“Parecia que alguém tinha recém pintado o céu, de tão azul”, descreve Caio Fernando Abreu em sua crônica Quando Setembro Vier, do livro Pequenas Epifanias. E sai narrando um tempo idealizado pelo protagonista quando o emprego é bom, o mundo está em paz, o amor volta para uma viagem paradisíaca. Até anuncia que Fred e Ginger dançam vertiginosamente. Mas há uma ponta de ironia no P.S. ou uma resposta aos que reclamaram da tristeza de seus escritos publicados no jornal O Estado de S. Paulo (esse de 27/8/1986). São formadas de crônicas como essa e contos, cartas e programas do escritor gaúcho a dramaturgia do espetáculo No se puede vivir sin amor, da atriz e professora Nara Keiserman, que abriu a 9ª Mostra Capiba.
O trabalho nasceu como homenagem a Caio Fernando Abreu, pela passagem de seus 60 anos, para a Feira do Livro de Porto Alegre. E segue na trilha do compromisso com a investigação teatral. A teatralidade experimentada pela atriz (no Núcleo Carioca de Teatro, assim como no grupo Atores Rapsodos, criado em 2000 com alunos formados na Escola de Teatro da UNIRIO), aposta em dois conceitos: a utilização da literatura não dramática e a exploração das linguagens de texto e de movimento, como canais diferenciados na comunicação com o espectador.
A dramaturgia é composta pelos contos Metâmeros, Mergulho II, Como era verde meu vale, Fotografias, Quando setembro vier e Creme de alface; trechos de Última carta para além dos muros e de Dodecaedro; além de inéditos escritos especialmente para Nara: um poema, uma carta e um texto para o programa de Morangos Mofados, que ela montou.
O tom é amoroso. Não quer dizer que a temática do amor se reduza à paixão dual. Esse foco está ampliado e amplificado para o próprio gozo do discurso amoroso. E remete também para as contradições humanas, a falhas humanas, a falência do sonho ou promessa de felicidade.
Com uma escrita intimista e passional, Caio Fernando Abreu poetizou o amor, o sexo, o medo, a solidão e a morte. De uma forma bem particular e numa matiz de sinceridade. Nara e seu diretor Demétrio Nicolau escolheram os textos em que personagens passeiam às voltas com suas questões amorosas e existenciais.
A encenação é simples, despretensiosa e com gotas de encanto. Nara Keiserman trafega da ternura à agressividade. E começa pontuando sua ligação espiritual com a vida e com o próprio autor de quem foi amiga. Em cena apenas uma mesa, com alguns objetos, duas cadeiras. A luz define o ambiente e ressalta os passos da intérprete.
Tudo é afetuoso. Desde o tratamento aos seres evocados, – mesmo que tomados por uma sensação de estranhamento diante do ambiente hostil, – a percursos por subjetividades que vão do esfuziante à melancolia. Fotografia, narrativa da obra Inventário do ir-remediável, faz um instantâneo de uma mulher que espera há horas por alguém que não chega. Gladys, “a loura trintona e gostosa, dezoito por vinte e quatro, como se dizia antigamente”, de Morangos Mofados, exalta suas formas. Ou da mulher que descarrega toda sua agressividade na garotinha que pede uns trocados na porta do cinema, do conto Creme de Alface.
A experiência amorosa é uma busca, às vezes apontada como única saída digna para chegar a àquele momento luminoso. O discurso é polifônico. Mas há também uma crítica implícita a essa busca idealizado do amor romântico.
A atriz é dona de recursos admiráveis. Uma voz límpida, ao falar e cantar, força mas com delicadeza para saltar de uma personagem a outra. Ela começa como uma técnica terapêutica de um baralho, que vai dar o norte da noite.
Inicia com os exercícios dos meridianos corporais e de voz, uma espécie de apresentação de método, um ritual. Serena e consciente de seu talento e da celebração que escolheu fazer, ela quase flutua pelo palco. Com um figurino branco, saia longa, assinado por Carlos Alberto Nunes (também é dele o cenário), ela segue o “caminho das estrelas” e se altera em o visível e o invisível com a luz de Demetrio Nicolau. Nessa espacialidade ela dá o texto – interpretado ou narrado – de locais apontados como os Chakras. E Nara canta lindamente e seus gestos convocam as festas dos orixás.
Ao ler as cartar que Caio lhe endereçou a atriz é tomada por uma emoção especial que aciona suas lembranças dos tempos idos de comunhão.
A peça No se puede vivir aglutina sentimentos, conflitos, melancolia, amores e verdades, mas de forma serena, próxima de uma tranquilidade. Embala com a envergadura da arte de apaziguar a vida, mesmo que o efeito seja provisório. Por pouco tempo tudo se torna mais leve.
Ficha técnica
Textos: Caio Fernando Abreu
Concepção, Dramaturgia e Atuação: Nara Keiserman
Direção, Iluminação e Arte: Demetrio Nicolau
Cenografia e Figurino: Carlos Alberto Nunes
Orientação Musical: Alba Lírio
Maquiagem: Mona Magalhães
Produção: Natasha Corbelino
Assistente de Produção: Vanessa Garcia
Realização: Atores Rapsodos