Damasceno / Divulgação

O Estado do Mundo (Quando Acordas), da companhia portuguesa Formiga Atómica, e Vila Socó, pelo brasileiro Coletivo 302, compartilham uma preocupação com as consequências ambientais e sociais de ações humanas, destacando a urgência de uma consciência coletiva voltada para a sustentabilidade. A tragédia industrial narrada em Vila Socó é resgatada através de uma experiência imersiva que resgata a memória e a história de um bairro operário.

A preocupação ambiental é radicalizada no manifesto performático Contra Xawara – Deus das Doenças ou Troca Injusta, do brasileiro Juão Nyn, que discute as enfermidades e explorações trazidas pelo contato entre povos originários e colonizadores e suas consequências duradouras sobre as comunidades indígenas.

Ubu Tropical, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz _Foto: Maíra Ali Lacerda Flores / Divulgação

G.O.L.P. Foto: João Octávio Peixoto / Divulgação

Cabaré Coragem. Foto de Guto Muniz / Divulgação

A temática da ambição pelo poder e suas consequências devastadoras é explorada em Ubu Tropical e Mendoza. A primeira, uma produção da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, do Brasil, utiliza a sátira para criticar a corrupção e a estupidez no poder, inspirando-se na obra de Alfred Jarry e refletindo sobre o cenário político brasileiro com influências do tropicalismo e modernismo. Enquanto El Presidente Más Feliz (Peru) é uma sátira que discute a corrupção e o abuso de poder, utilizando dança, música e criações audiovisuais para retratar a polarização e a fragmentação social.

Por outro lado, Mendoza, da companhia mexicana Los Colochos Teatro, reimagina a tragédia de Macbeth para o contexto da Revolução Mexicana, oferecendo uma perspectiva crítica sobre a luta pelo poder e suas implicações sangrentas.

G.O.L.P., um esforço conjunto do Teatro Experimental do Porto de Portugal e do Teatro La María do Chile, introduz uma camada adicional de complexidade ao debater a eficácia dos sistemas políticos através de uma ucronia (subgênero da ficção, que explora realidades alternativas baseadas em “e se” históricos. A ucronia reimagina o passado, propondo um desvio em eventos históricos conhecidos, resultando em um presente ou futuro alternativo) que contrasta um Portugal comunista idealizado com um Chile democrático em crise. A encenação questiona a capacidade de aprender com o passado para moldar futuros mais promissores, adicionando ironia e reflexão sobre a natureza cíclica do poder e da política.

Cabaré Coragem, apresentado pelo Grupo Galpão, do Brasil, reafirma o papel vital da arte como um meio de resistência. Inspirado na obra de Bertolt Brecht, esse espetáculo mistura teatro, música e dança, celebrando a identidade e a persistência artística frente às adversidades, e ecoando as preocupações com o poder e a corrupção presentes nas outras obras.

El Rincon De Los Muertos, do Peru. Foto: Claudia Cordova Zignago / Divulgação

Arqueologias do Futuro. Foto: Rodrigo Menezes / Divulgação

Historia de una oveja. Foto de CNA (Centro Nacional de las Artes – Delia

El Rincón De Los Muertos, monólogo protagonizado pelo ator Ricardo Bromley, mergulha nos ciclos de violência que marcaram profundamente a cidade de Ayacucho, situada na região dos Andes peruanos. Mama Angélica, pela Antares Teatro, conta a história de Angélica Mendoza de Ascarza, uma ativista social que busca seu filho desaparecido, refletindo sobre os direitos humanos e o impacto da violência política no Peru.

Historia de una Oveja, pela colombiana Teatro Petra e Centro Nacional de las Artes, expande essa discussão ao trazer à tona as histórias de deslocamento e busca por identidade. Enquanto Subterrâneo, um Musical Obscuro, uma colaboração entre os portugueses da Má-Criação e os brasileiros do Foguetes Maravilha e Dimenti, é inspirado no acidente da mina San José no Chile. O espetáculo imagina as histórias dos 33 homens presos.

Arqueologias do Futuro, de Mauricio Lima e Dadado de Freitas, combina memórias pessoais do artista Mauricio Lima com vídeo depoimentos de jovens envolvidos no projeto Museu dos Meninos. Esse trabalho investiga as narrativas corporais, questionando quais corpos são reconhecidos e ouvidos, além de refletir sobre quem possui a autoridade para contar suas próprias histórias.

As Cores da América Latina. Foto: Hamylle Nobre / Divulgação

Azira’i, da atriz Zahy Tentehar. Foto: Annelize Tozetto / Divulgação

VAPOR, ocupação infiltrável (Brasil) e As Cores da América Latina (Brasil) são destaques na dança. VAPOR utiliza a capoeira e o breaking para criar uma dança não simétrica que emerge de movimentos cotidianos, refletindo sobre a invisibilidade social dos jovens nas periferias brasileiras. Já As Cores da América Latina celebra tradições culturais latino-americanas, como a Fiesta de la Tirana e o Cavalo Marinho, propondo um diálogo entre essas manifestações e elementos do teatro, para contar a história do último Fofão do Carnaval maranhense. Ambas as produções exploram a ressignificação de fronteiras e a preservação das tradições culturais.

De Mãos Dadas com Minha Irmã mescla técnicas teatrais e linguagens afro-brasileiras para narrar a trajetória da heroína Obá, explorando a desvalorização das mulheres e a importância da memória cultural. 

A encenação argentina Sombras, Por Supuesto e a produção brasileira Azira’i trazem narrativas intimistas e pessoais, explorando a ausência e a memória. Sombras, Por Supuesto inspira-se no universo de Rainer Werner Fassbinder para criar uma trama realista com diálogos absurdos, enquanto Azira’i narra a relação da atriz Zahy Tentehar com sua mãe, a primeira mulher pajé de sua reserva indígena, utilizando elementos da cultura indígena e da memória pessoal. Essas produções investem no mergulho emocional de histórias que exploram a identidade e a herança cultural.

Teuda Bara, atriz de Cabaré Coragem, do Grupo Galpão participa do Encontro ao Vivo. Foto de Nayra Maria 

O MIRADA inclui atividades formativas, encontros críticos e apresentações musicais, como a da banda de cúmbia peruana Los Mirlos.

Os Encontros ao Vivo, as entrevista, com a mediação da jornalista Adriana Couto serão oportunidade de conhecer um pouco mais de alguns artistas e pensadores das artes cênicas ibero-americanas. Miguel Rubio Zapata e Marisol Palacios discutirão o potencial transformador do teatro na sociedade e a importância dos festivais como espaços de inovação. Daniel Veiga e Faby Hernández abordarão a representatividade e a identidade, destacando a arte como um meio de ativismo e inclusão. Teuda Bara e Mariana de Althaus conversarão sobre a intersecção entre dramaturgia e atuação, explorando como o teatro reflete e constrói realidades. Ricardo Bromley e Jéssica Teixeira compartilharão suas experiências em trabalhos que questionam memória, identidade e o uso do corpo na arte, sublinhando o papel da expressão artística como veículo de transformação social.

O Boteco Crítico é iniciativa que recria a atmosfera descontraída das conversas pós-espetáculo, convidando o público a participar de debates informais sobre as obras apresentadas. A ação neste festival é conduzido por um grupo de críticos teatrais Amilton Azevedo, Fernando Pivotto, Heloisa Sousa, Guilherme Diniz e Fredda Amorim; os quatro primeiros do do projeto Arquipélago.

O festival também oferece uma série de oficinas e aulas abertas, como a oficina com Ricardo Aleixo, que explora a poética da performance, e a aula aberta com Cristian Duarte, que propõe uma experiência coletiva de movimento e dança.

Os Encontros para o Futuro reúnem artistas, pensadores e fazedores de arte para discutir proposições criativas e reflexões sobre o futuro das práticas artísticas. Mediados por profissionais como Cristina Moura e Márcio Abreu, essas ações oferecem um espaço para diálogos abertos sobre os caminhos possíveis para a arte contemporânea.

Programação completa e mais informações em:  https://sescsp.org.br/mirada

Serviço:

MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas
Data: 5 a 15 de setembro de 2024
Local: Santos, SP, Brasil
Ingressos: Disponíveis no portal do Sesc SP, app Credencial Sesc SP, Central de Relacionamento Sesc SP, e nas bilheterias das unidades do Sesc São Paulo. (https://sescsp.org.br/mirada).
Preços:
R$ 10 (credencial plena)
R$ 20 (pessoas com +60 anos, estudantes e professores da rede pública de ensino)
R$ 40 (inteira)

 

O Satisfeita, Yolanda? faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica,  apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : Agora Crítica, CENA ABERTA, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Ruína Acesa e Tudo menos uma crítica

 

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