Quando alguém deixa de existir

Daniela Travassos como a artista de uma música só. Fotos: Pollyanna Diniz

Falando em Palco Giratório, fiquei me perguntando quando teremos a oportunidade de ver novamente o trabalho Paralelas do tempo – A teatralidade “do não ser”, fruto de uma pesquisa do grupo Fiandeiros, aprovada pelo Funcultura, sobre moradores de rua. Na realidade, não era necessariamente para virar uma montagem, mas a companhia tem nas mãos três textos e um belo “experimento” cênico sob a direção de André Filho.

Atores passaram pela experiência de ir para as ruas

Não sei vocês, mas eu tenho (ops, tinha!) um pouco de preconceito quando ouvia que uma peça abordava o tema ‘moradores de rua’. Vai ver foi trauma de um espetáculo que vi na época do colégio e saí horrorizada: eram os moradores de rua na visão de uma classe média elitista, que nem sabia do que estava falando.

A Fiandeiros sabia que corria esse risco e, por isso mesmo, foi preciso sofrer na pele. Foram para as ruas eles mesmos como mendigos, sentiram medo, viram o problema de perto, conheceram histórias, foram ignorados até por “conhecidos”.

Essa experiência resultou em três textos e, consequentemente, quadros dramatúrgicos apresentados na sede do grupo, na Boa Vista, no dia 21 de maio. Depois da encenação, ainda teve um debate bem interessante, quando os atores tiveram a oportunidade de contar como foi o processo do trabalho.

No primeiro quadro, intitulado Salobre, Manuel Carlos e Daniela Travassos interpretaram um ex-palhaço e uma garota que só sabia tocar uma música na sanfona. Ele foi queimado na rua; ela o salvou. Ele perdeu os filhos; ela era a única companhia. Tudo o que tinham estava em malas e sacos. Na memória. Mas “qual o mapa de saída deste lugar?”, quando estamos falando de “gente que se perdeu no tempo de voltar”. Mas é impossível não aplaudir o palhaço e ele nos traz a esperança, mesmo que incerta, de um amanhã.

Manuel Carlos e seu ex-palhaço

No segundo, O presente, acompanhamos duas mulheres vítimas de uma enchente, que se encontraram há dez anos. Uma delas é cega (Kellia Phayza) e espera pela filha que nunca chega. A outra (Paula Carolina) se tornou a única companhia, a guia, o ombro, a cúmplice. Nos sacos carregados de um lado para o outro, “só o que o tempo botou e isso é muita coisa, porque é o mundo todo”. Elas não sabem para onde ir e sentem falta do tempo em que conseguiam sonhar. Mas é mesmo preciso ser moradora de rua para se sentir assim?

Kellia Phayza e Paula Carolina no segundo quadro do experimento

O último quadro, A cura, encenado por Jefferson Larbos, foi o que mais me causou estranhamento e certa “repulsa”. Tratou de uma realidade muito comuns às ruas: a loucura e as drogas. Talvez seja o mais distante porque é o que menos fazemos questão de ver, o mais visceral, aquele homem numa situação tão deplorável conversando com um manequim em momentos de violência ou solidão.

Jefferson Larbos em A cura

O grupo conseguiu atuações bastante tocantes e foi além do tema proposto. Não trouxe ao palco só histórias de moradores de rua, mas tratou de solidão, abandono, traumas sexuais, medo, violência, tempo. Um espetáculo que merecia ser visto nos teatros – ou mesmo no próprio espaço da Fiandeiros. Porque faz com que mude algo, com que pelo menos o assunto seja discutido e, quem sabe, possamos enxergar quem deixou de existir, mesmo estando ali, na nossa frente.

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3 pensou em “Quando alguém deixa de existir

  1. Ricardo Mourão

    Conversando com o Manoel Carlos, quando da realização da Oficina da Cia Clara (MG) no Espaço Fiandeiros, tive muita vontade de ver esses “experimentos” levados à cena. Foi muito tocante tudo o que ele, Manoel, me relatou… A vivência, expectativas, frustrações e tantos outros sentimentos envolvidos nessa experiência tão rica. Não assisti quando da primeira apresentação, infelizmente. Espero que voltem a apresentar!

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  2. Roberto Hildegarhd

    Assisti e realmente é um trabalho muito forte e encantador, mostrou-me os seres humanos por trás das vestimentas rasgadas e dos sonhos despedaçados.
    Uma realidade embaixo do nosso nariz, mas geralmente longe de nossos corações.
    Parabéns ao grupo.

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