Dinamarca estreou na semana passada com apresentações lotadas e despertando muitas discussões pós-teatro. O novo espetáculo do Magiluth é inspirado em Hamlet, de Shakespeare, mas sua pulsação é o presente, a crise da humanidade e as questões políticas. Eles discutem a ideia de hygge, palavra que contém o segredo da felicidade dinamarquesa, a partir de uma festa de casamento, em que todos bebem espumante, inclusive o público, pelo menos uma tacinha. O coletivo faz uma segunda minitemporada, agora no Teatro Barreto Júnior, no Pina, às sextas-feiras deste mês.
Como novos espaços de crítica são muito bem-vindos e as vozes se multiplicam nas mídias sociais, resolvemos reunir e documentar aqui quatro opiniões postadas no facebook: de um escritor, uma atriz, um encenador e um pesquisador.
Ficha técnica
Direção:Pedro Wagner
Dramaturgia:Giordano Castro
Elenco:Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Mário Sergio Cabral e Lucas Torres
Desenho de Som:Miguel Mendes e Tomás Brandão (PACHKA)
Desenho de Luz:Grupo Magiluth
Direção de Arte:Guilherme Luigi
Fotografia: Bruna Valença
Design Gráfico: Guilherme Luigi
Técnico: Lucas Torres
Realização: Grupo Magiluth
Serviço:
Dinamarca
Quando: Sextas de agosto, às 20h
Onde: Teatro Barreto Júnior, Pina
Quanto: R$ 30 e R$ 15 (meia-entrada) na bilheteria ou https://www.sympla.com.br/eventos/recife-pe?s=Dinamarca
Duração: 1h20min
Classificação: 16 anos
SOU OFÉLIA. AQUELA QUE O RIO NÃO CONSERVOU
SIDNEY ROCHA
Edgar Alan Poe diz, n’A Filosofia da Composição, texto-base em nosso Curso Escrita Criativa:[…] “A morte”. “E quando esse assunto, o mais triste de todos, é também o mais poético?”. [….] “Quando ele se alia intimamente com a beleza. Logo a morte de uma bela mulher é, sem dúvida alguma, o tema mais poético do mundo”.
Quando assisto a adaptações inspiradas em Hamlet, me preocupo em enxergar a imagem de Ofélia, não a imagem da ninfa, morta pelos pecados do Outro, mas sobretudo Ofélia, a mulher, que, na maioria das adaptações, vive só porque Hamlet existe, e não vive nem existe para si mesma; a que “o rio não conservou”, lembrada logo no começo do texto pancadão de Dinamarca [Grupo Magiluth, 2017], Ofélia boiando no rio, porque “A água é a pátria das ninfas vivas, é também a pátria das ninfas mortas. É a verdadeira matéria da morte bem feminina”, disse Bachelard.
Ontem, quando Ofélia se materializou líquida & invisível sob a luz em Dinamarca eu ganhei a noite. Logo após, naquele carrossel fantástico, a Rainha [Giordano Castro] põe todos contra a [quarta-]parede: “O que você sabe sobre mulher? Você sabe o que é uma mulher? Você sabe o que é ser uma mulher? […] Você não conhece porra nenhuma.” Me lembrei das minhas conversas com Cida Pedrosa e& Renata Pimentel:
– Onde se encaixa o conceito “Lugar da Fala” (ou talvez Lugar do Silêncio) de cada um, ou cada uma?
Mas fiquei pensando mesmo foi na beleza e na morte, e em Allan Poe, e na morte de Ofélia como “texto” e nunca como “imagem”, no Teatro.
E dá pra pensar em tudo isso vendo Dinamarca? Dá. E dá pra ver e pensar muito mais. Dá pra sentir o gosto do beijo e do sangue na boca dos personagens, nós, esmagados pelo vapor, sob o impacto da valsa dos nossos desejos.
“Somos felizes, não somos? Somos amigos, ou não somos?”
Está tudo desmoronando em Dinamarca.
E isso não é uma metáfora. Nem uma indireta.
É o fim dos ‘bons modos’. A extravagância, e ela me fez lembrar meu Fernanflor [Iluminuras, romance, 2016] O hipnotismo. O fim da festa. A morte.
O Magiluth me atingiu pela segunda vez. Mas é só a segunda vez que vejo o grupo atuar.
O espetáculo mais sincero que vi nesses últimos meses.
- Sidney Rocha é escritor
NA DINAMARCA SOMOS TODOS UM
MÁRCIA CRUZ
E no distante reino de pessoas cor-de-olhos-azul-bic, o pulso, ainda pulsa! Ao menos, naquele proposto pelo Grupo de Teatro Magiluth. As portas do teatro se abrem e o jogo é completamente estabelecido, não há como escapar, não tente sequer respirar, não-vai-dar-tem-po! Sugestão: Entregue-se, sem resistências! Eles são feras famintas, estão ávidos para iniciar o jogo e mais, eles estão precisos.
A ofegância das batatas deu espaço para elegância, e aqui não me refiro ao ambiente de festa e sim à precisão de quem se busca, de quem mergulha em si mesmo e aprofunda-se naquilo que investiga. Falo dos atores. Mas afinal o que há de tão extra-ordinário nesta montagem baseada em Hamlet, de Shakespeare? Vou falar apenas sobre Aquilo que meu olhar guardou para você, a estrutura narrativa do espetáculo.
Em Shakespeare a narrativa ímpar é totalmente construída sobre as personagens, no caso um príncipe, uma mãe, um tio, um fantasma e, em meio a tudo isso, Ofélia. Em Dinamarca, essas personagens estão diluídas, e o que é potencializado é o discurso. Ele foi mastigado, deglutido e digerido pelo grupo.
Em Dinamarca, Hamlet está nos poros e na musculatura dos atores. É atual, é local, é universal, só não é do Reino de Deus, não mesmo. E mais, o discurso é o cerne de toda ação e toda a ação está em constante pulsAção. Esse movimento remexe águas profundas, comunica como água, com fluidez, toca, significa e, de quebra, esse novo discurso-movimento-rítmico proposto pelo Magiluth ao Hamlet traz à tona duas personagens que no texto original ficam em segundo plano, mas em Dinamarca ganham luz e força: Gertrudes e Ofélia. A narração ao final do espetáculo dá o arremate entre o tema – poder – e a encenação. Por tudo isso repito, entregue-se, vale muito à pena, até porque na Dinamarca proposta pelo Magiluth, somos todos um. Bravo!
Márcia Cruz é atriz
A MASSA PODRE
MARCONDES LIMA
A massa, podre e inerte, culpando os poderosos. Ela está assim na nossa e na Dinamarca de outros. Onde a única diferença entre PODRE e PODER está na migração de um R.
Quando os discursos sofrem de falências múltiplas de sentidos é necessário que busquemos outros tantos. Fique sentido. Faça sentido. Tome um sentido. Encontre um sentido. Sinta-se, esclareça-se, pense-se para chegar a algum que possa chamar de seu. Sentido também pode ser uma expressão de atenção e cuidado. Duas coisas de que precisamos muito hoje em dia. Então vá ver a vociferação cênica dos Magiluth. Vá se irmanar com outros na desconstrução e construção de sentidos. Teatro também serve pra isso.
Agora se você é daquelas pessoas que não conseguem deglutir metáforas e preferem tudo mastigadinho, pastoso ou liquefeito, se agarre com um pratinho raso de papa do tipo televisiva e rala. Mas vou avisando: ficar no seu pequeno e recluso conforto e satisfação não lhe levará a lugar algum. Nem o trará a si mesmo.
Vai lá criatura. Eu fui.
Marcondes Lima é encenador
EM DINAMARCA, MAGILUTH TE CONVIDA A UMA FESTA, MAS, CUIDADO, UM GOSTO AMARGO PODE PERDURAR!
LEIDSON FERRAZ
Não se engane. Após toda festa regada a muita bebida – entre outras drogas lícitas e ilícitas servidas a rodo – é bem provável que uma “bad trip” te persiga após a farra dantesca. Pois é mais ou menos isso que o Grupo Magiluth propõe com o seu novo espetáculo, Dinamarca. A obra é farrista, mas, acima de tudo, política, para além do que a palavra possa conter em seu sentido inicial. Em tempos de Golpe declarado, num país completamente desacreditado por conta dos homens e mulheres que o conduzem, com verdadeiras facções apologéticas em confronto permanente, o maior pecado não permitido é ficar, hoje, inerte. “Se não há nada mais a fazer, aproveitemos a festa. Sobe o som…”, grita mais ou menos isto um dos integrantes do grupo em determinado trecho. A proposta é cínica e cai como uma luva em tempos de apatia quase generalizada.
É nesta ferida que os magiluthianos estão colocando o dedo, ou melhor, entram com tudo dentro. E usam a metáfora do país quase perfeito, a Dinamarca, para expor nossos desejos mais recônditos: ser o que não somos realmente. Ao abrir-se a porta do teatro, os atores Giordano Castro, Lucas Torres , Mário Sergio Cabral, Erivaldo Oliveira e Bruno Parmera preparam uma confraternização para os convidados, com direito a champanhe para todos, e reforçam com tanta ênfase o estado de alegria e companheirismo, que de antemão já dá para descobrir que seremos cúmplices de uma mentira reinante. Tudo o que é dito e feito é dúbio, corrosivo, sacana. E rimos da própria podridão que há em cada um de nós, tendo como referência maior aquele país tão soberbamente rico financeiramente e gélido nas relações humanas.
A obra teve como disparadores iniciais algumas personagens da peça Hamlet, de William Shakespeare, minimamente apontada aqui e ali em seu núcleo familiar, pois o que o Grupo Magiluth pretende é expor a imundície ética e de caráter que nos corrói. A brincadeira ácida dissolve o pretenso politicamente correto e, pelo simples desejo da perfeição nórdica, inclusive das características físicas dos seus cidadãos, põe para fora todos os dissabores em sermos o que somos e, a contrapelo, nos faz ver a enorme quantidade de preconceitos, rancores, indecências, ódios, abusos e intolerâncias que carregamos, incluindo questões como supremacia racial, de gênero, de cor e condição social. É uma iniciativa pulverizada de referências do tempo presente, certamente fruto de muitas discussões e experimentações em sala de ensaio.
A ideia é derrubar tudo o que há na bela mesa posta aos convidados, literalmente, e revelar nossos desejos mais sórdidos sobre o próximo. Afinal, dê poder a um ser e ele mostrará quem é na sua essência. Há podridão em todo lugar, claro. E neste bolo de gente de um “reinado de aparências” é que se mostra a faceta mais cruel da humanidade: daqueles que arrotam felicidade suprema e não estão nem aí para os outros. Ou seja, uma festa de “bacanas” nem tão bacanas assim. Para aquele público mais jovem que teima em dialogar com os rapazes do Grupo Magiluth apenas pelo riso frouxo, é uma segunda “porrada” para frustrar expectativas, pois a primeira já foi dada em O Ano Em Que Sonhamos Perigosamente, produção de 2015, também com o encenador Pedro Wagner à frente. Aliás, as duas montagens dialogam profundamente.
Alguns procedimentos estilísticos vistos ali voltam como parte da assinatura de Pedro Wagner, com potência para bem mais. Lá estão a dancinha do conjunto, os beijos engolidores, a nudez sem desembaraço, os fios e microfones maltratados, o liquidificar de clássicos da dramaturgia, os abraços profundos e até a farinha nos rostos. Coincidência ou não, nos remetem a uma possível sequência de opções em recorrência. O fato é que Pedro Wagner se revela um encenador que sabe manejar com referências estilhaçadas e fragmentos. Pode até não agradar em nada aos mais tradicionais, mas consegue induzir seu elenco a composições de escrita – é Giordano Castro quem assina a dramaturgia – e de cena muito interessantes. Tudo é estranho, caótico, imprevisível, e aqui estes termos são como vantagem na sua composição de encenação, porque imprimem um à vontade essencial para o elenco magiluthiano.
Não há grandes momentos individuais dos intérpretes, pois o coletivo se coloca bem em cena, mas é inegável que Giordano Castro conquista em seus arroubos de pretensa agressividade como Gertrudes, a fragilidade inicial que se revela despótica na mulher-mãe, assim como na versão mais mefistofélica de Claudius, o tio de Hamlet, que matou o próprio irmão (é de extrema ironia o uso do “garotinho mimado” em seu discurso ao sobrinho, impossível não se remeter a um corrupto político brasileiro). E podem até me achar careta neste apontamento, mas sinto que o uso da palavra está cada vez melhor no elenco – uma das fragilidades mais visíveis para mim nos trabalhos anteriores, com progressão notável em O Ano Em Que Sonhamos Perigosamente”. Lucas Torres é ainda quem menos parece à vontade com o texto e a projeção e articulação das palavras, principalmente nas falas iniciais quase inaudíveis – ditas após uma vigorosa demonstração de intimidade com a cerveja/clarim imperial, numa ótima sacada. Erivaldo Oliveira, Mário Sérgio Cabral e Bruno Parmera divertem-se em cena, o que é muito bom para a proposta.
A montagem conta com direção de arte de Guilherme Luigi, luz do próprio coletivo e trilha sonora executada ao vivo pelo duo Pachka (a dupla Miguel Mendes e Tomás Brandão) que põe som pop e brega e utiliza dispositivos eletrônicos, principalmente para reverberação das vozes, durante toda a encenação. Estruturalmente, ainda há algo para se resolver na dramaturgia, principalmente nos finais falsos criados – a cena da Ofélia, a jovem namorada de Hamlet que se suicida e teve seu vestido esgarçado no rio, aqui posta como a garota que dança com fitas esvoaçantes, promete uma poeticidade que não acontece, e pode ser condensada. Digo isto porque entre gritos, estouros e rompantes, há sarcasmo em excesso, assim como recorrências de humor que poderiam ser suprimidas por retornarem com muita frequência. O mesmo se dá com frases que parece já terem sido ditas pouco antes, e alongam a montagem mais do que o necessário.
No entanto, há um apelo importante em Dinamarca que é bastante significativo: a peça tem assinatura estética e de discurso muito própria sobre o que e como eles querem dizer. Tanto que ao final sugestivamente apocalíptico, bastante provocador, ao nos lançarem uma pergunta-metáfora em bela cena, “O que fazer se as dinastias cíclicas continuarão?”, impossível não sair mexido. Provoque-se, então. Tente vê-los!
Leidson Ferraz é pesquisador