19h de uma segunda-feira chuvosa no Recife. Alagamentos nos pontos críticos da cidade, como de costume. No Bairro Velho, no Museu de Artes Afro Brasil, Rua Mariz e Barros, 328, no salão no segundo andar, uma experiência artística potente completava três horas de duração. Das 16 às 19h acompanhamos a movimentação ininterrupta de Flávia Pinheiro e Carolina Bianchi em Utopyas To Everyday Life, numa instalação performática que tem outra sessão hoje como parte da programação do TREMA! Festival de Teatro. Em três horas, as artistas dançaram, se colocaram nos limites de suas forças, palpitaram de vitalidade, se sensibilizaram com violência e levaram para o espaço uma pulsação artística da imaterialidade do presente.
O tempo que pautamos apressado ficou suspenso para o compartilhamento de afetos das performers. Muitos estados transitaram nesse período, estampados no rosto ou corpo das bailarinas. Desânimo (talvez com tudo que ocorre no Brasil de hoje), tristeza (por um amor desfeito, por uma amizade rompida), seguidos por manifestações de alegria, de perseverança, de dor, de força, de cansaço, de prazer, de euforia, de combate ao desprazer, de reconfiguração de crença, de medo passageiro, de coragem sempre.
O título fala dessa perseguição de utopias, que precisa de ânimo, que muitas vezes arranha, mas é uma opção de vida pelo encontro. Confluência das duas artistas, de São Paulo, do Recife e suas geografias nômades. Em oposição ao discurso distópico, essa utopia de fazer arte no país do futebol, de fundar outros territórios legítimos com seus corpos e paixões.
O espaço com muitas janelas abertas permite olhar a realidade distanciada. Um brecha para quem estava dentro dessa Utopya. Sem nenhum apelo à narratividade ou sucessão de fatos, o poder das imagens construídas por essas duas mulheres remete para o caráter brutal do mundo, mas se expõe em outra natureza. De caráter inenarrável.
Sim, elas caminharam pelas veredas da teoria para dar sustentação a essas e outras utopias. Gilles Deleuze, Baruch Espinoza e Eduardo Galeano. Um detalhe aqui, um conceito acolá, uma frase inspiradora para compor esse lugar.
Classificada pela dupla como instalação performática em estado de dança, a peça surgiu da residência artística em São Paulo, em janeiro. Durante 180 minutos elas se mexem ao som de uma playlist de músicas grudadas na memória da pele delas, a incendiar moléculas de ânimo. Uma “goteira infinita” caia em alguns pontos do salão.
O público estava autorizado a se movimentar livremente pelo espaço durante o ato artístico. Uma bailarina entrou no jogo, ajeitou os cabelos de Flávia e se enroscou em contatos de carinho e força.
Nesse processo fragmentado, as artistas correm riscos e aceitam os desafios, exploram possibilidades, aguentam as tensões e diante de limites e impasses inventam novas possibilidades criativas. Utopyas to every day life transita por um espaço – físico e metafórico – em que os corpos se exercem sem lógicas de prescrição.
Essa Utopya é transformação permanente. Uma guerra cotidiana para se manter vivo e inteiro, com lampejos de pequenos prazeres diários e oásis encontrados no percurso. E o que não chega no fluxo, é produzido com esforço físico / intelectual / energético para criar outra atmosfera.
Muitos vieses políticos podem ser captados na empreitada dessas mulheres que gritam com o suor dos poros contra o machismo e toda e qualquer violência contra a mulher. Que avançam em pernadas para forjar nos deslocamentos a relevância da produção feminina.
O corpo é a arma de combate nesta sociedade heteronormativo. O campo de ação das meninas é ocupado constantemente por elas, que correm saltam, dançam, se unem e separam, transpiram, se machucam no atrito com o chão, com paredes. Se abraçam e se enroscam, perseguem aspirações, estão em guerra, desconstroem-se, viram figuras de arte, tentam voar, ousam flutuar, se tornam memória, cantam baixinho trechos de canções.
Elas se atrevem viver e fazer arte contrapondo o curso do capitalismo, que insiste em transformar tudo em mercadoria. Uma música, um olhar, uma pequena vitória diante dos limites do corpo e das tarefas estressante do cotidiano, alimentam os desejos, dão asas aos impulsos criativos.
Ao entrar nesse jogo, nessa sala, o espectador tem o direito de sair e voltar quantas vezes quiser ou permanecer no recinto o tempo inteiro. A escolha de movimento e posição no espaço se estende ao público, que pode dançar, ficar sentado, deitar e fruir das noções de espetáculo e percepção da composição.
Na estreia, um jovem macho branco e sem noção, não só dançou como também quis competir com as garotas. Da goteira de água que caia do teto ele resolveu jogar pingos nas artistas. Tentou compor cenas e não entendeu que existem limites. Foi derrubado três vezes por Flávia Pinheiro, numa performance incrível da artista. Continuou com a provocação, ou tentativa de roubar o protagonismo da performance, e foi derrubado pela dupla de artistas numa jogada que parecia uma partida de beisebol, aplaudida com entusiasmo pelo público.
Utopyas to every day life segue o caminho errático em que as fronteiras entre vida e arte são constantemente questionadas. E a poesia se inscreve nos corpos de Flávia e Carolina, figuras inquietas que desafiam as formas convencionais de arte. E depois de três horas de trabalho, o espectador leva para casa seu tesouro secreto de imagens, ideias e sensações.
Ficha Técnica
Criação, Direção e Perfomance: Carolina Bianchi e Flavia Pinheiro
Artistas Colaboradores: Marina Matheus, Lucas Vasconcellos, Pedro Gongom, Rodrigo Andreolli, The Macaquinhos (Andrez Lean Ghizze, Thereza Moura Neves, Fernanda Feliz e Caio Cesar)
Cenotécnica: Rafael Limongelli e Zé Andery
Fotos: Mayra Azzi
Vídeos: Ricado Sêco
Produção: Carolina Bianchi e Flavia Pinheiro
Apoio: Trema Festival, Sesc São Paulo, Oficinas Culturais Oswald de Andrade SP, Sexto Andar (PE ) e Casa Liquida (SP)
SERVIÇO
Utopyas to Every Day Life
Quando: Terça-feira, 9 de maio, das 16 às 19h (O público pode chegar a hora que quiser dentro da duração do trabalho)
Onde: MUAFRO – Museu de Artes Afro Brasil (Rua do Apolo, 121, Recife Antigo – Recife – PE)
Quanto: R$ 20,00 inteira e R$ 10,00 meia