Alguma coisa está fora da ordem…. na montagem paulista Cock, em cartaz até hoje na Oficina Cultural Mário de Andrade. Um deslocamento de espaço e de tempo, no mau sentido. A encenação de Nelson Baskerville é vendida como um debate sobre sexualidade e identidade. Pode até ser. Mas qual o nível e o propósito dessa discussão?
Pode ser engenhosa a ideia de colocar os atores numa espécie de ringue. Aponta para luta de galos, a rinha – uma contravenção em muitos países. Bem, toda forma de maus-tratos e a exploração de animais para divertimento do homem são abominadas pela Declaração Universal dos Direitos dos Animais (artigos 3º e 10º), proclamada em 1978 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco.
No Brasil, as rinhas de galos foram proibidas em 1934 no governo de Getúlio Vargas e desde 1941 são contravenção penal. Mas há quem pratique por esse Brasil adentro. Há quem se divirta. Como há gente que ri de piadas racistas, lgbtqia+fóbicas, gordofóbicas ou misóginas.
Mas o que as brigas de galo têm a ver com a peça? Tá no título: Cock – Briga de Galo. Em inglês, “Cock”, quer dizer galo, pau/pênis e alguém de personalidade arrogante. E há um falocentrismo na peça que não é de brincadeira.
O texto The Cockfight Play do dramaturgo inglês Mike Bartlett foca na crise de John, um adulto jovem casado com um homem maduro, que ao dar “um tempo” se apaixona por uma mulher. Muitos caminhos poderiam ter sido percorridos. Ao contrário do John do Belchior, que sabe que “a felicidade é uma arma quente” e não precisa que lhe digam de que lado nasce o Sol; John, de Bartlett, é um trintão indeciso que vive um conflito existencial bem raso, apresentado de uma maneira totalmente autocentrada, de uma perspectiva branca e privilegiada.
Mike Bartlett é um autor incensado no seu país. A ironia do seu discurso e agilidade ferina de seus diálogos são pontos em comum da sua dramaturgia. No Brasil foram encenadas suas peças Bull, Contrações, Love Love Love e Medea. Assisti montagens das três últimas. São bem instigantes Contrações e Love Love Love, do Grupo 3 de Teatro – companhia mineira encabeçada por Débora Falabella, Yara de Novaes e Gabriel Fontes Paiva. Medea me chegou como uma tentativa malsucedida de atualizar o clássico de Eurípedes.
O texto Cock fala de um lugar que (me) incomoda, recorre a clichês. A bicha rica que está envelhecendo e acha que pode tudo, o jovenzinho meio aproveitador meio perdido, e principalmente o espaço da mulher, que mendiga o afeto do boy ridículo e aceita ser ofendida e atacada por dois, aliás, três homens. Os diálogos de humor ácido podem divertir algumas pessoas, mas percebo como um exercício de retórica de vituperação.
Alguns amigos gays casados disseram que conhecem muitos casais espelhados na peça. Não duvido. Temos até um fascista na presidência! (Cruzes! Xô Satanás). Considero estranho Nelson Baskerville assinar esse espetáculo e não problematizar os estereótipos que estão no texto. Para um diretor que impactou com Luis Antonio – Gabriela, Cock, parece pouco, muito pouco,
Quando digo que a peça está fora de ordem no tempo é porque esse debate, essa perspectiva parece tão anos 1980. As pautas são outras e aceleram em uma velocidade alucinante.
O deslocamento de lugar. A Oficina Cultural Mário de Andrade ocupa-se mais do experimental, está voltada para investimentos mais ousados em conformidade das demandas atuais. Vivemos em tempos de guerrilhas urbanas.
Muitos já falaram dos embates cortantes e emocionais de Cock. Eles existem, sem dúvida, o dramaturgo é muito engenhoso na criação de falas e tensões. A direção dividiu as cenas como rounds com blackouts no meio.
Mas Cock é divulgada como uma peça que questiona a categorização das pessoas. Não enxergo dobra dessa reflexão. O namorido (Marco Antônio Pâmio) de John (Daniel Tavares) insulta às mulheres de vários modos. E sustenta sua relação sadomasô às custas de ofensas e humilhações. A mulher que entra nessa barca furada (Andrea Dupré) é a personagem mais frágil e mal-acabada dessa dramaturgia. A atriz até tenta, mas a personagem perde todos os confrontos.
A indecisão de John é algo bem patético para uma balzaquiana. Ele quase se desmancha no palco pela debilidade moral. Convence? Talvez sim. Mas irrita mais. O pai do namorido de John (Hugo Coelho) é de um despautério pesado.
O embate frenético dos atores pode ser o ponto mais forte da encenação, um jogo como uma disputada partida. E nesse campo, Pâmio se destaca com sua metralhadora giratória de frases preconceituosas, farpas e provocações.
O público é observador passivo dessa rinha de Baskerville, na arena cenográfica de Chris Aizner. Enquanto as personagens se atacam e se destroem fico aqui pensando se o jogo interpretativo dos atores é suficiente diante de um discurso que se pavoneia crítico das estruturas, mas as repete. Que se lança como ponto de análise das complexas questões identitárias, mas, infelizmente, reproduz um enunciado intolerante e hostil para os que estão fora do circuito de seus umbigos.
Não há vinco na elucubração desse grupo historicamente discriminado, no caso de Cock, o gay, mas homem branco sempre no comando, com as matérias identitárias e de sexualidade mais atuais e suas lutas urgentes e inadiáveis.
Ficha Técnica
Texto: Mike Bartlett.
Tradução: Andrea Dupré.
Direção: Nelson Baskerville.
Elenco: Andrea Dupré, Daniel Tavares, Hugo Coelho e Marco Antônio Pâmio.
Iluminação: Wagner Freire.
Figurino: Marichilene Artisevskis.
Cenário: Chris Aizner.
Trilha Sonora Original: Daniel Maia.
Preparador Corporal: Mauricio Flores.
Cenotécnico: Cesar Rezende.
Técnico de Luz e Som: Leandro Di Cicco.
Acessibilidade Audiovisual: Nara Marques.
Assessoria de Imprensa: Adriana Balsanelli.
Midias Digitais: Inspira Comunicação – Felipe Pirillo e VanessaScorsoni.
Fotos: Pedro Bonacina.
Idealização: Andrea Dupré e Daniel Tavares.
Administração: Fenetre Produções. Produção: Contorno Produções.
Produtora Executiva: Laura La Padula.
Assistente de Projetos: Bianca Bertolotto.
Assistente de Produção e Comunicação: Carolina Henriques.
Direção de Produção: Jessica Rodrigues e Victória Martinez.
O espetáculo COCK – Briga de Galo foi contemplado pela 10ª edição do Prêmio Zé Renato para a Cidade de São Paulo, instituído pela Lei nº 15.951/2014
Serviço
COCK – Briga de Galo, de Mike Bartlett, com direção de Nelson Baskerville
De 2 a 18 de dezembro – de segunda a sexta, às 20h; sábados, às 18h
Oficina Cultural Oswald de Andrade – Sala 03 – Rua Três Rios, 363 – Bom Retiro, São Paulo, SP
Ingressos: Grátis, distribuídos 1h antes de cada sessão
Duração: 120 minutos
Classificação indicativa: 14 anos