Shakespeare é uma fonte inesgotável de sabedoria. Até quando mira que a sabedoria enquanto vaidade é mais uma ilusão.
Já se fez praticamente tudo com as peças do bardo inglês. Leituras das mais diversas. Das mais pomposas a experimentações criativas inimagináveis.
Sabemos que Rei Lear trata de um velho rei, pai de três filhas, e que conclui que chegou o momento de dividir seu reino entre elas. Como parâmetro para a partilha ele quer saber o “tamanho” do amor que cada uma nutre por ele. Duas delas, Regana e Goneril, o bajulam com um palavreado para enganar os ouvidos do tolo. Cordélia não faz uso de exageros. O rei entendeu seu depoimento como demonstração de orgulho e ingratidão, a deserta e a expulsa do reino.
A ambição cega, a traição, também domina a relação de Edmundo, filho bastardo do conde Gloucester. Para tirar seu irmão da jogada da herança, convence o pai que seu filho legítimo, Edgar, o engana.
O Rei Lear no meu quintal traz a trama para bem mais perto de nós. A releitura do clássico, com dramaturgia de Luís Reis, e adaptação dele junto com a diretora Marianne Consentino se despoja das intrigas paralelas e foca no cruzamento desses dois núcleos: das três irmãs e dos dois irmãos numa disputa desleal pelo poder do pai.
A soberba produz alienação do rei que não soube identificar o amor verdadeiro. E aquele que parecia sábio se apresenta ingênuo, presunçoso, narcisista em seu orgulho ferido. Gloucester também se equivoca em seu julgamento. Por outro lado, Edmundo, o filho mau e as irmãs maquiavélicas estão dispostos a passar por cima de tudo para alcaçar seus objetivos de poder.
A ironia e o humor, armas poderosas do dramatugo, ganham saliência na encenção, que conta com elenco de jovens atores: Ana Ghandra, Durval Cristovão, Elilson Duarte, Júlia Fontes, Marina Duarte e Suenne Sotero.
Marianne trabalha com a tensão de crises do drama e sua superação ao perseguir um teatro à procura de si mesmo, que investe em outro diálogo com o público. Para isso, descomplicou a relação entre personagens. Depois, retirou toda a pompa da intrincada rede de sentimentos e emoções da vida humana. E com procedimentos aparentemente simples reforça a ilusão enquanto mecanismo fundamental da cena, enquanto acionamento da máquina mimética. E insiste em lembrar a ilusão de todas as formas de poder.
No palco, os atores e poucos elementos de cena. Algumas cadeiras, instrumentos musicais executados ao vivo pelo elenco. A máscara do rei revezada pelos dois atores do elenco. Esse despojamento permitiu que o espetáculo percorresse espaços alternativos (a maioria com poucas condições técnicas), antes de de fazer essa curta temporada no Teatro Hermilo Borba Filho, que terminou neste fim de semana.
A encenação tem um frescor pouco visto nos palcos. Uma vitalidade que não dispensa toda a riqueza da obra original. As demonstrações de ambiguidade, precariedade da vida humana, sabedoria e insensatez, alienação, concorrência desleal estão na cena concentradas, nas sutilezas das intenções dos personagens.
O elenco esbanja jovialidade e até mesmo a imaturidade ou imperfeições na atuação contam a favor, como precariedades das personagens. Destaco a atriz Suenne Sotero, que faz o bobo que insiste em dizer a verdade ao rei e ele não percebe. É com alegria, leveza, até mesmo o incômodo de dizer o que ninguém quer ouvir. E o ator Elilson Duarte, pelo carisma, pelo brilho, pela entrega aos personagens, pela ousadia de testar e erguer criaturas tão fascinantes.
Nessa reescritura cênica, o jogo proposto por Marianne investe que a ganância e essa busca desmedida pelo poder, depois da retirada dos véus, é pura ilusão.
O Rei Lear no meu quintal faz a última apresentação do ano neste domingo (15), no Ponto de Cultura Maracatu Carnavalesco Almirante do Forte (Estrada Velha do Bongi, 1319). A entrada é gratuita.
Vi a peça e gostei muito.
Eu já a havia lido e o elenco me ‘prendeu’ do começo ao fim.
Senti o mesmo quanto aos atores: a vitalidade do Edmundo (Elilson) e do bobo (Suenia) é contagiante e segura o público.