A morte como escolha em duas peças de Milo Rau
Crítica dos espetáculos Grief and beauty e Familie

Grief and beauty (Deuil et beauté / Luto e beleza), de 2021. Foto: Michiel Devijver / Divulgação

Princesa Isatu Hassan Bangura. Foto: Michiel Devijver / Divulgação

Staf Smans amparado por Arne de Tremerie. Foto: Michiel Devijver / Divulgação

A morte “escolhida” pulsa no centro das duas primeiras peças da Trilogia da Vida Privada do dramaturgo e realizador suíço Milo Rau. A terceira do tríptico deve estrear em 2024. Assisti aos espetáculos Grief and beauty (Deuil et beauté / Luto e beleza; 2021) e Familie(2020) no La Colline Théatre National, em Paris, nesse mês de fevereiro, com texto em suíço e legendas em inglês e francês simultaneamente.

Milo Rau foi o artista em foco da sexta edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp, em 2019, e apresentou no Brasil A Repetição. História(s) do Teatro (I), Cinco Peças Fáceis e Compaixão. Ele já disse que “É possível levar tudo ao palco” e que não é ele quem escandaliza. “Minhas produções que são relacionadas a fatos escandalosos”.

Grief and beauty e Familie são peças inspiradas em algum acontecimento da realidade. São espetáculos que não nos deixam indiferentes. Ainda fico refletindo se a intenção de Milo Rau não é mesmo chocar esse mundo contemporâneo já tão abarrotado de coisas de todo o tipo e imagens que se derramam de violência. Nem se Sontag poderia me acudir nessa questão. O fato é que dificilmente alguém sairá indiferente de uma dessas duas montagens da Trilogia da Vida Privada.

Ao entrar no teatro, uma tela estampa o rosto sorridente de Johanna B. Seus olhos vivazes dão as boas-vindas. Ela vai morrer / já morreu, alguns já sabem. Uma das atrizes dirá que a simpática mulher escolheu o momento de sua morte, um dia após seu aniversário de 85 anos. Na Bélgica ou na Suíça é possível fazer eutanásia legalmente e Grief and beauty projeta alguns momentos do último dia de sua vida, cercada por familiares e amigos queridos.

Johanna, nascida em 1936 em Roterdã, tinha uma doença incurável. Na sua casa, ela conversou por mais de quatro horas com o encenador suíço e seus assistentes. O encontro foi gravado. Entre outras coisas, Johanna deixou registrado: “a morte é um trabalho solitário”, mas que ela quis compartilhar com o público do diretor Milo Rau.

A cenografia da peça é de um apartamento hiper-realista, que enfileira banheiro, quarto com cama hospitalar, sala e cozinha. Os acessórios funcionam e são acionados em algum momento, como o rádio ou a cafeteira elétrica. Alguns dos objetos foram doados por Johanna, como o relógio de pêndulo.

Anne Deyglat e Staf Smans. Foto: Michiel Devijver / Divulgação

O dispositivo da dramaturgia do cotidiano deixa transbordar o processo de criação. No início o elenco está sentado em um dos lados do palco. O espetáculo entrelaça as histórias supostamente verdadeiras de quatro atores amadores e profissionais, tendo como epicentro a morte. Arne de Tremerie, Anne Deyglat, Princesa Isatu Hassan Bangura e Staf Smans expõem suas questões. A Princesa Isatu faz a conexão com Johanna, elucidando seus desejos e confidências.

Do lado do jardim, a violoncelista Clémence Clarysse toca ao vivo as melodias que Johanna B. escolheu. O cinegrafista Moritz Von Dungern manipula sua câmera do lado do pátio, para projetar imagens da cena, que são alternadas com as do vídeo de Johanna.

Os depoimentos são entrecortados. Cada um conta a sua versão das experiências. Arne de Tremerie lembra do seu primeiro papel aos 8 anos, como Pequeno Príncipe. Ele diz que a mãe sofre de esclerose múltipla, o quanto foi impactado pela separação dos pais e como virou um exímio cuidador.

O homem velho Staf Smans, primogênito de sete irmãos e irmãs, cresceu na fazenda, perdeu irmã e mãe, foi pro exército, num baile encontrou uma mulher que nem o atraia tanto, casou com ela, celebraram 50 anos de casamento. Ele se tornou ator aos 40 anos, e não sabe como descrever a morte da filha aos 33 anos.

Anne Deyglat, a mulher de meia idade que cuida do velho, viveu um amor recíproco por um jovem de 24, com quem usufruiu da felicidade por 21 anos na Itália. Até que o rapaz avisa que está apaixonado por outra. O mundo desabou. Ela confessa gostar de estar perto dos animais e da natureza. Passou a acompanhar a vida noturna dos lobos por um site na internet. Em algum momento, ela traduz sua tristeza quando grita/uiva.

Princesa Isatu Hassan Bangura, que faz o papel de enfermeira, é de Serra Leoa, viveu no Senegal com seu pai, relata as desavenças familiares, as desconfianças da mãe, as ameaças do pai e a saudade de seu país, de cheiros e sabores.

O velho que adormece na frente da televisão e precisa da ajuda do jovem para um banho sentado, segue o mesmo percurso de Johanna. Ele tem câncer. O grupo toma champanhe antes da aplicação da injeção.

No vídeo de arquivo, Johanna se despede dos seus. O close-up expõe seu rosto luminoso e sereno. “Pode-se estar triste… mas nada de drama”, comenta. Ela diz que está pronta, que tem sono para recuperar, que não há nada de errado, que ela sempre quis sair sorrindo. O elenco avisa que o material é autêntico. Depois da picada Johanna para de respirar.

No palco, a morte é fictícia. O teatro some, com o cenário do apartamento suspenso e o jogo de luz e fumaça criando a ilusão de estrelas ou buracos cósmicos, com apenas vestígios do que existiu. Enquanto o velho passa a dançar em seus passos românticos. A musicista Clemência, acompanha o canto do jovem em um trecho de Lamento de Didon, de Purcell, uma peça apreciada por Johanna.

Não vejo beleza reconfortante em mostrar os últimos suspiros de uma mulher que escolheu a eutanásia. Mostrar esse ato de forma tão explicita é de uma radicalidade controversa. Mas Grief and beauty reafirma a mortalidade contra essa ilusão de ser imortal provocada pela pressa de viver. Johanna corajosamente fez as pazes com sua sepultura.

Mesmo com a autorização e desejo de partilha da homenageada da peça eu me pergunto se Milo Rau fez a melhor opção ao compartilhar esse momento tão singular. O cinema expõe gravada a agonia da morte. Mas o teatro? Que ocultou mortes para narrá-las? Ainda fico sob o impacto desse acontecimento! Assistir ao último suspiro de Johanna, depois da injeção, encarado de forma tão simples, como coisa banal, foi difícil.

Familie

 Familie tem no elenco os artistas Filip Peeters e An Miller (centro) e suas duas filhas Leonce e Louisa

Familie é inspirada num fato aparentemente inexplicável. Em 2007 em Coulogne, uma pequena cidade francesa ao norte perto de Calais, quatro pessoas da mesma família foram encontradas enforcadas na varanda de casa. Os Demeester (pai, mãe, filho e filha) deixaram apenas uma mensagem lacônica “On a trop déconné” (“Ficamos muito fora de controle”, mais traduzida como “Nós erramos muito, desculpe…”). O caso foi encerrado como suicídio coletivo, sem motivo conhecido.

Para representar esse episódio, Milo Rau reuniu no palco uma família da vida “real”: os artistas holandeses An Miller e Filip Peeters, e suas duas filhas adolescentes Leonce Peeters e Louisa Peeters, além dos dois cães.

O cenário de Familie enquadra mais ao fundo do palco uma casa com paredes de vidro, que expõem todos os cômodos (alusão que o núcleo não tem nada a esconder?). À frente, uma mesa, um caderno, uma luminária, duas cadeiras. Uma câmera lateral. Apenas a filha mais velha ocupa esse espaço-dispositivo da entrevista. Ela articula a história. No alto, uma grande tela.

A filha mais velha reflete sobre o suicídio coletivo

Foto: Michiel Devijver / Divulgação

Foto: Michiel Devijver / Divulgação

Os Peeters-Millers, o clã substituto dos Demeesters, recriam os últimos momentos dos suicidas. Milo Rau já disse que não há ficção, que os atores contam coisas de suas vidas. Há uma sequência em que cada um anuncia o que prefere, “eu amo…” isso e aquilo e tal. Não há nada de extraordinário nessa jornada.

Assim, o grupo representa momentos prosaicos, como a preparação do jantar ao vivo pelo marido/pai com cheiro de comida inundando o ambiente, o banho da mulher e a colagem das fotos dos momentos em comum no banheiro, o telefonema da mãe à matriarca, a refeição em conjunto, as confidências íntimas, o estudo de inglês das meninas com os cães ao colo. Coisas ocorrem simultaneamente e algumas cenas são transmitidas em detalhes pelo telão.

Antes do gesto fatal, o conjunto de ações é detalhadamente banal e monótono, enquanto o ato final é engendrado, exposto em paralelo com o trabalho investigativo realizado em torno dos Demeesters e os vídeos da viagem até a casa de Coulogne, imagens à beira-mar, escultura de Rodin. De vez em quando, os faróis dos carros que passam avisam de outras existências ao longe.

É complexa a tecedura que agrega os diferentes elementos: o que foi apurado dos fatos originários e os comentários feitos pelo grupo sobre isso, a criação/ficção dessa última noite na preparação dessa macabra cerimônia.

A representação utiliza uma espécie de reportagem (os atores foram visitar a casa dos franceses para fazer um levantamento para o espetáculo), drama teatral (a encenação das últimas horas dos suicidas) e a narrativa da adolescente mais velha filmada ao vivo, em closes, exibindo uma beleza cativante, mas fria, com o rosto minimizado de expressões e uma voz monótona e terna. Ela, que lidera o ato final, confessa que pensamentos suicidas povoaram sua cabeça, em estado de niilismo da idade.

A noite encenada é preenchida de pequenas coisas, da beleza gélida, de um repertório poderoso para instalar algumas emoções, com Bach, Haendel e Leonard Cohen. Ou ainda a cena do ritual de despedida com Air de Télaïre: Tristes apprêts, da ópera Castor et Pollux, de Jean-Philippe Rameau. Enquanto a trupe de atores alimenta a reprodução do gesto dos Demeester, a ação primeira se recobre de enigma.

Ao recriar / inventar a noite final, a cena se cerca de esvaziamentos de sentidos da vida. A vida espantada com sua própria razão em si mesma se arrasta nos intermináveis segundos em que a trupe de atores re-produz o ritual de enforcamento. Milo Rau faz o público ver até o último gesto.

Na sessão que assisti, algumas pessoas ficaram paralisadas na plateia após o término da peça por alguns minutos. Uma sensação de suspensão me atingiu, seguida de uma reflexão dolorida do que é a vida e as razões de existir.  Seguir a pensar na competência desse artista de conduzir / manipular os afetos de estar no mundo e propor porquês.

Grief and beauty
Concepção e mise en scène: Milo Rau
Assistente de direção: Katelijne Laevens
Elenco: Arne de Tremerie, Anne Deyglat, Staf Smans, Staf Smans e Johanna B. na tela
Dramaturgia: Carmen Hornbostel
Colaboração na dramaturgia e treinador: Peter Synaeve
Câmera: Moritz Von Dungern
Música ao vivo: Clémence Clarysse
Composição: Elia Rédiger
Cenografia: Barbara Vandendriessche
Iluminação: Dennis Diels

Familie
Concepção e mise en scène: Milo Rau
Elenco: An Miller, Filip Peeters, Leonce Peeters, Louisa Peeters 
Dramaturgia: Carmen Hornbostel 
Cenários: Anton Lukas 
Figurinos: Anton Lukas, Louisa Peeters 
Vídeo: Moritz von Dungern 
Arranjos musicais: Saskia Venegas Aernouts
Iluminação: Dennis Diels

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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Manifesto Transpofágico em Paris
e o Festival Everybody 2023

Renata Carvalho apresentou espetáculo Manifesto Transpofágico em Paris, . Foto: Rodrigo Fidelis

Duas sessões esgotadas. Foto: Rodrigo Fidelis / Divulgação

Poderia começar esse texto de muitas maneiras. A partir da recepção calorosa do público francês ao Manifesto Transpofágico. Com foco no crescimento da atriz Renata Carvalho desde a estreia da peça em 2019. Pelo que estava fora da cena (e nem tanto), do recrudescimento de atos antidemocráticos no Brasil ao recente horizonte humanitário com a volta de Lula. Por avanços na luta trans, que repercutem no palco. Existem caminhos e escolhas, sem garantias no caso do meu texto.

No trecho de um dos vídeos (um dos documentos) do espetáculo, uma frase ficou ecoando na minha cabeça nessa temporada parisiense, talvez porque sintetize a extensão e profundidade da violência contra os corpos trans: “cortei um braço… é pouco; corte o outro… é pouco, corte o pescoço”. É um depoimento de Bartô a Goulart de Andrade e Andrea de Maio, uma reportagem sobre a “Casa da Bartô”, de 1985, em que ela fala sobre aplicação de silicone industrial em travestis e como utilizava automutilação com gilete para defesa quando eram presas por abuso de poder policial.

Manifesto Transpofágico conta breves histórias de violências. Mesmo com cenas tocantes e outras engraçadas, a peça pinta um Brasil agressivo e ameaçador contra corpos trans, de ontem e de hoje. E expõe o quanto o mundo é atrozmente transfóbico. São e serão necessárias mais mudanças e garantias de direitos.

Solo com dramaturgia de Renata Carvalho e direção de Lubi. Foto: Rodrigo Fidelis

O Brasil se “acabava” no Carnaval 2023, num quase desespero de alegria depois da suspensão da festa pela pandemia e do alívio de se livrar do traste-ruim. Em Paris, pouco afeita aos delírios carnavalescos, no Carreau do Temple, Renata Carvalho, atriz trans militante e transpóloga conduzia sua performance solo e ensinava / alumiava umas coisinhas sobre os malefícios da cisnormatividade, do patriarcado, da exclusão histórica, da hipersexualização, da perseguição e brutalidade contra às pessoas trans.

As duas apresentações do Manifesto Transpofágico, faladas em português com legendas em francês, em sessões lotadas nos dias 20 e 21 de fevereiro, fizeram parte do Festival Everybody 2023.

Renata Carvalho traça um breve panorama da construção social e das representações de mulheres trans a partir da sua própria experiência. De menino saco-roxo, passando pela rejeição dos pais e a transformação do seu próprio corpo, uma invenção à base de desejos inabaláveis e silicone industrial.

Sozinha no palco, usando apenas uma calcinha justa, ela relata a guerra entre seu corpo e os olhares curiosos, inquisidores, desejosos, questionadores, a sempre querer arrancar pedaços simbólicos. Quase no escuro, sua voz anuncia um ajuste, enquanto convida a plateia para a sessão de transpofagia, a mirar – com a ideia de comer e digerir – seu corpo trans. “Meu corpo estava lá antes de mim, quando eu não tinha pedido nada. Ele é mais velho do que eu”, confessa, para destacar que “Hoje resolvi me vestir na minha própria pele”.

Essa pele que ela habita é esquadrinhada pela dramaturgia da iluminação, que retira o rosto dessa moldura. O corpo de Renata está recortado por luz e sombra. Os letreiros luminosos “gritam” obsessivamente a palavra “TRAVESTI”, que saltam do azul ao rosa choque, entre outras cores. As histórias são pesadas, de crueldades e humilhações. Mas ao falar de si, a atriz amplia seu foco para outras vivências semelhantes, para sua ancestralidade trans.

Corpo-desejo que persegue a essência do ser e não aceita as jaulas sociais. Estar em desacordo é ir à luta para se tornar protagonista de sua própria existência. A artista relata esses fatos em palavras simples, em episódios pontuais e compreensíveis, com franqueza, honestidade e coragem.

Corporeidade-história repleta de significações entregue praticamente em estado cru para o escrutínio da plateia. Mas há um preço para isso, cobrado mais sutilmente na primeira parte do espetáculo e mais diretamente na segunda, da consciência da transfobia de cada uma que contempla sua estampa.

Foto: Rodrigo Fidelis

Na peça as 3 uiaras de sp city, a dramaturga Ave Terrena Alves avisa, a quem interessar, que as personagens Miella e Cínthia devem ser interpretadas por atrizes travestis / mulheres trans, pelo menos até o ano de 2047. O texto é dedicado às travestis / mulheres trans de ontem e hoje, que lutam para existir.

Cito esse drama musical da Ave Terrena (que esteve em cartaz no CCSP em 2018) porque episódios da perseguição do Estado a homossexuais, travestis e prostitutas nos idos dos anos de 1970 e 1980 são retrabalhados artisticamente na peça. E também pela luta contra o transfake. Renata Carvalho é uma das fundadoras do Movimento Nacional de Artistas Trans- MONART, onde foi criado o Manifesto Representatividade Trans, com o objetivo de garantir que personagens transgénero sejam interpretados por artistas transgénero.

Algo avançou nesse terreno, mas é uma luta constante. Desde a infância é preciso enfrentar uma sociedade transfóbica, que faz um jogo canalha de glamourizar, capitalizar narrativas e até matar real ou simbolicamente. No Brasil isso ganha uma proporção gigantesca, já que o país lidera vergonhosamente o percentual de assassinatos, 40% do total mundial de pessoas trans. Há também o número alto de suicídios, por rejeição da família, dificuldade de sobrevivência, insegurança de toda ordem.

Para existir é preciso que as histórias não sejam apagadas, que elas sejam contadas e recontadas. E Renata vale-se de arquivos documentais para fazer uma leitura crítica da trajetória cultural das travestis brasileiras. Sua transcestralidade que reconhece muitas que vieram antes, como Rogéria, Roberta Close e muitas outras.

O lugar social que ela ocupa é fortalecido por sua atuação como transpóloga, uma rama da antropologia que ela mesma criou, um estudo científico, teórico, etnográfico, epistemológico e empírico sobre sua “Transcestralidade” – uma antropologia trans, uma travesti que estuda o corpo travesti/trans, sua historicidade, transcestralidade, identidade, memória com foco nas artes.

Seu teatro é vivo e pulsante, humanamente imperfeito, com cargas da sujeira feito o rock, longe de qualquer ideia de alta cultura, beleza e bom gosto cis. Suas peças, como suas pesquisas, são atravessadas por reflexões e vivências da vida que reverberam no palco. Isso desde o questionamento da identidade de gênero em 2012, com espetáculo Em mim vive outra. Passando pela complexa e tumultuada atuação em O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, um texto de Jo Clifford, onde interpretava Jesus de Nazaré. Como o Evangelho veio a projeção, reconhecimento, mas também proibições, censuras, violações de direitos, ações judiciais, ataques, ameaças de espancamento e morte, linchamentos virtuais e a manifestação brutal de ódio contra o corpo travesti.

Vânia Munhoz fez a tradução. Foto: Rodrigo Fidelis / Divulgação

A segunda parte do espetáculo é na plateia. É o jogo direto com o espectador, performance ardente e cada sessão é única, depende das respostas, das disponibilidades dos depoimentos. Renata Carvalho pergunta sobre a relação estreita daquele grupo com o corpo, grau de conhecimento e afetividade, se existe alguém na família, como é a relação.

Ao fazer uma enquete com a plateia para saber quantos homens cis já ficaram publicamente com uma pessoa trans, a atriz desenvolve uma sequência lógica para dar o xeque-mate na fragilidade cisgênera.  Do medo de perda de potência, do receio de virar o que não é e outras geleias na subjetividade.

Essa segunda parte da peça  Manifesto Transpofágico é sempre surpreendente, é uma energia viva a questionar as violências da genitalização do gênero. Como já pontuou Dodi Leal, uma artista gênero-desobediente, a definição de mulheridade não é vaginal; a definição de masculinidade não é fálica.

Nas turnês ao exterior, a produção da corpo Rastreado procura convidar uma travesti do local. No caso de Paris a tradução ficou por conta de Vânia Vênus Munhoz Pereira.

Aqui vale um parêntese: Vânia Munhoz é uma brasileira radicada na França há 34 anos. Parte de sua história está no livro Ricardo e Vânia, de Chico Felitti, publicado pela editora Todavia. Ricardo, que virou uma lenda urbana e circulava pela região das ruas Augusta e Paulista, no centro de São Paulo, trabalhava na distribuição de panfletos, era conhecido como Fofão da Augusta. O destino dessas duas figuras se encontrou nos anos 1980, quando elxs moraram juntes e aplicaram silicone na face. Ricardo morreu em 2017 depois de falar por videoconferência com o amor da sua vida. Interessados em saber mais dessa história, o livro está disponível nas livrarias e já tem os direitos comprados para virar filme.

Nessa tradução ao vivo, a atriz pergunta ao público e depois dá sua explicação de alguns termos, como cisgênero (“Se você não sabe o que isso significa, com certeza você é!” ) ou “passável”. Na primeira apresentação, incentivados pela artista, algumas pessoas deram seu depoimento da experiência de ter alguém trans na família.

Na sessão do segundo dia alguém respondeu que havia diferenças na acepção da palavra travesti no francês e em português. Bom de qualquer forma o público que acompanhou o festival é não desavisado. Se o médio francês já é bem sabido, o que opta por ir a um evento LGBTQIA+ já está bem-informado dos estudos de gênero No primeiro dia, por exemplo, Renata conheceu uma jovem pesquisadora que faz mestrado sobre o seu trabalho cênico.

Os franceses não toparam passar a mão no corpo da Renata. A atriz reforçou seu discurso sobre a consciência de que o corpo das mulheres, das trans, das travestis, o cabelos dos negros, a barriga das gravidas não são mercadorias para se pegar e apalpar num impulso, sem autorização.

Os parisienses estão numa classe mais adiantada. Além disso, ao que parece, os franceses são treinados desde a infância a serem palestrantes, eles têm argumentação para tudo. E os registros do preconceito na gramática, nos hábitos dos países de primeiro para outros subdesenvolvidos mudam. Sutilezas e ironias. Sigamos.

Renata Carvalho é uma presença perturbadora, a atravessar os rumores da língua, a dizer de condições a que foram/são submetidos corpos com o seu pela sociedade. Um solo para rodar o mundo.

Com Renata Carvalho
Luz: Wagner Antônio
Direção: Luiz Fernando Marques
Vídeo: Cecília Lucchesi
Tradução: Vânia Vênus Munhoz Pereira
Operação de luz: Juliana Augusta
Produção: Corpo Rastreado

 

Onironauta de Tânia Carvalho. Foto: Laurent Philippe / Divulgação

A segunda edição do Festival Everybody durou cinco dias, de 17 a 21 de fevereiro de 2023, no Le Carreau du Temple, em Paris, um evento que juntou propostas artísticas que pensam e movimentam o corpo, questionando estereótipos de várias naturezas. Além dos espetáculos, o Everybody contou com aulas de dança e de bem-estar, instalações de arte contemporânea e encontros para públicos variados.

Além do Manifesto Transpofágico, destaco três espetáculos. A ousadia estética de Onironauta de Tânia Carvalho, a alegria festiva em Happy Hype, dos Ouinch Ouinch x Mulah e a delicadeza de uma dança de cuidado em Formes de vie, do coreografo Éric Minh Cuong Castaing.

A coreógrafa e bailarina portuguesa Tânia Carvalho é internacionalmente conhecida por suas ousadias e desassossego com os muros erguidos entre linguagens artísticas. Quando quer, flerta e namora com a música, artes visuais e cinema. Título do trabalho de Tânia Carvalho, Onironauta (do grego óneiros, sonho + náutés, navegante) é uma pessoa que pode permanecer em um estado de consciência enquanto sonha. Dessa maneira, é capaz de se mover dentro dos sonhos como se fosse a própria realidade, conhecido como “sonho lúcido”.

Em cena, dois pianos tocados por Tânia e o pianista Andriucha e mais sete bailarinos. Esse estado dos sonhos tem muito de surreal, imagens de abismos e visão do paraíso. Navegamos entre luz e a escuridão. por um percurso estranho, desenhos desconcertantes. A provocação estética está embaralhada de vocabulário clássico e outras danças identificáveis ou não um tsunami de movimentos que desafiam as ideias de beleza. Há uma repetição bem-humorada, quebras e invasão estridente dos pianos. Sonhos estranhos fantasmagóricos e cheios de fúria.

Happy Hype, com o coletivo OUINCH OUINCH Foto Ivana Moura

Mulah comanda o som eletrizante de músicas afro e hip-hop na peça Happy Hype, com o coletivo OUINCH OUINCH, que se instalou no grande salão do ginásio. No plateia crianças, jovens famílias inteiras. No palco, o grupo a exercita a liberdade dos corpos que se encontram e se agarram na pista, que se abraçam e fazem coreografias insinuantes. Um chamamento de uma energia coletiva, que se transformou em festa no final.

Equipe do espetáculo Forma(s) de vida Foto: Ivana Moura

O trabalho assinado pelo designer, coreógrafo, diretor Eric Minh Cuong Castaing desenvolve um sensível processo entre o mundo do cuidado e o mundo da arte. Forma(s) de vida, uma peça em que corpos com problemas de mobilidade e corpos performáticos se combinam para realizar uma dança própria.

Kamal Messelleka, um ex-boxeador, que perdeu a força das pernas após um derrame, e Elise Argaud, que sofre da doença de Parkinson, tem a memória de seus corpos reativada. No palco estão Yumiko Funaya, Aloun Marchal, Nans Pierson.

As projeções de vídeos das caminhadas na natureza, ou dos exercícios de fortalecimento expõem as dificuldades, as dores, a insistência. E brota um poder estético nesse tentar, e falhar, e tentar de novo, um desenho, um arco, uma pulsação.

Com o auxílio dos coreógrafos como próteses humanas, o ex-boxeador e a bailarina ampliam os movimentos, criam uma poética, expressam um jeito de estar no mundo. O tempo é expandido na repetição, no ralentar do gesto. A força de criar arte se apresenta na esteira de um profundo respeito à vida.
 

 

 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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Nos tempos da peste
Crítica do espetáculo Poema,
do Grupo do Ator Nu, do Recife

Edjalma Freitas no espetáculo Poema. Foto Rogério Alves /Divulgação

A peste tem muitas facetas. Todas horrendas, sabemos com a memória bem acesa pelos óbitos da pandemia. Quando a arte transborda do real pode amplificar o registro de um tempo, expondo em combinações complexas as dores e precariedades da existência. Na fase mais crítica da pandemia de Covid-19, o poeta, jornalista e gestor Antonio Martinelli criou e publicou em São Paulo, em 2020, sua Tetralogia da peste [+ dois tempos, uma cidade], pela n-1 edições. Ele construiu versos inspirados na calamidade que parou o mundo. É uma escrita sôfrega e inflamada, que percorre geografias e sugere imagens de convulsão das cidades diante das perdas.

Do Recife, o ator Edjalma Freitas foi instigado pelo texto e articulou uma equipe para criar um espetáculo virtual em 2021. Poema (um título muito genérico, que não traduz o espírito da coisa) foi erguido de forma virtual nos piores momentos da incerteza provocada pela crise sanitária e agravada no Brasil por um governo genocida.

A dramaturgia da peça está calcada nos poemas Brasilândia, Zona Norte; Calvário e O Eco de Bérgamo. As palavras ganharam uma força diferente no palco (antes na telinha da virtualidade), que tem a ver com compartilhamentos. Muitos olhos dividindo as inquietações do instante. Assisti ao espetáculo em duas oportunidades on-line, em 2021, e em duas sessões em 2022, no Itaú Cultural.

A pulsação do medo, dos fantasmas, do isolamento e do desejo quase desesperado de viver são sustentados pela luz de Luciana Raposo e pelas sonoridades produzidas por Tarcisio Resende e Pedro Huff, que trabalham os climas da interpretação. Há densidades, mas elas vão se distanciando no retrovisor da memória do vivido.

O vírus acentuou a fragilidade da vida humana. Edjalma Freitas busca transpassar essa vulnerabilidade na toada das palavras de Martinelli. O corpo impregnado da cal desses tempos investe na carga dessas tragédias. Algumas vezes o peso se restringe às palavras, quando parece que o corpo ainda procura o devir das cicatrizes que combinem com a gravidade dos episódios expostos.

Sozinho no palco, o ator narra as desgraças, a partir da convulsão de três cidades, uma do Brasil, outra do Equador e a terceira da Itália. Nas partituras corporais possíveis para traduzir o horror, Edjalma avança por Brasilândia, contaminada por outras pragas: do açoite da herança escravocrata às marcas da exploração bandeirante nos degraus da desigualdade.

As visões indignadas do diretor teatral Quiercles Santana estão na cena, com o registro da obstinação em fazer arte, mesmo em condições precárias ou adversas. E disso tira fios para construção de linguagens. A diretora de cinema Tuca Siqueira também participou da criação do experimento na versão on-line, nos idos de março de 2021. 

O texto é de Antonio Martinelli e a direção de Quiercles Santana 

O ato Calvário conta o que aconteceu na portuária Guayaquil, no Equador. “A cidade que abandonou seus doentes em cima das macas, seus mortos, em cima das mesas. [carnes para urubus nas praças públicas]”, nos versos de Martinelli.

A escuta do colapso em Guayaquil é contundente. As imagens desconcertantes suscitadas pelo texto se expandem para Manaus e outros territórios onde houve falta de ar. As feridas expostas pelos sons das palavras escancaram a miserabilidade humana.

“Toda hora é de luto em Guayaquil”, marca uma batida no tempo quase musical. Com pequenas nuances de leituras, se avulta o imponderável diante da morte. Mas não há imprevisibilidade que ampare a incompetência e a maldade na incumbência de gerir situações de calamidade púbica. 

O cenário de Guayaquil desse momento lá, – no auge da pandemia, com suas assombrações e tempos suspensos – remete para muitos Brasis. De muitas vítimas como os Yanomamis, alvos do desprezo dos vermes inescrupulosas que ocuparam o poder e anularam vidas na escolha do uso das verbas públicas. Fome e peste como dados da necropolítica.

Peça tem três pequenos atos. Foto Rogério Alves / Divulgação

No poema O Eco de Bérgamo, Martinelli expõe sua intimidade com as artes visuais, avançando  por muitos séculos da arte ocidental, mas dificulta para o leitor não tão próximo da linguagem. O autor cita pinturas famosas como O Nascimento de Vênus, de Botticelli; A Última Ceia, de Leonardo da Vinci e A Balsa da Medusa, de Théodore Géricault, para falar dos efeitos da pandemia na cidade italiana.

O eixo escolhido pelo escritor para o roteiro em Bérgamo é a série Espacios Occultos, do espanhol José Manuel Ballester. O pintor e fótógrafo madrilenho apagou as figuras humanas das obras. Ou como disse o crítico de arte e professor espanhol Francisco Calvo Serraller, despojou as obras dos seus personagens e de “todas as suas ações miseráveis ou desesperadas”, mantendo as paisagens do fundo da tela.

O ato de Bérgamo é mais espinhoso para levar ao palco. São muitas obras apontadas, de Cristo Crucificado, de Velázquez, passando por Os Fuzilamentos de 3 de maio de 1808, de Goya, a Guernica, de Pablo Picasso, além das já mencionadas nessa crítica. O embaralhamento das narrativas e definição das estratégias dramáticas ainda se mostram um desafio para a equipe.

A peça faz um registro da pandemia, numa percepção de dentro do tempo histórico e se se posiciona contra a política pública criminosa do governo nazifascista e de seus iguais pelo mundo. Na cena, o mais frágil gesto à expressão mais virulenta transbordam de ação política. Os aliados da peste têm as mãos sujas de sangue nas mortes. Poema reforça o coro: “Sem anistia”.

FICHA TÉCNICA
Texto: Tetralogia da Peste [ + dois tempos, uma cidade]
Autor: Antonio Martinelli
Direção: Quiercles Santana e Tuca Siqueira (on-line)
Elenco: Edjalma Freitas
Cenografia e figurino: Luciano Pontes
Iluminação: Luciana Raposo
Trilha sonora: Henrique Huff e Tarcísio Resende
Provocação corpo/voz: Henrique Ponzi
Vídeo (computação gráfica): Pingo
Designer gráfico: Hana Luzia
Fotografia: Rogério Alves
Produção: Cia do Ator Nu
Duração: 50 min
Indicação etária: 16 anos

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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Os paraquedas coloridos do Gambiarra
Crítica dos espetáculos O Último Encontro do Poeta com a sua Alma e Avós

 

Avos, um solo com Olga Ferrario, do  Cineteatro Gambiarra. Foto: Dea Ferraz / Divulgação

Olga Ferrario e Cláudio Ferrario e em A invenção da palavra. Foto: Divulgação

Em meio à pandemia e ao descaso do antigo governo federal com a cultura, quatro artistas confinados num sítio em Gravatá, no interior de Pernambuco, acionaram – em julho de 2020 – , os paraquedas coloridos (imagem-proposta de grande força vital de Ailton Krenak). Essa visão diz muito das nervuras desses últimos anos no Brasil e da postura dessa trupe – o ator Cláudio Ferrario, a atriz Olga Ferrario, o músico Hugo Coutinho e a cineasta Dea Ferraz – que criaram o Cineteatro Gambiarra. O projeto marca neste janeiro sua despedida do formado unicamente virtual com a exibição ao vivo pelo YouTube dos espetáculos A Reinvenção da Palavra, Avós, O Último Encontro do Poeta com a sua Alma e Martelada.

O título escolhido para o coletivo traduz alguns dos procedimentos do grupo e experimentos propostos. Gambiarra é um ato de improvisar, de encontrar soluções materiais para resolver (ou remediar) uma questão. É também um mecanismo de subversão, com criatividade, dentro do sistema capitalista.

Existe uma intimidade entre essas pessoas, de afeto e amor, pois se trata de um coletivo artístico-familiar. Olga é companheira de Hugo e filha de Cláudio, que é companheiro de Dea. E para animar essa festa ainda tem o menino Davi, que enfrentou a pandemia, e o pequeno Tom, que chegou há pouco, rebentos de Olga e Hugo.

A trupe investiu dois anos e meio nesse formato híbrido, entre imbricações de teatro, cinema e tecnologia, com a produção de seis montagens, que renderam cerca de 30 sessões e mais de 4 mil espectadores pagantes. É evidente que nas primeiras exibições os afetos eram mais inflamados, existia uma sofreguidão por parte do público, o que podia ser conferido nos debates calorosos após as peças.

Avós.

O palco do Gambiarra ganha dimensões diferentes a cada peça. Além da disposição das cenas, a câmera faz os pequenos milagres do cinema com teatro. Em Avós, o espaço passeia espiralado no tempo. O voal, o caminho de pedras e as luzes amarelas contribuem com o clima de mergulhos ancestrais, no solo de atriz Olga Ferrario. É o primeiro texto de Olga, com contribuição da atriz Lívia Falcão (sua mãe), de Dea Ferraz e da jornalista e poeta Sílvia Góes. 

A câmera da cineasta Dea Ferraz se multiplica em dramaturgias. Com seus planos-sequências, closes, enquadramentos e zooms, ela sinaliza possibilidades, registra imagens e insinua composições, com o sangue correndo acelerado nas veias do ao vivo, da respiração ligeira, do risco. A ação de Dea sintetiza as tramas desse teatro de quatro artistas para administrar tantos desafios.

Nos relatos das avós, as palavras se alojam em lugares diferentes do corpo e se inquietam e mudam de lugar e viram lampejos. Os depoimentos dessas avós.– materna e paterna – foram colhidos em momentos distintos. A atriz faz um mergulho do que ela chama dentro. A intérprete assume qualquer coisa de uma ou de outra. Repete frases soltas, assume no corpo ancestralidade.

“Isto não é uma história”, avisa Olga. As falas são entrecortadas, confundem os fios do percurso. Existe uma evidente escolha pela leveza, sem perscrutar grandes depressões ou agonias. A vida segue um fluxo de lutas, de pequenas alegrias, As avós foram boas parideiras, Olga também teve seus filhos Davi e Tom de forma rápida e natural. Isso é pontuado na peça entre idas e vindas.

Os olhos da atriz ficam maiores para fazer confidências. As conversas gravadas com as duas mulheres se cruzam no presente futuro para tratar do passado das suas lidas. Hugo Coutinho cuida do ambiente sonoro, da trilha, da iluminação, acrescentando outras camadas a essa viagem ancestral.

Fertilidade, feminino, fluxos, água, essas ideias e imagens se sucedem e propõem ao espectador que acrescente suas próprias memórias e desejos enquanto o espetáculo anda. E dá uma vontade de correr para o colo da avó, ou sentir saudade. 

O último encontro do poeta coms sua alma

O Último Encontro do Poeta com a sua Alma integra a Trilogia das Dualidades do ator e dramaturgo Cláudio Ferrario. As duas personagens entabulam um diálogo que vai do raso ao profundo. E embora não se sustente em profundidades filosóficas, se alarga na tensão dos questionamentos sobre a morte, a criação artística e as escolhas.

Nessa peça, Ferrario parte da premissa de que existe uma Alma como ser independente da pessoa em si. No caso do Poeta, elas convivem em íntima ligação, mas não se misturam, têm posições próprias e algumas divergências.

O Poeta fica sabendo que lhe restam poucas horas de existência na Terra. A Alma, interpretada por Olga Ferrario, propõe que nesse tempo eles façam juntos uma espécie de inventário, avaliando a trajetória.

A dramaturgia textual se aproxima dos autos vicentinos, no eixo da sátira e da lírica. E por uma perspectiva moral. Mas também carrega uma agitação interna dos teatros de rua, apresentados em feiras populares.

Os diálogos utilizam expressões populares como “… a porca torce o rabo”, “… alma sai pela boca” como mecanismo de adesão do público (esses ditos populares nem sempre funcionam, ou pelo menos, não provocam o efeito esperado em todos os momentos) . O Poeta e sua Alma passeiam de um tema de conversa a outro: tempo, vaidades de artista, significados de sucesso, honestidade artística, inferno, vender a alma ao diabo. Às vezes intensa, outras enfadonha, é a narrativa desse percurso.

A peça fecha com uma moral edificante da poesia, do teatro e do futuro.

Martelada, com Cláudio Ferrario. Foto Ricardo Lima / Divulgação

Quem inventou a palavra: Deus ou Capeta? É a pergunta que gera A Reinvenção da Palavra, a primeira montagem do Cineteatro Gambiarra,  uma adaptação da peça de teatro A Invenção da Palavra, de 2015, que teve encenação de Moncho Rodriguez.

Martelada encena as narrativas fantásticas de Martelo, o Mateus de Cavalo-Marinho mais antigo em atuação em Pernambuco Ele aponta que foi três vezes ao inferno e voltou para contar as histórias.

Essa temporada gratuita foi patrocinada pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura PE). Neste 31 de janeiro é exibido o último experimento, Martelada, pelo YouTube do Cineteatro Gambiarra: https://www.youtube.com/@cineteatrogambiarra

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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Vozes do mangue
Crítica de Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré,
do Grupo São Gens de Teatro, do Recife

Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré fez curtas temporadas em São Paulo e outros estados e participou de festivais. Foto Vinícius Elizário

Grupo São Gens de Teatro, do Recife. Foto Vinícius Elizário / Divulgação

Marginalidade e marginal, esses conceitos difusos, correm pelas bordas na peça Narrativas Encontradas Numa Garrafa Pet na Beira da Maré. Concebido nas entranhas de um rio do Recife, o espetáculo entende-se com a lama e dela tira sua sustância. Quando chama para si essa ideia de margem, o grupo São Gens posiciona o perfil sociológico dos integrantes: de quem mora ou viveu na periferia, que nunca teve as mesmas oportunidades dos privilegiados de classe, que sofreu na carne os preconceitos dos que estão na mira da polícia.

Essa experiência é transformada em poética, em atuação cultural viva e pulsante com as marcas desse tempo. Os vínculos estabelecidos entre criação teatral e realidade social são fortes e estão entranhados nos corpos dos atores. De muitas formas eles falam de si.

Ao assistir à peça lembro das concepções do médico e geógrafo, cientista social, político e ativista de combate à fome Josué de Castro (1908 – 1973) – convocado por Chico Science e trupe para dar sustentação ao Manguebeat – que apontava que o Recife é filho dos mangues. Na cidade aterrada, essa origem é muitas vezes abafada, disfarçada, apagada. Autor de uma extensa obra – entre Geopolítica da fome, Fatores de localização da cidade do Recife e Homens e caranguejos – Castro tirou o mangue do mangue, valorizando a paisagem com seu olhar científico e estético e dissecou esse lugar dos “excluídos sociais”. 

Na sua ambição de ser um cidadão integral, o geógrafo Milton Santos (1926 – 2001) escrutinou a existência de uma cidadania brasileira. E analisou a distribuição das pessoas desigualmente nos espaços a partir de atividades econômicas e da herança social; o que determina o acesso (ou não) aos bens e serviços oferecidos pela rede urbana e sistema das cidades.

As interpretações de mundo de Castro e Santos fertilizam essa dramaturgia, erguida a partir da vivência do dramaturgo Anderson Leite (também ator e diretor do espetáculo) na comunidade ribeirinha do Pina, no Recife. Quando a pandemia da Covid-19 fechou tudo, milhares de artistas foram atingidos de imediato, pois foram os primeiros a ficar sem remuneração. Anderson foi um deles. E, naquele momento, sem nenhuma ajuda oficial do Estado, ele voltou a trabalhar com a pesca artesanal de marisco e sururu, atividade da família.

É nesse estágio da grande ferida da pandemia que nasce o texto e as imagens de encenação. Na medula do assombro daquele presente palpita o fato de que, para muitos trabalhadores precarizados, ficar em casa nunca foi uma opção. O trançado do risco real de ir às ruas para não morrer de fome dessas figuras recua ao passado de histórias brasileiras. E entra como fala na peça, de algo que aconteceu e que não finda. “Mais uma vez tive que me arriscar. E esse vírus me tirou o paladar. Fazer o quê, tive que trabalhar. Pois, mesmo sem sentir gosto a família tem que se alimentar”.

No elenco estão Anderson Leite, André Lourenço, Cristiano Primo, Fagner Fênix, HBlynda Morais e Monique Sampaio. Foto: Gabriel Melo / Divulgação

Quando a peça começa, os atores estão amontoados numa escada que vira barco e outras coisas. Ao fundo, um painel estampa o barraco, a favela. No chão, conchas indicam rotas, produzem som, reposicionam a memória.  Há resquícios de cheiros de mangue, de maré. É forte, é ancestral.

A iluminação cuida de acelerar a cena, mas em outros momentos retarda. Trabalha feito editor de imagens. Corta, assinala, destaca, faz fantasmagoria, inverte, cria clima, faz drama, faz técnica, manipula nosso olhar.  

A dramaturgia se move em oito partes, entre solos e ações coletivas. Abscessos da sociedade são rasgadas nas temáticas que se entrelaçam entre vida e morte, as vidas que importam e os procedimentos de violência para aniquilar o outro. As classes populares que povoam a cena, elas mesmas nas suas misérias reproduzem sistematicamente o machismo e todo o tipo de preconceito contra o próximo – racismo, misoginia, lgbtqifobia, aporofobia, etarismo, etc. alimentando as chagas e não reconhecimento da opressão.

É interessante perceber que nem o dramaturgo nem o grupo optam por pegar leve com sua classe, com as figuras do seu entorno. Eles escancaram no palco as ambiguidades; alguns hábitos de convivência naquela favela inspirada no real, que pode coincidir com muitas outras práticas de pobres e estigmatizados pelo Brasil.

Sim, os pobres podem introjetar os valores que os oprimem. “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor” a frase do educador, filósofo, advogado, professor, pesquisador, pedagogo, pensador, escritor Paulo Freire (1921-1997) é conhecida. Ai, Freire! Como é urgente aprender a fazer leituras de mundos, construindo e acolhendo sujeitos com consciência da realidade.

A cidadania se aprende, a liberdade é uma conquista.

Ao expor o processo de dominação reproduzido naquela quebrada recifense, o espetáculo sacode com fúria a lógica que mantém essa estrutura. 

O título da peça aponta quase para um pedido de socorro. Mesmo que lembre procedimentos de lançar mapas de tesouros ou de desejos de falar ao futuro produzidos em romances juvenis, essa garrafa pet se despe de possíveis pompas na formulação imaginária. O material está mais próximo do descartável, mesmo que seja reciclável. E esse fluxo insiste feito uma ladainha.

A força dessas Narrativas se expande no trabalho coletivo. Há uma energia coral. Mesmo assim é possível destacar momentos individuais vigorosos. Um gesto, um jeito de corpo, uma fala, uma agonia, um desespero. Algumas pequenas fragilidades de atuação no trabalho também existem. A dicção de parte do elenco e qualquer traço de melodrama em cenas pontuais são duas delas.

Alfinetar a classe média branca que come ostras em frente ao Acaiaca (prédio à beira-mar em Boa Viagem, no Recife), os versos do poeta performático Miró da Muribeca (1960-2022), pneus, escada, rede de pescar, essas coisas conversam e os próprios atores manipulam os elementos cênicos. Eles citam a bandeira-poema de Hélio Oiticica, Seja Marginal Seja Herói (1968). Entre baculejos e sussurros, eles vão soltando suas verdades inquietantes.

“Qual o problema de eu subir?”, pergunta um deles que tenta subir a escada e é puxado pelos cabelos, pelos braços e pernas, pela camisa. Existe a “lenda do caranguejo” no Recife, que conta que toda vez que um caranguejo tenta subir (na vida) é derrubado por outros. No espetáculo, a sonoridade das conchas marca as puxadelas.  

Monique  Sampaio numa cena da marisqueira que perdeu o filho de cinco anos baleado pela polícia. Foto: Gabriel Melo / Divulgação

Uma cena terrivelmente tocante chama-se Separando O Sururu da Bucha, quando Monique Sampaio assume o papel de uma marisqueira traumatizada, que flutua entre sanidade e loucura, com a morte do filho de cinco anos, baleado pela polícia enquanto brincava com um graveto. Num estado de oscilante,  a personagem comove com suas falas: “Os ‘homi’ num só protege, não, os ‘homi’ mata, barata… matou meu Dinho. Meu pretinho se foi com dois tiros na cabeça… Os ‘homi’ mata!”.

A filósofa Judith Butler já levantou questões biopolíticas com as perguntas: as vidas de quem importam? As vidas de quem não importam como vidas, não são reconhecidas como vivas, ou contam apenas ambiguamente como vivas? Para dizer que “não podemos dar por certo que todos os seres humanos vivos têm o status de um sujeito que é digno de direitos e proteções, com liberdade e um sentimento de pertença política; ao contrário, esse estatuto deve ser assegurado por meios políticos, e quando negado, a privação deve ser manifestada”. 

As experiências e elaborações compartilhadas também falam do vínculo de entre criação teatral e realidade social.  Em algum momento, alguém ressalta a dificuldade de fazer teatro com fome, não ter dinheiro para a passagem, ou a falta de acolhida por parte de outros grupos estabelecidos. Mas a opção é seguir fazendo arte para espelhar na cena “um bocado de nós, nossa gambiarra”.

Mas o grupo também celebra a resistência e existência de seus pares negros que com arte e cultura fazem suas microrrevoluções.  São personalidades do teatro, mas também da literatura, da militância, figuras de projeção nacional e pernambucanas e pernambucanos contemporâneos. Diante de um cotidiano implacável, o São Gens rega as ideias de coletivo para fortalecer a luta.

Ficha técnica
Espetáculo Narrativas encontradas numa garrafa pet na beira da maré
Dramaturgia e encenação: Anderson Leite  
Elenco: Anderson Leite, André Lourenço, Cristiano Primo, Fagner Fênix, HBlynda Morais e Monique Sampaio.
Direção musical: Arnaldo do Monte 
Figurino: André Lourenço  
Cenário e iluminação: Anderson Leite 
Operação de luz: Cristiano Primo e Grupo 
Adereços: Anderson Leite  e André Lourenço
Produtora Cultural: HBlynda Morais
Realização:  Grupo São Gens de Teatro

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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