“Depois de um ato tão violento
não se entende o que é o amor”
Entrevista || Carolina Bianchi

Carolina Bianchi em cena de A Noiva e o Boa Noite Cinderela – Capítulo 1 da Trilogia Cadela Força. Foto: Christophe Raynaud de Lage / Divulgação

Carolina Bianchi. Christophe Raynaud de Lage / Divulgação

A norte-americana Emilie Dickinson (1830-1886) intrigou e chocou seus contemporâneos com sua poesia “explosiva e espasmódica”. Dickinson é uma das grandes inspirações de arte para a encenadora, atriz, dramaturga e performer Carolina Bianchi. A diretora do coletivo Cara de Cavalo, de São Paulo, com quem criou as peças O Tremor Magnífico (2020), Lobo (2018), Quiero hacer el amor (Quero fazer amor) (2017) e Mata-me de Prazer (2016) recebe os versos de Dickinson como uma “tentativa de elaborar coisas impossíveis, uma dor constante, uma negociação entre a dor e a beleza, que me toca muito”.

Nessa tentativa de elaborar coisas impossíveis, Bianchi encara de frente o monstro, o fantasma, a questão da violência sexual no espetáculo A Noiva e o Boa Noite Cinderela – Capítulo 1 da Trilogia Cadela Força, que estreou no Festival de Avignon, com uma repercussão incrível. O grupo ataca de frente as questões de violência sexual, estupro, feminicídio. E leva à cena de maneira potente a perda de consciência, o apagar da memória, um território borrado, num espetáculo muito rico em camadas.  

Bianchi e o coletivo Cara de Cavalo põem um pé no inferno nessa peça que já no título projeta os dois núcleos da dramaturgia do trabalho. A Noiva é a parte da palestra no espetáculo, em que a atriz compartilha seus estudos sobre o caso de uma artista italiana, Pippa Bacca, que foi estuprada e assassinada durante uma performance, em que estava vestida de noiva.

A outra parte do título, Boa noite Cinderela, é o nome que se usa no Brasil para uma combinação de sedativos colocados nas bebidas das pessoas nas festas; no caso das mulheres, geralmente com o intuito do estupro enquanto estão desacordadas.

Ao tentar elaborar essa violência, o espetáculo busca amparos poéticos em artistas como Dante Alighieri ou o escritor chileno Roberto Bolaño, a partir do seu livro 2666. “O objetivo da peça não é encontrar sentido para essa violência, porque isso é impossível. Mas acredito que o teatro é um campo onde essa repetição pode ser possível através da criação de uma linguagem. Não apenas o depoimento sobre a violência, mas a criação de uma maneira de tocar nesses assuntos, inventar, imaginar”.

Carolina Bianchi. Foto Ivana Moura

Entrevista || Carolina Bianchi

Como você conseguiu furar a bolha e chegar à programação principal do festival de Avignon?

O que acontece é que o Tiago (Rodrigues, diretor do festival a partir desta edição) e Magda (Bizarro) me conhecem há muitos anos. Eles viram meus trabalhos: Lobo (2018) e O Tremor Magnífico (2020). Eu estava fazendo uma residência dentro do Festival Proximamente (no KVS, em Bruxelas) e quando eu abro ao público a primeira parte do trabalho – estava pesquisando essa parte da conferência –, nessa noite, a Magda (que é parceira do Tiago Rodrigues e está trabalhando na curadoria do festival) assiste ao trabalho e essa conversa começa. Isso tem quase dois anos.

Depois, o Tiago assistiu à finalização do meu mestrado na DAS Théâtre, ainda como processo aberto, e essa conversa continua. Então não é uma estratégia. E eu acho isso muito importante de deixar claro. Porque não é um trabalho para que isso aconteça… Foi realmente o trabalho, a pesquisa, uma pesquisa continuada de uma artista que está no corre há muitos anos. Por isso esse espaço se abre, se apresenta como possível.

É uma possibilidade de o trabalho chegar noutros campos.

Sim. Vamos nomear as coisas, vamos nomear estupro, vamos nomear essa violência. E ao nomear isso eu sinto que consigo, quiçá, criar um trabalho que abre um escopo de comunicação muito mais amplo.

Como artista brasileira que não está morando no Brasil, a estreia aqui permite horizontes amplos. Não lembro o último trabalho brasileiro que esteve em Avignon na programação oficial.

Só Christiane Jatahy, que já está em Paris há muitos anos e é associada de vários teatros na França.

Nesse ponto é um gesto muito importante. Nós somos um grupo de teatro independente da  cena de São Paulo, um grupo que não teve apoio institucional em São Paulo em nenhum dos meus últimos trabalhos. Lobo foi feito com crowdfunding (financiamento participativo), Tremor Magnífico foi feito sem nenhum apoio. Estávamos trabalhando num sistema superprecário. O que acontecia é que a gente conseguia juntar um grupo interessado e, no caso de Lobo, isso dava alguma visibilidade. Eu sempre fui uma pessoa comprometida em compartilhar os meus processos através de workshops, a gente fazia girar uma cena de workshops. Eram trabalhos que tinham sempre muita gente ao redor, que estavam sendo feitos continuamente, mas não estavam  sendo sustentados financeiramente. Então é um grupo de teatro independente que vem para um programa da cena principal de Avignon. E acho que isso é alguma coisa.

Lembro que, quando soltaram a programação, recebi muitas mensagens de amigas minhas do Brasil, diretoras, inclusive muitas que foram minhas alunas, dizendo: “Uau! Agora a gente pode sonhar que isso é possível!”. E eu me reconheço nisso, porque não achava que era possível. Uma diretora como eu, que vem de uma família de classe baixa, que tem um monte de gente que está no mesmo corre. A gente só tinha 247 empregos para conseguir fazer o que a gente precisa fazer! Estou falando isso, mas não é para dizer “Vejam como a gente fez um caminho árduo”. Não, não é essa a narrativa, não tem a narrativa heroica. Eu já dizia isso no Brasil. As pessoas falavam: “Mas vocês conseguem se virar, fizeram Lobo com crowdfunding…” e eu respondia: “Vão se fuder! Não exaltem isso. Eu não estou exaltando essa precariedade”. Mas, pra mim, a coisa mais importante é que outras diretoras entendam que espaços como esse são possíveis.

Nessa mudança na direção do festival, Tiago Rodrigues defendia, entre outras coisas, a paridade, e conseguiu por em prática nesta edição. Há uma maioria de mulheres que dirigem espetáculos na programação.

Totalmente. Acho que somado a tudo, há uma mudança na direção para um artista incrível, que é o Tiago Rodrigues, uma pessoa muito sensível, que tem uma relação profunda com o Brasil, com a América Latina. Então muda essa estrutura de ter na programação só espetáculos que são inalcançáveis. Nesse contexto, que acho que tem a ver com questões de classe, mas isso é outro assunto, acho importante que a gente comece a poder estar nesses espaços

Você acha que essa participação em Avignon já deu uma nova direção, um outro rumo para seu trabalho. Já está repercutindo?

Sim, no sentido de que a gente já tem turnês, já tem espaços que estão interessados no projeto. E sobretudo poder trabalhar com dignidade com o meu coletivo. Conhecer, eu diria, como é possível fazer um teatro assim.

O que é fazer um teatro com dignidade? Você está falando economicamente ?

Não só economicamente… quase que psiquicamente. Você começa a ver que o trabalho está gerando retornos. Você vai vendo palpavelmente o que pode acontecer. Isso para mim é inédito.

Saíram críticas bacanas no Le Monde e em muitos jornais e revistas importantes de vários países da Europa.

Isso é inédito. A gente falava isso, no Brasil, não saía nada. A gente ia fazer site e não tinha fortuna crítica. Claro, já sinto que há uma grande mudança. Pra mim, uma das coisas mais lindas era abrir a Folha e ver lá uma crítica da Janaína Leite, minha amiga, e a gente dizia “Alguma coisa está acontecendo”, porque há algum tempo a gente não tinha nem espaço; eram as pessoas de sempre ali, os espaços centrados nos mesmos diretores, então vamos furando esse lugar que, pra mim, é muito importante.

“Como se esse corpo estivesse
sempre tentando se aproximar
tentando desvendar
um enigma impossível.
Então isso é a linguagem”.

Gostaria que você falasse mais sobre linguagem e o desenvolvimento da sua pesquisa sobre feminicídio, feminino e tal. Porque a questão não é o tema, não é assunto, mas a linguagem. O que é a sua linguagem, como você desenvolve essa linguagem e isso entra para mexer com o teatro brasileiro e agora para além?

Esse é um dos meus temas preferidos. Sinto que sou muito obcecada por essa criação. A gente falou na Jana leite e lembro de quando ela foi participar de um debate sobre Lobo – depois de uma apresentação que eu a tinha convidado para ser provocadora dessa conversa – e ela disse que quando ela assistia aos nossos trabalhos, ela sentia que um mundo muito particular era criado. E eu uso essas palavras dela agora para refletir sobre esse mundo particular, como isso opera. O meu desejo de que através do teatro seja possível manifestar algum tipo de invenção, de como esse imaginário se manifesta.

Eu sinto que isso começa a partir da escrita. Estou falando isso porque a minha dramaturgia, a minha escrita, tem uma particularidade de imagens, de como essas imagens vão acontecendo, dessas associações. Acho que esse já seria o primeiro passo. Quando estou compartilhando informações, eu não só compartilho informações, mas tem alguma coisa ali que vai parar dentro de outra coisa, na maneira como escrevo. Por isso o espetáculo tem que ser em português. A gente está rodando com um espetáculo de duas horas e meia, com texto do começo ao fim, onde as pessoas vão ter que ler, e é isso, o espetáculo é em português. Tem uma coisa dessa poética, que vem. Esse é o exercício de linguagem número 1, a escrita. 

E, a partir dessa escrita, como a gente manifesta na cena, junto com a minha companhia Cara de Cavalo, como nós manifestamos na cena – através de práticas que a gente vem desenvolvendo – como a gente se aproxima, como a gente dá corpo, como a gente manifesta essas ideias. É como você falou, não é o assunto, o assunto a gente já sabe, não é isso. A peça para mim é sobre isso, sobre linguagem. Tem essa pergunta: “É possível criar algo que seja tão violento quanto o ato em si?”. A peça é uma tentativa. Como se esse corpo estivesse sempre tentando se aproximar, tentando desvendar um enigma impossível. Sinto que isso é a linguagem.

Poder ter essa cena, onde existe o musical dentro do carro, que está misturada a outras coisas, com esse rasgo do real que é a performance, com esse acúmulo infinito de camadas, isso está conectado com essa criação de uma linguagem.

E você surpreende quem pensa que a peça fica na parte da palestra. Depois vem uma produção complexa, do carro, todas aquelas coisas, a movimentação. Da palestra para a coisa mais representacional e por que você fez essas escolhas?

Eu acho que tem a ver com esse fio dramatúrgico: a palestra era para compartilhar as informações sobre a vida e as histórias dessas artistas. E eu não poderia fazer isso de outra forma. Essas informações precisavam ser compartilhadas. Então, a performance vem como gesto de aproximação dessas histórias de violência. Estou falando de uma performer que foi assassinada (Pippa Bacca); como falar, como me aproximar dessa história? Então também coloco meu corpo em vulnerabilidade para conseguir chegar a essas histórias. Acho que, por outro lado, na segunda parte, o teatro vem reclamar o seu espaço completo; porque depois que você toma o “boa noite cinderela”, para onde nós vamos? A gente vai para o teatro. A gente precisa ir para essa representação alucinante.  Acho que essa era a única maneira que tinha de seguir elaborando. O teatro precisa vir com essa possibilidade de elucubrar, como espaço de sustentação, o teatro precisa sustentar a sequência desse acontecimento. Eu preciso do teatro para tornar possível essa aproximação.

“Esse trabalho tem
que ser árduo num pacto
com o espectador. Nós não
podemos falar de violência
e sair daqui numa
nice”.

 

Você falou que o teatro não é um lugar seguro. E na peça você fala que há um outro tetro que não se arrisca. Gostaria que você desenvolvesse essa ideia do teatro ser um lugar inseguro e dos riscos que você resolve, escolhe e vai por esse caminho. E outra coisa é que você está desbravando, está inventando a cada passo.

Para mim é muito importante dizer – e essa pergunta está dentro do texto da peça, quando falo com o quê o teatro tem que se parecer.  Eu não acho que os teatros tenham que ser iguais, são muitos teatros. E acho que essa é a grande beleza da existência do teatro. Eu sou uma pessoa que ama o teatro. Mas o teatro que estamos fazendo nesse coletivo, nós sim acreditamos que o teatro é o espaço da instabilidade. Se a gente está falando de violência sexual – e acho que estamos sempre falando em nossos trabalhos de alguma maneira disso – o teatro precisa ser um espaço da instabilidade, ele precisa colocar em jogo um trabalho árduo. Encarar isso é um trabalho árduo e esse trabalho não pode ser árduo só para mim, ele tem que ser árduo num pacto com o espectador. Vamos juntos nessa jornada olhar para isso. Nós não podemos falar de violência e sair daqui numa nice.  

Acho que por isso o “Fuck Catharsis”. A gente sabe que esse tipo de experiência não tem cura. Eu sei que esse tipo de experiência não tem cura. Você não vai superar, mas você vai entender, vai ficar olhando para ela e entender: “Ok, como eu faço, quais as minhas ferramentas para entender, como fui lidando com elas ao longo dos anos?”. E, nesse sentido, o teatro, não é que ele precise de riscos, colocar coisas em risco, mas o teatro é um espaço que não é seguro no sentido de que ele precisa atravessar você de alguma maneira, algo precisa se mover, algo precisa acontecer.

Eu não acredito que o teatro vai mudar o mundo, que porque estreei essa peça, 10 mil feminicídios vão acontecer a menos. Isso é uma bobagem, não acredito nisso. Mas acredito que algum movimento pode ser feito, se esses espectadores que estão assistindo à peça saírem um pouco perturbados, isso no próprio corpo, algo aconteceu. Esse algo a gente precisa deixar no mundo, para ver o que acontece depois.

Fuck Catharsis é um conceito?

Sim, mas não um conceito, digamos, teórico. Ele é um conceito da experiência. Num momento em que você vive uma violência sexual,  porque eu sinto assim que tem muito esse papo, eu vejo outras peças que abordam o mesmo tema que adotam muito esse slogan “a vida depois disso, a cura, a superação”. Não tem superação! Fudeu! E aí o grande trabalho da sua vida é dizer “e agora ?”. Aí tem que buscar ferramentas para lidar com a violência. Não é dizer “assim, gente, estou curada do estupro que sofri, tô de boas, a peça me ajudou”. Porque tem muita essa ideia na peça autobiográfica de quando você vai lá e expõe seu problema com o público e o público te aplaude, chora, se pensa, aí Catharsis, pronto, ficou para trás. Não ficou para trás! Todos os dias você vai carregar consigo os efeitos disso. O que começa a acontecer é que você vai encontrando formas de lidar, de articular isso.

Na peça você fala que não existe amor, só ternura. Como é isso?

A sobrevivência à uma violência sexual implica em algo que confunde completamente a linha do tempo. E por isso, claro, é precisa inventar uma maneira de se relacionar com o desejo, com o amor, com as relações pessoais. Nesse sentido, esse amor que não existe na peça é a constatação de que depois de um ato tão violento não se entende o que é o amor. Mas há a ternura, e aí tem outro ponto chave do trabalho que é entender qual o papel da amizade. O espetáculo termina com uma carta a uma amiga. Qual o papel da amizade? Como a amizade pode sustentar, a amizade entre as mulheres sobretudo, essa continuidade, esse seguir vivendo? Por isso o Fuck Catharsis, porque não é cura. A  gente tem que entender o que fazer, articular e descobrir como seguir.

Qual o poder do teatro?

Eu diria que uma das coisas mais importantes do teatro é o seu processo coletivo, a coletivização das coisas, a coletivização das questões, a experiência coletiva. Desde o grupo até o encontro com o público, a experiência de coletivizar algo. Ainda mais no caso de A Noiva e o Boa noite Cinderela, que traz experiências que deveriam ser abafadas, pertencer ao lugar privado; o que significa colocar essas experiências lá, por isso é que é confuso, por isso são essas camadas que quase dão a sensação de que a gente não suporta mais, porque essas histórias vêm como uma avalanche, ela só pode vir assim como uma grande tempestade de merda. Porque não tem como, a gente precisa falar. E aí tem esse grande trabalho aí que é a escuta. Como é que a gente escuta essas histórias, como é que a gente conta?  

Leia a crítica do espetáculo A Noiva e o Boa Noite Cinderela – Capítulo 1 da Trilogia Cadela Força, de Carolina Bianchi e do coletivo Cara de Cavalo.

 

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Viagem ao abismo
Crítica da peça A Noiva e o Boa Noite Cinderela,
Festival d’Avignon

Carolina Bianchi encara performances de alto risco. Foto: Christophe Raynaud de Lage / Divulgação

Carolina confrontando Pippa Bacca (em vídeo), italiana assassinada durante uma performance, e sua ingênua ideia de bondade. Foto: Christophe Raynaud de Lage / Divulgação

A Noiva e o Boa Noite Cinderela, Capítulo 1 da Trilogia Cadela Força, é possivelmente o espetáculo mais ousado, espantoso, arriscado, no limite do (in)suportável, dessa temporada do Festival de Avignon. Nomes importantes da cena contemporânea mundial movimentam a programação, entre eles Julie Deliquet, Tim Crouch, Philippe Quesne, Chiara Bersani e Marco D’Agostin, Stefan Kaegi, Émilie Rousset, Julien Gosselin, Pauline Bayle, Susanne Kennedy, Milo Rau, Trajal Harrell, Gwenaël Morin, inclusive Tiago Rodrigues, para citar algumas das encenações que vi. Mas nada como a peça sem concessões de Carolina Bianchi & do coletivo Cara de Cavalo, que leva o público ao limite.

Carolina Bianchi apareceu nesse cenário como um tsunami a refletir sobre um dos crimes mais hediondos, o estupro, muitas vezes seguido do feminicídio. O espetáculo da encenadora, dramaturga e atriz brasileira, que atualmente mora em Amsterdã, estreou na programação principal de Avignon, com sessões de 6 a 10 de julho. Com esse trabalho, a artista e o coletivo expandem vertiginosamente os limites da sua arte e do seu teatro.

Blackyva em A noiva e o Boa Noite Cinderela. Foto: Christophe Raynaud de Lage / Divulgação

Ob skene. Os dados da 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no dia 20 de julho, atestam que o país registrou o maior número de casos de estupros da história em 2022: 205 ocorrências do crime por dia. Há que se considerar ainda a subnotificação, já que o levantamento considera casos em que as autoridades policiais foram informadas e muitas vítimas se calam, por medo, vergonha, porque não entendem a dimensão da violência que sofreram, e por muitos outros motivos.

Quase sempre os corpos das mulheres são encarados pelo capitalismo como mercadorias. Sabemos que o sistema do patriarcado está calcado na dominação e na violência contra as mulheres. As arbitrariedades para a manutenção do poder masculino e pela vigilância da sexualidade são feitas em muitas camadas, do controle do imaginário à ofensiva física. Todas, covardias. Algumas dissimuladas, outras ostensivas.

Então é genial quando Bianchi revira na cena essa questão que a ordem falocêntrica insiste em abafar como sendo apenas da esfera privada, particular, de exceção, quando na realidade se trata de um problema escandalosamente público.

E esse capítulo primeiro do tríptico Cadela Força atravessa camadas de temporalidades na perspectiva de instalar linguagens que vasculhem as possibilidades da arte entre o real e o encenado, sem escamotear o fantasmagórico e o misterioso.

No cenário dessa primeira parte, a da conferência, vemos uma mesa, cadeira, microfone, copos, garrafa d’água, alguma bebida alcoólica, uma caixa de remédios. Por baixo na mesa, um pequeno monte de areia preta sugere uma cova rasa. Por trás, uma parede falsa, que recebe a projeção dos vídeos.

Nesse ato, a artista pergunta quem conhece alguma mulher que lhe tenha segredado ter sido vítima de agressão sexual, o que foi dito e de que forma. Enfim, que lembranças ficaram. A atriz foi vítima de um estupro há dez anos. Na época, se calou entre suas memórias borradas, mas esses resíduos estão lá.

Ao levar ao palco o sofrimento encarnado – inscrito no corpo de Carolina e de outras mulheres artistas -, a narrativa explode para se instalar no bailado do elenco. O espetáculo reivindica uma humanidade saqueada. Ao ingerir 10 mg de “boa noite Cinderela”, Bianchi investe na “ressurreição de uma memória pessoal soterrada pela sua violência”, como registra o programa da peça.

Mas com esse gesto repetido a cada sessão, a artista não busca remissão (essa palavra tão católica) para os atos de violência sexual. Simplesmente porque não há como resolver o trauma, em toda sua complexidade, nem dentro, nem fora da peça. 

Seguindo o fluxo, o “Fuck Catharsis”, que está estampado na placa do carro na cena de A Noiva e o Boa Noite Cinderela, não é somente uma frase de efeito, mas uma lógica e uma chave para percorrer essa performance de alto risco.

Os recursos para articular esse enfrentamento no palco são criativos, com as tensões e atritos da construção de uma poética autoral. O material real, dela e de outras artistas convocadas, são processados como procedimentos teatrais e performativos que Bianchi utiliza, subverte, retorce, cria sua própria estética, utiliza em composição de seu teatro radical.

Boa noite – Trilogia Cadela Forca – Capitulo I – Foto: Christophe Raynaud/Divulgação

Arte e trauma. “O que acontece com as mulheres que sobrevivem ao estupro?”. Casos de agressões e feminicídios contemporâneos e que ocupam a história da arte são expostos. Vestida de branco, Carolina Bianchi lê trechos do Inferno, primeira parte da Divina Comédia de Dante Alighieri e cita o romance 2666, de Roberto Bolaño. Na sequência são projetadas pinturas de Botticelli, inspiradas nos contos do Decameron, de Giovanni Boccaccio. É A história de Nastagio degli Onesti, em que uma jovem se vê coagida a casar com esse homem que não ama para evitar ter o mesmo destino da mulher perseguida e morta, cujo coração é lançado aos cães pelo cavaleiro rejeitado, numa ação repetida todos os dias.

A ficção não é mais horripilante do que a realidade. A artista recorda que, no Brasil, o goleiro Bruno Fernandes foi condenado pelo homicídio da ex-namorada e mãe de seu filho, que ela teve o corpo esquartejado e atirado aos cachorros do futebolista.

Na sua explanação, Carolina diz não ser a protagonista desse espetáculo, mas sim outras mulheres artistas que foram vítimas de violência. E resgata a performance da artista italiana Pippa Bacca, A Noiva do título, assassinada em 2008, perto de Istambul. Intrigada com as escolhas, trajetória e pensamento de Bacca, a brasileira revela admiração e desprezo e fala de semelhanças e diferenças entre as duas. No seu movimento de atração-repulsão por Pippa, Carolina investe num karaokê feroz em italiano.

A artista explica ao público o que significa “Boa noite Cinderela”, nome conhecido no Brasil da substância utilizada pelos canalhas/agressores sexuais que drogam e estupram suas vítimas em estado alterado de consciência.

Carolina Bianchi avisa ao público que vai tomar a substância. E, enquanto espera a droga “bater”, ela discorre sobre o assunto. Quando o treco fizer efeito, ela já confusa irá se deitar na mesa, e o coletivo Cara de Cavalo assumirá a continuação do espetáculo. Se o treco não “bater”, ela avisa que irá ler as 500 páginas de sua dissertação de mestrado. Mas a droga funciona.

A substância leva em torno de meia hora para fazer efeito. Enquanto isso, a atriz volta a Pippa Bacca, que se chamava Giuseppina Pasqualino di Marineo, e foi morta aos 33 anos. Ela viajava apenas de carona, com a amiga Sylvia Moro, no projeto “Noivas em viagem”, com o intuito de promover a paz para vários povos e nações. Mas elas se desentenderam e Bacca seguiu seu caminho até ser estuprada e morta na Turquia. Ela tinha uma fé inabalável no humano e cruzou territórios de guerra, marcadamente vulneráveis para as mulheres. Carolina também rememora a atuação de Tania Bruguera na Bienal de Arte de Veneza e evoca as Santas Mártires da Igreja Católica. 

Assisti à peça A Noiva e o Boa Noite Cinderela duas vezes na curta temporada em Avignon. Na estreia e no segundo dia. A primeira sessão tinha uma predominância feminina na plateia. E uma pulsação de preocupação, identificação, manifestada na emoção ou algum mal-estar de alguma espectadora. A cena é forte, numa experiência compartilhada ao vivo e dessa energia acontecem coisas.

Na segunda sessão, havia uma leve supremacia masculina na plateia. Algo mudava, mesmo que eu não consiga precisar o quê, mas havia uma curiosidade, um quê de São Tomé, que levou um homem de meia idade a chegar perto da mesa com Carolina já desacordada para verificar os materiais expostos e tomar um pouco de água. Três ou quatro babacas ensaiaram aplaudir a atuação do cretino, que em seguida voltou ao seu lugar. Momento tenso fora do script.

Carolina Bianchi e o Coletivo Cara de Cavalo

Quando Bianchi fica inconsciente, o Coletivo Cara de Cavalo assume. É uma guinada radical. A parede falsa é desmontada e o amplo palco se revela. Os oito artistas estendem uma lona preta no chão. Um carro é descoberto. Com danças individuais e coletivas, os atores reorganizam o espaço, distribuem as mortalhas – com representações de corpos mortos – com um cadáver, um esqueleto, terra e flores, pó branco, e o colchão onde Carolina é deitada, em que passa a maior parte do tempo.

Domina uma atmosfera trash. Orgias simuladas em jogos de dois, três, quatro, em dinâmicas constantes. Várias pequenas cenas ocorrem ao mesmo tempo. Coreografias de danças, música alta, algumas vezes distorcida. Encontros que deixam dúvidas se são consensuais. O carro anda. O automóvel preto é lugar de encontros, é lugar de opressão.

Desacordada, Carolina já não fala, mas suas palavras, ou as frases que tomou emprestadas antes, estão estampadas nas telas. “Como eles podem dizer que sobreviver é vingança?” O capítulo dedicado às mulheres mortas de Ciudad Juarez, no México, do romance 2666, de Bolaño, também é utilizado como referência.

Será o sonho, ou pesadelo da artista desacordada, aqueles encontros fortuitos, regados a música alta, bebidas e outros entorpecentes, desejos e imposição de desejo? Na sequência das cenas, Carolina será deslocada para o bagageiro e em seguida para o capô.

Já no capô do carro com a placa “Fuck Catharsis”, Carolina Bianchi ainda em estado de semiconsciência passa por um exame vaginal filmado, feito pelas mulheres do elenco. Os movimentos internos são transmitidos ao vivo numa tela grande. Enquanto essa cena ocorre, ouvimos as palavras gravadas de Bianchi, que exaltam a amizade, sobretudo a amizade feminina, como uma grande proteção na vida.

Na última cena, a atriz está deitada em um colchão cercado de flores. A atriz vai acordar, atordoada. Numa placa atrás dela está escrito “SHE GOT LOVE”. Um dos atores do coletivo oferece um energético.

Depois dos aplausos, o público sai profundamente perturbado. Alguma zona pouco acessível foi acionada.

Fuck Catharsis está estampado na placa do carro. Foto: 

Artista fora do comum, Carolina obteve em Avignon uma visibilidade inesperada por ela e sua equipe de produção. Apresentações já se seguiram: Bélgica, Alemanha, Espanha e Suíça. O mesmo impacto. Além dos convites, os holofotes sobre o seu trabalho ganharam os principais jornais do mundo e, com isso, muitos outros horizontes de espaços, de público e de discussão. Mas ainda não há previsão de apresentações no Brasil. 

No artigo La vanguardia de las mujeres, assinado pelo poeta, crítico literário e teatral Andreu Gomila no principal jornal da Catalunha, ele avalia a força de um teatro conduzido por mulheres. O crítico cita as consagradas, a britânica Katie Mitchell e a espanhola Angélica Liddell, e destaca as novas correntes cênicas protagonizadas pelas mulheres, como a alemã Susanne Kennedy, a belga Sarah Vanhee, a brasileira Carolina Bianchi e a coreógrafa japonesa Midori Kurata. Sobre Bianchi, ele pontua: “A nova artista que mais se fala neste momento na Europa é a brasileira Carolina Bianchi, cujo primeiro capítulo da sua trilogia Cadela força : La núvia i el bona nit Ventafocs … que diz o que nunca foi dito sobre a violência contra a mulher”.

Novos rumos. A primeira crítica que saiu sobre o trabalho depois da estreia em Avignon, no Le Monde, situou: “Basta dizer que a atuação de Carolina Bianchi vai entrar para a história do Festival de Avignon e deixar uma impressão duradoura no público”.

O Satisfeita, Yolanda? conversou com Carolina Bianchi sobre a peça, a construção da sua linguagem, e a repercussão do espetáculo. Leia aqui!

Ficha técnica:

Com Larissa Ballarotti, Carolina Bianchi, Blackyva, José Artur Campos, Joana Ferraz, Fernanda Libman, Chico Lima, Rafael Limongelli e Marina Matheus
Texto, design, direção, dramaturgia: Carolina Bianchi
Tradução para legendas: Larissa Ballarotti, Luisa Dalgalarrondo, Joana Ferraz , Marina Matheus (Inglês), Thomas Resendes (Francês)
Dramaturgia e pesquisa: Carolina Mendonça  
Direção técnica, música originale som: Miguel Caldas 
Iluminação: Jo Rios  
Cenografia: Luisa Callegari 
Vídeo: Montserrat Fonseca Llach  
Figurinos: Carolina Bianchi, Luisa Callegari e Tomás Decina
Colaboração artística: Tomás Decina
Treinamento de corpo e voz: Pat Fudyda, Yantó
Construção de automóveis: Mathieu Audejean, Philippe Bercot, Miguel Caldas, Luisa Callegari, Pierre Dumas, Lionel Petit, Xavier Rhame, Jo Rios – Oficina de construção do Festival de Avignon Diálogo sobre teoria e drama: Silvia Bottiroli 
Colaboração artística: Editar Kaldor (DAS Teatro) 
Vídeo karaokê: Thany Sanches 
Assistente de produção e diretora de palco: AnaCris Medina 
Direção de produção e administração da turnê: Carla Estefan 
Distribuição internacional: Metro Gestão Cultural (Brasil) 

Produção

Produção: Metro Gestão Cultural (Brasil), Carolina Bianchi y Cara de Cavalo
Coprodução: Festival d’Avignon, KVS Bruxelas, Maillon Théâtre de Strasbourg European Scene, Frascati Producties (Amsterdam)  
Com o apoio da Fondation Ammodo, DAS Theatre Master Program, 3 Package Deal do AFK – Amsterdams Fonds voor de Kunst, NDSM, Over het IJ Festival, Theatre der Welt, Kaaitheater (Bruxelas) e de l’Onda – National Office for Artistic Diffusion.
Representações em parceria com a France Médias Monde 
Residences DAS Theatre (Amsterdam), Festival 21 Voltz/Central Elétrica (Porto), Pride Festival (Belgrado), Festival Proximamente/KVS (Bruxelas), Espaço Desterro (Rio de Janeiro), Greta Galpão (São Paulo), Frascati (Amsterdam), A FabricA do Festival d’Avignon 

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

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Rituais de fim do mundo
Crítica da peça O Jardim das Delícias
Festival d’Avignon

Le Jardin des délices, de Philippe Quesne, reinaugura a Carrière de Boulbon. Foto: Martin Argyrogio / Divulgação

Peça é inspirada na pintura de Bosch. Foto: Martin Argyrogio / Divulgação

Ritual em torno do Ovo, numa cena de Le Jardin des délices, no Festival d’Avignon. Foto: Martin Argyrogio 

Le Jardin des délices se manifesta exigente. Um pouco mais de disposição para o deslocamento e muita disponibilidade imaginativa. Para se chegar à mítica Carrière de Boulbon (15 km da cidade dos Papas), durante o 77º Festival Internacional de Teatro de Avignon, para assistir à peça de Philippe Quesne é preciso pegar um ônibus do festival nas aproximações da Gare Central ou ir de carro. Lá chegando tem uma estrutura de bar para venda de alimentos e bebidas. Como o sol só vai se deitar próximo das 21h nesse verão europeu é possível admirar o entardecer na imensidão do território antes do acesso às arquibancadas para a sessão teatral.

A pedreira, fechada há sete anos, foi palco do épico Mahâbhârata, de Peter Brook, em 1985, peça que inaugurou o sítio como espaço de representação. Outros artistas se apresentaram na Carrière de Boulbon, como o brasileiro Antonio Nóbrega, que exibiu seu espetáculo Pernambuco em 1999.

O Jardim das Delícias foi criado especialmente para estrear na pedreira, como parte das comemorações dos 20 anos da companhia do diretor Quesne, o Vivarium Studio. A peça é anunciada como uma epopeia retrofuturista, inspirada nas alegorias do pintor flamengo Hieronymus Bosch (1450-1516). O encenador já disse que tomou o quadro como um enigma inspirador. Talvez essa palavra seja importante para pensar as chaves dramatúrgicas, que nem sempre escancaram as portas para o espectador.

Trupe utiliza uma teatralidade exacerbada, com números deliberadamente caricatos, em algumas cenas

Oito personagens, um ônibus, muitas digressões entre o futuro e o passado nas sessões no Festival d’Avignon

Um ônibus branco aparece naquele cenário desértico, lunar, diriam alguns, empurrado por oito personagens esquisitos vestidos de cowboys e cowgirls – calças boca de sino, franjas, botas e chapéus, ternos e gravatas. Sondam o terreno. Dão rápidos golpes no solo com uma pá e uma picareta, para em seguida instalar uma grande escultura em forma de Ovo. Em volta desse Ovo gigante eles fazem um estranho ritual – um dá um beijo, outro joga umas pedrinhas, um punhado de areia, faz uma reverência, etc. Depois eles tocam violão, pandeiro e flauta doce, em celebração ao redor desse Ovo.

Em outra cena, Gaëtan Vourc’h, o ator careca na função de mentor dessa expedição controversa, convoca os outros sete participantes (Jean-Charles Dumay, Léo Gobin, Sébastien Jacobs, Elina Löwensohn, Nuno Lucas, Isabelle Prim, Thierry Raynaud) para o ônibus, onde serve qualquer coisa num copinho, oferece máscaras de oxigênio que podem até ter cheiro de chá de ervas e faz gestos de extrema preocupação com o bem-estar desses viajantes.

Quem são eles? Hippies deslocados num ritual de resgate nas suas andanças ou estão a inventar novas regras para o devir? Não dá para responder com convicção sobre essa trupe.

No pós-apocalíptico ecológico Farm Fatale, espetáculo de Philippe Quesne que esteve no Brasil em 2020 (na programação da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp), os personagens – um grupo de espantalhos – utilizavam humor e ironia na construção utópica de um novo mundo, quiçá melhor, um mundo sem humanos.

O Jardim das Delícias, a peça, convoca matérias de sonhos, utopias, paisagens insólitas. A sequência das cenas estremece lógicas do que se passa e as pretensões do bando. O que fica evidente é que a humanidade como se apresenta não é suficiente para fornecer respostas. O mundo está em ruínas. “Tem certeza de que a Terra não é o inferno de outro planeta?”, solta uma das figuras.   

Nessa viagem entre o futuro e o passado, prevalece o nonsense. Com cenas de grande impacto visual, essa pequena comunidade recita poemas, entrega-se a rituais e rodas de conversa. Tudo parece um pouco delirante: as questões filosóficas levantadas e passadas adiante, os deslocamentos por todos os cantos da pedreira, o monitoramento de fogueiras virtuais, a escuta e gravação do som do solo pedregoso, a ausculta das paredes do alto de uma escada, a filmagem, a busca por ideais.

Quando eles transformam o ônibus em palco improvisado – com direito à fumaça e fogos de artifício nas apresentações – ganha destaque a escolha da teatralidade exacerbada, do modo trash, patético, kitsch. Um treco carregado propositalmente de uma precariedade interpretativa que crispa entre o riso e o espanto diante da escolha. Números deliberadamente ridículos, caricatos, grotescos, mal executados. Como o pastiche do nascimento de Vênus, com o ator com macacão vermelho.

A origem textual não fica totalmente evidente. A ficha técnica diz que os textos originais são da poeta Laura Vazquez e que outros textos estão em curso. Na cena, nas rodas de discussão, com muitas digressões de crises existenciais, são lidos trechos de O Inferno, de Dante, talvez um Shakespeare aqui ou acolá. É uma profusão de palavras proferidas pelos cowboys e cowgirls, junção de aforismos a leituras de poesias, exibições de palavras no ecrã. E o humor beirando o absurdo.

Na real, a pedreira é a personagem central desta criação. Quesne valoriza a imponência da Carrière de Boulbon. E quando ela ganha protagonismo pleno, como na tempestade sonora ou nos efeitos de iluminação, sentimos a paisagem a falar do fim de um mundo.

A sucessão de momentos aparentemente desconexos está carregada de ideias abundantes que rejeita tentativa uníssona de significado. O humor cáustico da encenação é excessivo, um humor muito particular, difícil de alcançar.   

Diante dessa pedreira imensa, majestosa, esses personagens sugerem que os humanos (com suas histórias) são menores do que sua arrogância: “nos tempos da Terra vazia, tu eras a Terra”. Nesse quadro meio desencantado, meio melancólico, saio me perguntando como a potência da  arte se expande para expressar o desastre.
 

Ficha técnica:

Com Jean-Charles Dumay, Léo Gobin, Sébastien Jacobs, Elina Löwensohn, Nuno Lucas, Isabelle Prim, Thierry Raynaud e Gaëtan Vourc’h
Conceito, realização e cenografia: Philippe Quesne
Textos originais: Laura Vazquez
Outros textos
 em curso

Figurinos e esculturas: Karine Marques Ferreira
Cenografia colaboração: Élodie Dauguet
Dramaturg: Éric Vautrin
Assistente de direção: François-Xavier Rouyer
Colaboração técnica: Marc Chevillon
Som: Janyves Coïc
Iluminação: Jean-Baptiste Boutte
Vídeo: Matthias Schnyder
Acessórios: Mathieu Dorsaz
Direção geral: François Boulet e Martine Staerk
Direção de palco: Ewan Guichard
Direção de luz: Cassandre Colliard
Design: Estelle Boul
Construção de cenários: Ateliers du Théâtre Vidy-Lausanne
Produção e distribuição:
Judith Martin e Elizabeth Gay (Théâtre Vidy-Lausanne)

Produção: Charlotte Kaminski (Vivarium Studio)

Produção

Produção; Vivarium Studio, Théâtre Vidy-Lausanne  
Co-produção: Festival d’Avignon, Ruhrtriennale (Alemanha), Athens Epidaurus Festival, Tangente St. la Cultura de Amiens pólo europeu de criação e produção, 2 Palcos Cena nacional de Besançon, Centro dramático nacional (Espanha), MC93 Maison de la culture de Seine-Saint-Denis Bobigny, Maillon Theatre de Estrasburgo Cena europeia, Kampnagel (Hamburgo), Próximo Festival (Lille-Kortrijk-Tournai e Valenciennes), Palco Nacional Carré-Colonnes Bordeaux-Métropole, Berliner Festspiele, Teatro Nacional e Sala de Concertos Taipei (Taiwan)
Residências: FabricA do Festival d’Avignon, La Carrière de Boulbon, Théâtre Vidy-Lausanne
Com o apoio da cidade de Boulbon
Gravação em parceria com a ARTE 
Representações em parceria com a France Médias Monde 

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Fuga artística para a natureza
Crítica de Paysages partagés 7 pièces entre champs et forêts
Festival de Avignon

Paysages partagés – 7 pièces entre champs et forêts (Paisagens compartilhadas – sete peças entre campos e florestas), está acontecendo na floresta Pujaut, na cidade de mesmo nome, nos arredores de Avignon. Foto: Ivana Moura

Caroline Barneaud e Stefan Kaegi fizeram a proposta da criação das sete peças aos artistas, numa experiência de sete horas de duração. Foto: Christophe Raynaud de Lage 

Peça dos artistas portugueses Sofia Dias e Vitor Roriz. Foto: Foto: Christophe Raynaud de Lage 

A paisagem é um grande teatro. E, nesse ambiente, o que vale é a experiência coletiva. Em Paysages partagés – 7 pièces entre champs et forêts (Paisagens compartilhadas – sete peças entre campos e florestas), a curadora e produtora Caroline Barneaud (diretora de projetos artísticos e internacionais do Théâtre Vidy-Lausanne) e o diretor Stefan Kaegi (integrante fundador da Rimini Protokoll), propõem uma viagem ambiciosa.

Uma dezena de artistas participam com sete formas artísticas que vibram e refletem sobre a vida no planeta e inevitavelmente tocam nas questões sobre alterações climáticas. Esse tour artístico aglutina peças de Chiara Bersani e Marco D’Agostin, El Conde de Torrefiel, Sofia Dias e Vítor Roriz, Begüm Erciyas e Daniel Kötter, Ari Benjamin Meyers, Émilie Rousset e do próprio Stefan Kaegi.

A palavra peça expande-se em outras transversalidades – da filosofia à fisioterapia, geopolítica, antropologia, política dos corpos, teatro documental.

O clima em Avignon está extremamente quente durante esse julho do festival. Esse calor intenso é uma das reações da desastrosa ação humana no Antropoceno. Os recursos da natureza exigem de nós outra consciência crítica e, lógico, outra postura nessa interdependência.

Nesse passeio multissensorial, os procedimentos são variados para estimular reflexões sobre a atuação humana na Terra e as consequências catastróficas que estamos colhendo: esculturas musicais, audioguia coreográfico, piquenique, peças filosóficas, criações sonoras, realidade virtual, fragmento de teatro documentário, instalação audiovisual.

São sete horas de caminhada ao ar livre, com algumas paradas para conferir os espetáculos, quando a própria paisagem aparece como protagonista. As peças acontecem basicamente em francês e inglês, com tradução sonora simultânea para ambas as línguas.

No Festival d’Avignon, o programa ocorre na floresta Pujaut, situada na cidade homônima nos arredores de Avignon. Entre maio e junho, o projeto foi desenvolvido em Chalet-à-Gobet, em Lausanne, onde fica o Jorat, um grande espaço florestal na Suíça.

Depois do Festival d’Avignon, Paysages partagés segue por Berlim, Milão, Eslovênia, Espanha, Áustria e Portugal, com estruturas e apoio de muitas instituições europeias.

Na floresta. Foto: Christophe Raynaud de Lage 

Em alguns momentos dessa experiência, os grupos estão juntos, noutras são separados por cores das pulseiras e das pequenas bandeiras sinalizadoras, verdes, azuis, amarelas, rosas. As divisões formam movimentos coreográficos na imensidão do campo. Por vezes, parecem turistas que seguem o guia para desbravar algum lugar ou até uma colônia de férias.

Cobertores e banquinhos foram emprestados em algumas situações. Não há cenas de violência ou linguagem imprópria nos trabalhos e algumas crianças estavam presentes acompanhadas por algum adulto.

O ponto de encontro para partir para floresta é o Parking Relais L’île Piot. Como estou hospedada próximo à Avignon Université, Campus Hannah Arendt, eu teria algumas opções para chegar ao centro. O ônibus iria demorar 40 minutos, então fiz a pé o primeiro trecho.

Com o sol derretendo os miolos, cheguei à Rua de La Republique e resolvi me informar com um guarda estrangeiro que movimentava a cancela para os carros. Ele disse no seu francês ruim que eu deveria pegar o ônibus por trás da estação.

Com a moleira cansada do calor, resolvi pegar um táxi, para não perder o horário. Ele, muito solícito, falou que chamaria o taxi. Que gentil, pensei. Resumo: ele chamou alguém que não tinha a bandeira do táxi e que me cobrou 25 euros por uma corrida de cerca de 2 quilômetros. Reclamei com o motorista. Mas, voilà, paguei com todos os 20 euros que tinha na carteira e apostei que tudo daria certo na volta. E deu.

Do Parking Relais L’île Piot, nós, espectadores com os bilhetes do espetáculo, partimos em ônibus para a floresta.

Por volta das 16h, nos deitamos sob as árvores, com cobertores emprestados e fones de ouvidos para aguardar as instruções. A imensidão do campo e o canto feérico das cigarras provocam os deslocamentos para outras dimensões; dentro da cabeça, rupturas momentâneas do stress do cotidiano.

Nesse embalo, iniciamos o percurso com a primeira obra, a peça sonora assinada por Stefan Kaegi. Olhando as copas das árvores, as nuvens, o horizonte, ou de olhos fechados, ouvimos a gravação de um grupo formado por uma criança, um psicanalista, um agente florestal.

A natureza é um ponto do debate, mas também assuntos da psicanálise como o inconsciente, medos ou projeção. A atuação do agente florestal entra na pauta e a expertise do profissional. As cigarras me chamam para outro lugar e aquela conversa vai se distanciando da minha escuta, apesar de estarem nos meus ouvidos. Minha mente vagueia.

Proposta de Begüm Erciyas e Daniel Kotter. Foto: Christophe Raynaud de Lage   

Seguimos… Uma pedra segura um livrinho que está pousado sobre um banco portátil. Somos convidados a folhear o impresso que contém o trabalho da artista turco-belga Begüm Erciyas e do realizador alemão Daniel Kötter. É uma breve ação individual do público com a obra, fotografias e textos curtos que exploram a política espacial do território do Cáucaso, numa zona de conflito entre a Arménia e Azerbaijão.

Após algum tempo, somos convidados a deixar o livrinho e a pedra sobre o banquinho, andar alguns metros para encarar outra experiência, utilizando capacetes virtuais. Com esses óculos, temos a sensação de sair do chão, subir e fazer o passeio de olhar o território do alto e depois traçar o zoom de aproximação. Essa subida panorâmica da realidade virtual projetada por Begüm Erciyas e Daniel Kötter desperta muitas sensações, entre elas a de que o mundo é imenso e nós….

Numa etapa seguinte, a dupla de artistas portugueses Sofia Dias e Vítor Roriz chama para a dinâmica dos corpos e o exercício de imaginação. Rodas são formadas a partir das instruções do audioguia poético e coreográfico da dupla, com direito a interações entre as pessoas, saudações aos pássaros e imitações de ações de bichos da floresta ou dos que existem dentro de nós. O corpo se move no espaço amplo para revelar coisas, a reivindicar as marcas do tempo e dos gestos construídos na trajetória humana.

Músicos tocam no meio da mata. Foto: Christophe Raynaud de Lage 

De repente, do meio da mata, dos arbustos, surgem músicos que executam interlúdios de Ari Benjamin Meyers. Eles tocam deitados no chão ou confundindo-se com a paisagem, numa atitude que salienta um dos atos da pesquisa performativa de Meyers, de destacar o caráter efêmero da música na relação entre intérprete e público.

Peça de Chiara Bersani e Marco D’Agostin, com irmãos gêmeos. Foto: Christophe Raynaud de Lage 

Andamos mais um pouco, nos encostamos e sentamos perto das árvores. Um telão está armado. Um rapaz numa cadeira de rodas vai se ajeitando para perto da tela. Ele é Guillaume Papachristou.

Clément e Guillaume Papachristou são gêmeos. Guillaume tem deficiência motora (paralisia cerebral) desde o nascimento. Os irmãos protagonizam um piquenique improvisado na floresta.

O quadro dirigido pelos italianos Chiara Bersani e Marco d’Agostin ganha texturas e um tempo impregnado pelo desafio na realização do gesto. Guillaume conta com a ajuda do irmão para fazer algumas atividades, como servir chá e biscoitos. Há uma profunda confiança entre os dois, que exploram o espaço da ficção, o teatro da alteridade e o conceito de corpo político de que fala Chiara Bersani. No final da tarde, sem pressa, os artistas brindam à vida, que exige muitos mais sentidos de respeito à especificidade de todas as formas.

Peça de Emilie Rousset. Foto: Christophe Raynaud de Lage 

É feita uma pausa para o piquenique de todos, ou de quem reservou com a produção do evento o alimento ou levou algum lanchinho. Depois desse breve intervalo, três atores discutem a política agrícola europeia, o não financiamento para a transição para o orgânico, numa cena em meio aos vinhais.

Uma pesquisadora em etologia, ciência do comportamento animal, conta sobre a linguagem inerente de alguns deles na comunicação e na importância da biodiversidade. A direção é de Émilie Rousset, que utiliza arquivos e pesquisa documental para levantar peças, instalações e filmes e fazer sobreposição entre o real e o ficcional.

Depois de todas essas paradas, a natureza se manifesta numa tela preta, numa pastagem menos verde, com projeções de frases firmes e voz distorcida. Ao mesmo tempo em que faz um diagnóstico das características humanas, assume uma postura extremamente crítica, num monólogo virulento sobre a separação entra natureza e cultura. É carga pesada no Antropoceno que colapsou, está colapsando a biodiversidade. Criada pela suíça Tanya Beyeler e pelo espanhol Pablo Gisbert, do El Conde de Torrefiel, o discurso mira e acerta no alvo nos questionamentos urgentes desses tempos.

Para que o derradeiro ato não seja o sermão corretivo da natureza, os músicos de Ari Benjamin Meyers voltam a tocar, dessa vez enfileirados, de pé, na despedida da luz natural daquele dia. Para que essa experiência sensorial intensa prossiga ressoando no tempo vindouro, marcada pela cartografia do sensível visível e invisível, que desloca percepções insustentáveis.

Paysages partagés 7 pièces entre champs et forêts (Paisagens compartilhadas, sete peças entre campos e florestas)
Conceito e curadoria: Caroline Barneaud e Stefan Kaegi
Peças de Chiara Bersani e Marco D’Agostin, El Conde de Torrefiel, Sofia Dias e Vítor Roriz, Begüm Erciyas e Daniel Kötter, Stefan Kaegi, Ari Benjamin Meyers, Émilie Rousset
ComCorentin Combe, Thomas Gonzalez, Emmanuelle Lafon, Clément e Guillaume Papachristou, os músicos Maxime Atger alternando com Anton Chauvet, Amandine Ayme (saxofones), Julien Berteau (trombone), Téoxane Duval (flauta), Leïla Ensanyar (trompete) , Ulysse Manaud (tuba), e as vozes de Henri Carques, Febe Fougère, Charles Passebois, Sylvie Prieur, Oksana Zhurauel-Ohorodnyx
Apoio dramatúrgico ao projeto: Emilie Rousset e Elise Simonet
Direção musical: Daniel Malavergne
Figurinos: Machteld Vis
Adereços: Mathieu Dorsaz
Coordenação de paisagem cênica: Chloé Ferro, Monica Ferrari e Lara Fischer (Rimini Protokoll)
Assistente artística: Giulia Rumasuglia
Produção: Rimini Apparat (Alemanha) e Théâtre Vidy-Lausanne (Suíça)
Produção local: Festival d’Avignon
Co-produção: Bunker e Festival Mladi Levi (Eslovénia), Culturgest e Rota Clandestina – Câmara Municipal de Setúbal (Portugal), Tangente St. Pölten – Festival für Gegenwartskultur (Áustria), Temporada Alta (Espanha), Zona K e Piccolo Teatro di Milano Teatro d’Europa (Itália), Berliner Festspiele (Alemanha), Festival d’Avignon
Com o apoio da cidade de Pujaut
Com o apoio de Centro Camões Cultura portuguesa em Paris para a 77ª edição do Festival d’Avignon
Cofinanciado pela União Europeia
Em parceria com o INVR para os óculos de realidade virtual

Este texto integra o projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

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A encrenca do bem-estar social
Crítica do espetáculo “Welfare”
Festival de Avignon

 

Welfare , da diretora Julie Deliquet, abriu o Festival de Avignon no Cour d’Honneur du Palais des Papes.  Foto: Pascal Victor/Divulgação

Welfare. Foto: Christopge Raynaud de Lage/Divulgação

Welfare. Foto: Christopge Raynaud de Lage/Divulgação

“Qual é a obrigação do Estado para com aqueles que não conseguem garantir a própria sobrevivência?”, pergunta o cineasta norte-americano Frederick Wiseman no documentário Welfare, filmado num escritório de assistência social de Nova York, em 1973. Cinquenta anos depois, a encenadora francesa Julie Deliquet refaz a questão na adaptação teatral do filme, de título igual.

Welfare abriu a 77ª edição do Festival d’Avignon, na noite de quarta-feira (e segue até 14 de julho), no Cour d’Honneur, o pátio principal do Palais des Papes, icônico espaço desse evento cênico francês, que atrai espectadores de todo o mundo. 

Welfare é um importante documentário sobre o sistema de bem-estar social nos Estados Unidos da década de 1970. Não houve atualização do filme à peça para os dias de hoje, mas são detectados pontos de convergência com a proteção social na França.

Abrir o festival com exploração de nó difícil de desatar de algumas sociedades não deixa de ser uma ousadia do diretor do evento Tiago Rodrigues, português que estreia no cargo nesta edição. E é muito interessante que seja a encenação de uma mulher a abrir Avignon, por toda competência, mas uma diretora. Porque ainda hoje o desequilíbrio continua na ocupação dos lugares de poder nas diversas atividades.

Antes da cena começar, a encenadora Julie Deliquet e o diretor Tiago Rodrigues ficaram à frente do palco e pediram um minuto de silêncio em memória de Nahel, rapaz de 17 anos, morto por um policial francês durante uma blitz de trânsito em Nanterre, nos arredores de Paris, em junho. O silêncio “grita”.

Vamos ao jogo. Quando entro de última hora (porque só consegui o ingresso no último minuto), as cabanas já haviam sido fechadas e os atores estavam espalhados pelo enorme palco do Cour d’honneur. O cenário é um ginásio convertido em centro social, sem divisória. Que tipo de esporte a encenadora está propondo? O palco parece grande demais para a forma em que o jogo é instalado. Durante as quase três horas de duração, a luz da plateia fica acesa.

No palco, 15 excelentes atores ocupam duas posições do confronto: beneficiários sociais e funcionários do sistema. Mulheres e homens em situação de extrema pobreza, os fracassados da sociedade capitalista, que aguardam atendimento num centro de assistência social em NY no último dia antes das férias de 1973.

Todos transitam nessa cena a exigir migalhas para não morrer e expõem circunstâncias desesperadoras. Uma mãe de quatro filhos, grávida do quinto, demanda cheque-auxílio; uma velha com o marido hospitalizado; um cara que saiu da prisão; um casal com deficiência que não consegue trabalhar; um velho que perdeu o emprego após uma cirurgia; e por aí vai. São pessoas quebradas, economicamente miseráveis, que tentam se agarrar ao serviço de bem-estar para não sucumbir.

De um lado esses indigentes com urgências inadiáveis, a comida, o aluguel, a doença. Do outro, os representantes do baixo escalão da seguridade – inclusive um sargento da segurança que sofre racismo por parte de um usuário da seguridade -, que, às vezes, mostram boa-vontade em resolver os problemas, mas assumem o papel burocrático nos embates travados, na passagem do problema para outro funcionário, na constatação “é complicado”, “não foi possível”, etc. A peça aproxima-se dos enredos kafkianos, da burocracia da França, das agências do INSS.

Chamou atenção a escolha do elenco, esses corpos no palco, grandes e pequenos, negros, não brancos e pouco brancos. Isso diz sobre as escolhas da encenadora Julie Deliquet, diretora do Centro Dramático Nacional de Saint-Denis desde março de 2020.

A clivagem entre pobres, que estão no palco, e ricos, que estão fora desse platô, aciona algum mecanismo de incômodo. A classe com poder está ausente, mas assombra.

Aquelas figuras no limite de perderem a dignidade repetem a mesma história e quanto mais distantes forem os ouvidos de quem escuta, mais enfadonhos ficam esses falatórios. É uma ladainha só, sem horizonte de cessar o tormento. As narrativas se repetem com pequenas variações. Um exagero aqui, uma possível mentira acolá. Sem ápice, praticamente numa monotonia dramática. A cena não desperta entusiasmo. Quase um looping. Se a ideia era exasperar, conseguiu, nesse fluxo contínuo. 

Muita gente saiu durante a apresentação. Esse desconforto que gerou o movimento de saída da plateia é apenas uma reação à forma iterativa da estética do palco? Parece-me que sim e não. As escolhas da diretora Julie Deliquet investem numa tensão interna entre os dois campos, exploram o humor cáustico nos depoimentos dos demandantes. E deixam evidente que os dois lados perdem nessa partida. Pois, no caso desses dois grupos, eles não estão tão distantes nos seus lugares sociais.

Duas cenas quebram a monotonia da repetição das histórias: o jogo de basquete entre o guarda e um dos demandantes e a música executada ao vivo nessa espécie de intervalo do atendimento da repartição.

No final, não há soluções mágicas ou deus ex machina para quebrar o mecanismo do aparato administrativo massacrante. O capitalismo fabrica seus jogos insolúveis.

Welfare. Foto: Christopge Raynaud de Lage/Divulgação

Ficha técnica:

Com Julie André (Elaine Silver) Astrid Bayiha (Mme Turner) Éric Charon (Larry Rivera) Salif Cisse (Jason Harris) Aleksandra de Cizancourt (Elzbieta Zimmerman) Évelyne Didi (Mme Gaskin) Olivier Faliez (Noel Garcia) Vincent Garanger (M. Cooper) Zakariya Gouram (M. Hirsch) Nama Keita (Mlle Gaskin) Mexianu Medenou (Lenny Fox) Marie Payen (Valerie Johnson) Agnès Ramy (Roz Bates) David Seigneur (Sam Ross) e Thibault Perriard (John Sullivan, músico)
Baseado no filme de
Frederick Wiseman
Tradução:
Marie-Pierre Duhamel Muller
Encenação:
 Julie Deliquet
Adaptação cênica:
Julie André, Julie Deliquet, Florence Seyvos
Colaboração artística:
 Anne Barbot, Pascale Fournier
Cenografia:
Julie Deliquet, Zoé Pautet
Luz:
Vyara Stefanova
Música:
Thibault Perriard
Figurino:
Julie Scobeltzine
Marionete:
Carole Allemand
Assistente de figurino:
 Marion Duvinage
Camareira:
 Nelly Geyres
Adereços
François Sallé, Bertrand Sombsthay, Wilfrid Dulouart, Frédéric Gillmann, Anouk Savoy – Atelier du Théâtre Gérard Philipe Centre dramatique national de Saint-Denis
Operação técnica geral:
 Pascal Gallepe
Diretor de palco:
Bertrand Sombsthay
Operador de luz:
Jean-Gabriel Valot
Operador de som:
Pierre De Cintaz
Tradução para o inglês para legendagem:
Panthea

Produção: Théâtre Gérard Philipe CDN de Saint-Denis
Coprodução: Festival d’Avignon, Comédie CDN de Reims, Théâtre Dijon Bourgogne CDN, Comédie de Genève, La Coursive Scène nationale de La Rochelle, Le Quartz Scène nationale de Brest, Théâtre de l’Union CDN du Limousin, L’Archipel Scène nationale de Perpignan, La Passerelle Scène nationale de Saint-Brieuc, CDN Orléans Centre-Val de Loire, Les Célestins Théâtre de Lyon, Cercle des partenaires du TGP Avec le soutien du Groupe TSF, VINCI Autoroutes, The Pershing Square Foundation, The Laura Pels International Foundation for Theater, Alios Développement, FACE Contemporary Theater, un programme de la Villa Albertine et FACE Foundation en partenariat avec l’Ambassade de France aux États-Unis, King’s Fountain, Fonds de Dotation Ambition Saint-Denis, Région Île-de-France, Conseil départemental de la Seine-Saint-Denis et pour la 77e édition du Festival d’Avignon : Fondation Ammodo et Spedidam
Residência:
 La FabricA du Festival d’Avignon
Gravação em parceria:
 France Télévisions
Com o apoio de:
 l’Onda pour l’audiodescription
Les films de Frederick Wiseman sont produits par Zipporah Films.
Agradecimentos: Patrick Braouezec, Pauline Legros, Anna Genet, Samuel Jérôme–Bourgeois, Lucile Miège, Odile et Gérard Haudebert, Madame Legal et l’équipe de l’école Vaucanson de Paris, les élèves et les enseignants des écoles L’Estrée, Louis Blériot et Jules Vallès de Saint-Denis, le gymnase Maurice Bacquet de Saint- Denis, Pauline MacEachran, Benjamin Larsimont et l’équipe du 110 Centre socioculturel coopératif de Saint-Denis, Marie Potiron et Mandela, Maty Diallo- Ouedda, Moussa Diallo-Ouedda, Keyah Ido-Benisty et Néhanda Ido-Benisty, Julien Gidoin

Em memória de Marie-Pierre Duhamel Muller

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