Depois de presenciar uma das piores faces que Deus pode assumir, o que dizer? Com que estranha capacidade de regeneração nossos sentidos, violentados, se recompõem e permitem que articulemos novamente as ideias na cabeça. Mas… ideias? Nenhuma, tudo vazio. Nada mais a dizer. As palavras que eventualmente carregamos no corpo e na memória são suprimidas diante de imagens – na falta de léxico, me repito – violentas. Mas tentemos.
Somos mortais, e isso aprendemos logo cedo. Mas o fato de termos um prazo de validade não é o que mais assusta, embora boa parte de nós pensemos que assim seja. Não. A questão é a sujeição da matéria. Fora nos casos de morte súbita, o corpo, em geral, assume um estado de desintegração constante que só pode conduzir para o seu fim e, sobre ele, a mente já não tem mais nenhum domínio. A matéria-corpo esvai-se, átomo a átomo, em todos os estados físicos possíveis – já não quer pertencer a este aqui e agora. Antes de sumir-se, contudo, deixa as suas últimas marcas, indesejáveis; já não interessam. Mancha a superfície alva das coisas e não há assepsia que dê conta. Se espalha, contamina. Impossível reter.
O barro de que fomos feitos derrete, marrom, e com ele as últimas partículas de oxigênio (o sopro da vida). Entre um e outro, a paciência e a dedicação de quem, ainda longe de alcançar esse estado da matéria, convive e é responsável por quem está próximo do fim. Responsabilidade, eu disse, mas sustentada por que? “Honrarás teu pai e tua mãe”. Da justiça dos homens, a obrigatoriedade do cuidado com os mais velhos. Suficiente?
A tudo isso assistimos no espetáculo de Romeo Castellucci, Sobre o conceito da face no filho de Deus, carro-chefe da 20ª edição do Porto Alegre Em Cena. Se iniciamos esse comentário com uma série de considerações impressionistas, é por que é muito particularmente que a obra chega a cada um dos espectadores. Como bem disse o diretor italiano, “Deixo passar as imagens. Imagens que pertencem à história de cada um de nós. As imagens estão à espera de serem interpretadas em um sistema de sinais, sempre diferentes, assim como são diferentes, uns dos outros, os espectadores.”
Sim, temos imagens. Mas também sonoridade. Da boca do imenso Cristo (pintura de Antonello da Messina (1430-1479) projetada no fundo do palco, como a materialização da onipresença divina), à qual o filho, desesperançado, se abraça, ouvimos um sussurro: “Jesus… Jesus… Jesus…”, que retornará ao final da cena seguinte, em eco às últimas granadas atiradas contra a imagem. Nessa cena, oito crianças entram no palco e, de suas mochilas, retiram a munição que atiram na face serena que as (nos) observa. Compõe a cena, ainda, o barulho de bombas lançadas, explodindo num crescendo sonoro ao qual se mistura uma música sacra. É perturbador. Quando todas as crianças se retiram, uma última permanece e volta-se para a plateia. Do outro lado do palco, também na boca de cena, o ator que faz o pai levanta-se e também coloca-se diante da plateia. A linha da vida diante de nossos olhos?
A agressão visual continua no último momento do espetáculo. O ator-pai sai do proscênio para a coxia carregando e derramando ao longo do caminho, de dentro de um galão (desses de gasolina), os excrementos fecais com que contaminou toda a primeira cena. Só resta o Cristo, que nos olha. Alguém começa a mexer a imagem por trás, de modo a fazer parecer, num primeiro momento, bichos, “pragas” subcutâneas corroendo a matéria divina por dentro. No momento seguinte são riscos, linhas projetadas da altura dos olhos ao nariz, que deformam a face de Deus. Mas, não são bem “riscos”: numa mudança de luz percebemos que é o ator-pai que “irriga”, com o galão de excrementos, a imagem de Deus, até o ponto em que ela fica quase toda negra. Então, ele e mais três homens começam a rasgar a lona onde estava estampada a imagem e, por detrás dela, vemos a inscrição:
you
are not
my
shepeard
, evidenciado o “not” apenas alguns instantes depois. Através da inscrição – gravada num mural com letras vazadas – enxergamos uma nova e mesma face de Deus, que permanece, para quem (quer) crê, para quem não.
Diante dessas descrições, entende-se a agitação que o espetáculo provoca na comunidade cristã por onde quer que passe. Mas esses são conflitos até administráveis. Agora, quem terá sido capaz de acalmar suas próprias inquietações depois de assistir a esse Castellucci?
*texto de Nayara Brito, jornalista e mestranda do PPGAC/UFRGS